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Voando com asas rasgadas RAPHAEL MÜLLER Um autista com muito a dizer Inclusão é o que quero, é o que vivo.

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É possível um menino autista encontrar seu espaço no mundo? Ele não consegue se expressar através da fala, possui sérias dificuldades motoras, no entanto, sua percepção do mundo é totalmente diferente do que a maioria das pessoas conhece como “normal”. Desacreditado que pudesse aprender, com oito anos escreveu uma carta ao presidente, participou e participa de concursos literários e escreveu este livro aos catorze anos. Um autista com muito a dizer Raphael Müller surpreende cada pessoa que o conhece, por sua força de vontade, determinação e capacidade de influenciar positivamente aqueles que o conhecem, convivem com ele ou leem seus textos.

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Voando com asas rasgadas

RAPHAEL MÜLLER

Um autista com muito a dizer

Inclusão é o que quero, é o que vivo.

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1ª edição

Tradução: Doris Körber

Curitiba2015

Voando com asas rasgadas

RAPHAEL MÜLLER

UM AUTISTA COM MUITO A DIZER

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Raphael MüllerVoando com asas rasgadas

Um autista com muito a dizer

Coordenação editorial: Walter FeckinghausTradução: Doris KörberRevisão: Josiane Zanon MoreschiEdição: Sandro BierCapa: Sandro BierEditoração eletrônica: Josiane Zanon Moreschi

Titel der bei Fontis - Brunnen Baselerschienenen deutschen Originalausgabe:“Ich fliege mit zerrissenen Flügeln” von Raphael Müller©2014 by Fontis - Brunnen Basel

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:1. Autistas : Autobiografia 920

Todos os direitos reservados.É proibida a reprodução total e parcial sem permissão escrita dos editores.

Editora Evangélica EsperançaRua Aviador Vicente Wolski, 353 - Curitiba - PR - CEP 82510-420

Fone/fax: (41) [email protected] - www.editoraesperanca.com.br

Müller, RaphaelVoando com asas rasgadas : um autista com muito

a dizer / Raphael Müller ; tradução Doris Körber. -- 1. ed. -- Curitiba : Editora Esperança, 2015.

Título original: Ich fliege mit zerrissenen Flügeln.Bibliografia.ISBN 978-85-7839-124-9

1. Autismo 2. Autistas - Autobiografia 3. Müller, Raphael I. Título

15-07715 CDD-920

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Para meus pais

Para vocês

Voar – posso fazer isso em sonhos. Andar – nem mesmo na vida diária. Falar – fui privado disso. Sou mudo, ainda que nem sem-pre esteja quieto.

Mas tenho algo a dizer. Quem quiser me ouvir, precisa ler, pois minha comunicação acontece no texto escrito. Escrever é meu elixir da vida, minha porta para a liberdade, minha ponte entre os mundos. Minha linguagem é a poesia. Quem conhece o caráter das letras e dos números entende a dança das palavras e sente sua alegria. Sim, sou incomum. Não importa o quanto você tente: nenhum rótulo serve em mim. Graças a Deus!

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Sumário

Prefácio..................................................................................11

Glossário...............................................................................13

1. Diferente do esperado...................................................15Sete anos de mudez.........................................................15Meu castelo – minha família..........................................25A cada dia, um pequeno milagre

– a terapia com golfinhos.............................................29Em conflito – autismo.....................................................33Minhas especialidades: leitura fotográfica,

sinestesia e aprendizado autodidata.........................40Minha fala é escrita!........................................................45

2. O difícil é fácil, e o fácil, tão difícil!...........................49Desvios – meu histórico escolar....................................49O atalho – o salto para o nível II...................................57Praticamente melhores amigos

– meus acompanhantes na escola e cuidadores nas horas livres........................................67

Não quero viver em um gueto! – Inclusão..................70Participar é tudo! – Um pedaço de normalidade.......76Os pontos altos – visitas de amigos..............................77

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3. Mudo, mas cheio de palavras.......................................81O país das letras e a linguagem dos números.........81Histórias de anões...........................................................87Pensamentos coagulados – a poesia...........................89Alegres festas de letras: prosa......................................95Alimento intelectual e espiritual

– minhas leituras........................................................107

4. Raios de esperança.......................................................115Um retorno valioso: concursos..................................116Matinê no Palácio Bellevue.........................................118Contato com a imprensa

– workshop de jornalismo.........................................121Apoio musical: textos musicados...............................128

5. O reverso da medalha.................................................137O freio da cirurgia e outras adversidades................139Terapias e terapeutas....................................................147Experimentar e compreender?

– sofrimento e dor......................................................149

6. Razão e objetivo...........................................................155Pensamentos são livres!................................................155O Universo numa casca de noz

– Deus tem lugar nele?.............................................160A âncora salvadora – minha fé...................................164“Ser um milagre” – motivação e exemplos.............171Quero construir pontes! – perspectiva, visão...........173

7. Olhando de fora............................................................177Pacote supresa com pérola

(ponto de vista da mãe, dra. Ulrike Müller)..........177Um espelho

(ponto de vista de Bernhard Kamm).......................191

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Encorajamento para trilhar caminhos desconhecidos(Gerhard Haunschild, diretor do DHG)..................192

O que você faria? (perspectiva da profª Katharina Dollinger)...........193

Já na expectativa de passar mais tempo com você!(Tanja Spencer, acompanhante)...............................195

Nosso poeta (comentários dos colegas)........................................196

Meus bons votos para o livro de Raphael! (Dr. Pius Thoma)........................................................198

Não o que parece ser (ponto de vista da dra. Cornelia Rehle, docente da Universidade de Augsburg).................200

Profundamente tocada! (Antonia Huppertz, estudante da Universidade de Augsburg)..............................................................202

Bibliografia.........................................................................205

Links........................................................................................................207

Filmes...............................................................................................207

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Prefácio

Agradeço diariamente a Deus pela FC1, este método de apoio à comunicação que me permite digitar meus pen-samentos, a fim de registrá-los por escrito antes que me dilacerem por dentro. Escrever é a minha válvula de es-cape, minha ponte para o mundo exterior e, por isso, sim-plesmente essencial.

Para mim foi um enorme prazer escrever este livro. Durante semanas, investi nele cada minuto em que não ti-nha escola nem terapia. Minha mãe foi forçada a passar o mesmo tempo que eu nesta atividade, pois ela, paciente-mente, sustentou meu braço durante 228.390 movimentos de digitação. Não tenho como agradecer-lhe o suficiente! Durante todas estas semanas na época do Natal de 2013, meu pai e Hannah tiveram que ceder e abrir mão da ma-mãe para que este projeto pudesse se realizar. Deus sabe que tenho a melhor família do mundo!

Verena Weich teve a gentileza de ler meu primeiro ras-cunho. Suas observações me ajudaram a organizar os ca-pítulos. Muito obrigado!

Quero agradecer de coração ao dr. Pius Thoma, à drª. Cornelia Rehle, a Bernhard Kamm, ao reitor Haunschild,

1 Sigla em inglês para “Comunicação Facilitada”. Técnica em que um auxiliar apoia o braço ou a mão da pessoa com prejuízo na capacidade de comunicar-se, aju-dando-a a digitar as palavras desejadas em um teclado. (N. de Tradução)

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à sra. Dollinger, a Antonia Huppertz, Tanja Spencer e aos meus colegas de classe pelas fantásticas contribuições ao meu livro!

O melhor manuscrito não será lido, pois não encontra-mos uma editora que o publicasse. Por isso, minha máxi-ma gratidão a Christian Meyer, Vera Hahn e Ulrich Par-low, meus revisores, e a Dominik Klenk, editor da Fontis, além de toda a sua equipe, por sua espantosa confiança em um adolescente. Isso significou muito para mim! A cooperação com a editora foi revigorante e agradável, de maneira que a Editora Fontis faz jus ao seu novo nome. Meu respeito!

Desejo a vocês, leitores, horas de boa leitura e ideias novas e valiosas. Oro para que este livro seja uma bênção e realmente colabore para construir pontes. Que ele enco-raje outras pessoas na mesma situação, para que encon-trem caminhos mais fáceis para a inclusão. Desejo a todos uma fé que persista, mesmo quando as asas falharem e a vida parecer perder o chão. Que Deus o abençoe com sua luz e presença perceptível!

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Glossário

Atácticos → desordenados, desajeitados, com padrões de-sorganizados

Autismo → forma diferente de percepção e processamentoDolphin Aid e.V. → associação que promove a terapia

com golfinhos. http://www.dolphin-aid.de/ Elecok → abreviação em alemão para o grupo de trabalho

“Recursos eletrônicos e computadores para pessoas com deficiência física”.

Epilepsia → convulsões desencadeadas pelo cérebroFacilitated Communication (FC) → Comunicação Facili-

tada, técnica de comunicação por escrito, em que um acompanhante oferece apoio físico e emocional.

Feldenkrais, método → um método de aprendizado de orientação física, recebeu o nome de seu criador, Moshé Feldenkrais. Treina sobretudo a percepção corporal.

Hidrocefalia interna ex-vacuo → ventrículos laterais au-mentados no cérebro, mas sem aumento de pressão no líquor

Hipoterapia → terapia com cavalosIntegração sensorial → percepção do próprio corpo

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Osteopatia → conceito de tratamento integral, que usa as mãos tanto para o diagnóstico quanto para a terapia. O objetivo é corrigir limitações de mobilidade de estru-turas e tecidos, para restabelecer o bem-estar físico e emocional. Criado por A.T. Still.

Perinatal → em torno do momento do parto; pode, por-tanto, ter acontecido antes ou depois do nascimento.

Proprioceptores → receptores da sensação de profundi-dade, que permitem registrar posição e movimentação do corpo no espaço; fusos musculares.

Terapia com golfinhos → terapia realizada com ajuda de golfinhos.

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1 Diferente do esperado

Durante sete anos, praticamente todo mundo pensava que eu tinha alguma deficiência mental. É o que acontece quando você não fala e, por isso, não consegue responder diretamente. É como um computador com hardware e software intactos, mas um monitor defeituoso. Frequentemente, o diagnóstico acaba sendo: “completamente estragado”. Poucas pessoas cogitam a possibilidade de que, ainda assim, possa haver raciocínio claro e, dessa maneira, fi-ca-se a um passo dos mal-entendidos.

Em muitos aspectos, sou diferente do que se espera. No começo, meu diagnóstico causou grande decepção e, quan-do o ambiente à minha volta finalmente tinha se adaptado ao tema “deficiência”, as pessoas foram obrigadas a cons-tatar que, a despeito de todos os prognósticos, eu era um ser pensante, uma pessoa com um cérebro funcional em um corpo rebelde. Mas vamos começar do princípio.

Sete anos de mudez

Minha percepção é radicalmente diferente da sua, o que, possivelmente, decorre do autismo e da constituição do meu cérebro. Grande parte das minhas células cinzentas foi prejudicada por um infarto perinatal, que também causou um aumento significativo nos ventrículos laterais.

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O termo técnico é hidrocefalia interna ex-vacuo. Bem, se entendi corretamente, um AVC antes do nascimento des-truiu partes do meu cérebro. O espaço que sobrou foi ocu-pado pelos ventrículos cheios de líquor.

Como não havia sintomas de aumento de pressão, fui poupado de uma cirurgia na cabeça. A causa de tudo isso provavelmente foi um aneurisma, um ponto fraco em um vaso sanguíneo que se rompeu cerca de três semanas an-tes do meu nascimento durante uma colisão e acabou pro-vocando essa devastação na minha cabeça.

Nasci no dia 24 de setembro de 1999, três meses antes do Natal. Mamãe e a parteira concordam ao relatar que o parto foi simples e sem complicações. Durante o trabalho de parto, uma tempestade desabava sobre Aichach; quan-do nasci, caía uma chuva calma. Nem meus pais nem eu percebemos qualquer coisa do tal espetáculo da natureza, mas a parteira divertiu-se com a coincidência.

Ao contrário da minha avó, até hoje não tenho medo de tempestades. Na verdade, apesar de ter ouvidos muito sensíveis a ruídos, amo ouvir o mundo desabando e tro-vejando, ventando e se agitando. Talvez porque eu mes-mo não possa me esbaldar dessa forma. Seja como for, associo a tempestade com suspense, aventura e o começo de alguma coisa nova.

Meus primeiros meses de vida foram normais. Eu não tinha sido diagnosticado e, por isso, tudo estava em or-dem. Lembro-me da corrente com brinquedos que balan-çava no carrinho, da água fria no rosto ao ser batizado, da carícia tranquilizadora na testa para dormir, do vento tranquilizador do secador de cabelos na minha barriga, do aconchego da mamãe, da sensação de meleca no rosto, principalmente no nariz e da dança de cores gritantes em

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uma noite cheia de música. De quando já estava maior, lembro-me de tentar (sem sucesso) avisar que precisava fazer “pipi” e do banho em seguida, dos meus protestos no carrinho, que infelizmente eram incompreendidos porque eu só falava “rafaelês”, e da minha diplomática palavra “mapa” no banho, quando mamãe implorava que eu dissesse “mamãe” enquanto papai, ao mesmo tempo, me mandava falar “papai”.

Depois de alguns meses, o mingau superdelicioso co-meçou a me incomodar na língua. Explorar o quarto des-pertava um senso agudo de aventura. O que eu achava detestável era entender tudo e não ser entendido. Então tudo ficou nebuloso, meu mundo desabou.

Olhando para trás, vejo os primeiros anos envoltos em neblina: separado e incompreendido pelo meu entorno, mas, ao mesmo tempo, cercado e cuidado pelo amor de Deus. Como uma ilha no meio do oceano. Aninhado em algodão, isolado da multidão, entendendo sem ser com-preendido – era assim que eu percebia meu mundo.

Não que eu me incomodasse muito por ser diferen-te. Eu não conhecia outra coisa e, de qualquer maneira, Deus estava bem próximo de mim. O que me irritava era a constante comparação com outras crianças da mesma idade e os inúmeros tratamentos, pois tudo isso só ser-via para destacar minhas incapacidades e me arrancar do meu próprio mundo. Meu refúgio corria perigo, meu oá-sis estava a ponto de secar!

Essa sensação de nebulosidade era reforçada pela to-tal ausência de percepções físicas do pescoço para baixo. Sou hipersensível na região da cabeça, mas, dependendo do tempo, em alguns dias não consigo determinar o con-torno exato dos meus membros. É uma sensação horrível

Diferente do esperado

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confundir-se assim com o ambiente. Onde estou e quem sou? Eu estaria me diluindo em dias assim?

Levou algum tempo até que eu aprendesse a distinguir meu corpo do meu entorno. Em dias especialmente difí-ceis, a vibração nos lábios ao imitar o som do motor de um carro me dá a tranquilizadora sensação de ainda exis-tir. Quem vive à minha volta enxerga isso de outro jeito. Eles sabem muito bem que, mesmo que eu não o perceba assim, nestes dias de dissolução estou presente física e, acima de tudo, acusticamente.

Forçosamente, essa irritante falta de percepção nas mi-nhas extremidades retardou meu desenvolvimento mo-tor. Somente o exame U52, em meados de abril, revelou a extensão do desastre, manifesto na forma de movimentos atácticos. Primeiro examinaram minha cabeça com ultras-som, depois com ressonância magnética, e foi aí que en-contraram o grande aumento nos ventrículos laterais, que são as câmaras que armazenam líquor no cérebro.

Durante uma semana, fiquei na clínica infantil do hospital universitário de Munique, onde me giraram e viraram, cutucaram e puncionaram o tempo todo. Não tenho lembranças agradáveis dessa busca infrutífera por respostas. Por fim, meu metabolismo foi considerado ino-cente. Provavelmente um derrame teria sido responsável pela perda de massa cerebral e pelo acúmulo de líquor.

Um jovem residente consolou mamãe, dizendo que usa-mos apenas 10% do nosso cérebro. Portanto, se eu aprovei-tasse o pouco que tenho da melhor forma, poderia levar

2 O U5 faz parte de uma série de exames preventivos gratuitos realizados na Ale-manha em crianças de 0 a 17 anos, a fim de detectar precocemente eventuais pro-blemas no desenvolvimento. O U5 é realizado entre o 6º e o 7º mês de vida, e dá atenção especial à forma como a criança percebe o entorno e reage a ele (visão, audição, movimentos). Fonte: http://www.babycenter.de/a8916/vorsorge-unter-suchungen-f%C3%BCr-babys. Acesso em 6/3/2015. (N. de Tradução)

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uma vida normal. Bem, não cheguei totalmente lá, mas realmente tento obter o melhor com o que tenho. Vai saber – talvez, às vezes, menos realmente seja mais. Essa breve palavra do jovem médico foi um bálsamo e um salva-vidas para nossa família.

A partir de então, minha agenda ficou cheia de tera-pias e consultas. Os prognósticos eram todos pessimistas. Logo desencadeou-se uma batalha de terapias – e eu esta-va bem no centro dela!

Tudo mudou radicalmente com o diagnóstico consta-tado quando eu tinha sete meses de vida. Eu ainda era pequeno demais para gravar os detalhes, mas tenho lem-brança dos numerosos tratamentos e terapeutas e, intui-tivamente, sempre soube que isso não tinha sido assim desde o começo, que alguma coisa tinha se quebrado na nossa estrutura familiar e que isso tinha relação comigo. Demorou um pouco para eu descobrir o que era. Naquela época, a expressão “hidrocefalia interna ex-vacuo” ainda não tinha nenhum significado concreto para mim. Perce-bia a preocupação, o sofrimento não expresso, a desorien-tação nos olhos dos adultos, e me sentia impotente e triste.

Eu queria muito consolá-los, mas não tinha como fa-zê-lo. Alguma coisa faltava, tinha se perdido: a alegria e a esperança. Era preciso primeiro procurá-las e reencontrá--las com muito esforço. E salva-vidas, como o mencionado acima, não são exatamente frequentes no meu caminho.

Todos à minha volta tinham as melhores intenções, mas simplesmente não sabiam o que fazer. Cada especialista reconhecia meus déficits em sua área específica, e buscava combatê-los com todo empenho. Esta era a opinião geral, mas não contribuía para fortalecer minha autoestima. De uma hora para outra, além da natação infantil e do maternal,

Diferente do esperado

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meu dia a dia passou a ser enriquecido com fisioterapia, te-rapia ocupacional, fonoaudiologia, hipoterapia e osteopatia. Eu gostava da variação de atividades, mas não tenho ideia do que esse ritmo exigiu dos meus pais.

Aos dez meses de idade mais um problema começou a me atormentar. Primeiro, o espaço parecia se ampliar in-finitamente, como uma espiral gigante, e de um segundo para o outro, o movimento se invertia e a espiral apertava--se cada vez mais à minha volta. Mamãe percebeu espas-mos nas minhas extremidades e meus lábios arroxeados e, assustada, ligou para o pediatra. Ela relatou o ataque epiléptico que tinha acabado de observar. Como ele não estava disposto a fazer uma visita, era melhor que ela me levasse até a clínica, e era melhor que ela não ignorasse a seriedade da situação!

Portanto, de uma hora para outra, tive que me mudar para o hospital, onde nada mais foi feito naquela noi-te. Não entendi isso muito bem, e também não conse-guia dormir direito. Várias vezes nos dias seguintes me ligaram a cabos enquanto me entretinham com luzes e bolhas brilhantes, sem qualquer progresso perceptível. Quando estavam a ponto de dizer a mamãe que ela ti-nha se enganado, tive uma nova convulsão durante uma dessas sessões de medição. Ah, tá! Parece que às vezes as mães têm razão.

Medicaram-me com Orfiril3. Lembro-me muito bem das letras daquela embalagem detestável. Eu ainda não conse-guia decifrar a escrita, mas minha memória fotográfica me permite guardar texto para leitura posterior. Para introdu-zir a medicação, mamãe foi orientada a abrir as cápsulas e a me dar a cada dia um número maior das bolinhas que ele

3 Nome comercial do antiepiléptico valproato. (N. de Tradução)

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continha. O troço tinha um gosto terrível, eu sentia de lon-ge o cheiro do remédio na colher, e ele era ainda mais in-tenso enquanto a comida ainda estava quente. Mamãe qua-se se desesperou, pois, de repente, passei a aceitar a comida só depois que ela tinha esfriado. E, mesmo assim, eu sabia, sem olhar, quais eram as colheres que tinham remédio. Se ela não cantasse músicas infantis, eu nem abria a boca.

Este remédio exigia exames regulares de sangue para controle de valores hepáticos. Eu achava isso muito mais interessante do que ruim, já que tenho pouca sensibilida-de nas extremidades. Mas o pediatra não confiava muito em mim, por isso todas as vezes ele fazia com que várias pessoas me segurassem. Isso, por sua vez, me aterroriza-va. Além disso, não gosto de ser segurado, principalmen-te quando estranhos fazem isso!

Tentávamos este procedimento a cada três semanas, mas não adiantava: os valores caíam perigosamente. Tro-caram a medicação por carbamazepina e topiramato4 – com sucesso moderado. Entrei em um estado de delírio permanente, desaprendi a engatinhar e balbuciar, e as convulsões ficaram antes mais frequentes do que antes.

Os médicos recomendaram, então, aumentar ainda mais a dosagem do topiramato, que até então ainda nem tinha aprovação oficial para crianças menores de dois anos. Mamãe perdeu a paciência. Mandou realizar testes em alimentos, prescreveu-me uma dieta rotativa e come-çou a reduzir gradualmente a medicação. Bem lentamen-te, ao longo de meio ano. Nunca mais tentei me arrastar pelo chão nem balbuciar (“mamamam, papapap”), mas, pelo menos, conseguia pensar com clareza de novo!

4 Medicamentos usados no tratamento da epilepsia, entre outras indicações. (N. de Tradução)

Diferente do esperado

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Os ataques epilépticos vêm irregularmente, mas ain-da são frequentes demais para o meu gosto. Eles atingem braços e pernas, além da respiração. No jargão médico, são chamados de “Grande Mal” ou convulsão. Sinto sua aproxi-mação e temo as dores violentas e o cansaço muscular sub-sequente. Na maioria das vezes, perco meu apetite, normal-mente bom, antes de uma crise, e acabo recusando comida e bebida. O lado bom da epilepsia são as ideias absoluta-mente claras e geniais imediatamente antes da crise. Nes-tes momentos, penso entender o plano por trás de todas as coisas. É uma felicidade da qual não quero abrir mão! Para tê-la, aceito as dores. Por outro lado, para descobrir isso, foi preciso primeiro eliminar o cobertor pesado e paralisante da medicação constante, que impedia o raciocínio claro.

27/01/2014

Um fluxo de pensamentos absolutamente desimpedido

me arrebata com seu encantoe me mostra, retumbante, do que é capaz.Rochas duras não poderiam pará-lo,é impossível superar sua rapidez.Com violência ele arrasta tudo consigoem direção a um lugar desconhecido.Borbulhante, espumante e também sonhadora,a corrente percorre seu caminho.A viagem parece uma busca por sentido.Passando por campos de trigos e prados verdes,há realmente muito para vere para aprender com este mundo enorme

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e aquele que o segura em suas mãos.A corrente absorve pensamentos com sofreguidão,aceita contradições em seu turbilhão,cresce demais em direção ao mar,prospera belamente por onde passa.Então ela se mistura em amplidões infinitasa outros que acompanham sua busca por sentido,perde sua subjetividade limitadaenquanto escolhe uma nova perspectivae, de repente, passa a entender muito mais.

(Ainda tenho ataques, mas muito menos frequentes do que antes, e eles passam sozinhos. Quando ficam espe-cialmente violentos, me dão Valium e eu durmo algumas horas. Um dia perdido. Em compensação, nos demais dias meu raciocínio fica claro.)

Meu pediatra declarou que eu, provavelmente, nunca frequentaria uma escola normal. Ele tinha poucas coisas gentis a dizer a meu respeito, e seus comentários eram mais perturbadores do que úteis para mim e para meus pais.

Mamãe assistiu à palestra de um neurocientista, sr. Haffelder, que enfatizava o quanto nossos pensamen-tos influenciam os acontecimentos. A conselho dele, ela decidiu que evitaria, a todo custo, me reprimir em pen-samentos, e trocou de pediatra. O sr. Haffelder mediu minhas ondas cerebrais e gravou um CD especial, que combinava música clássica e sons de baleias e golfinhos, a fim de otimizar a cooperação entre os dois hemisférios do cérebro. Infelizmente sabotei essa terapia, pois, aos três anos de idade, não estava disposto a deixar os fones de ouvido na cabeça.

Diferente do esperado

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Eram muito duros os exames anuais no Centro de Tra-tamento e Aconselhamento da Fundação Hessing, em Au-gsburg, onde eu e meu desenvolvimento eram observa-dos e analisados com olhos de águia. Como havia a firme convicção de que o desenvolvimento motor caminha de mãos dadas com o desenvolvimento cognitivo, eu ficava sentado em um canto, brincando, enquanto mamãe era confrontada com uma péssima notícia atrás da outra, sem suspeitar que eu escutava e entendia tudo.

Mamãe me defendia com unhas e dentes e mostrava, assim, que acreditava em mim. Isso era um conforto tre-mendo! Infelizmente, durante muitos anos ninguém acre-ditou nela quando afirmava que eu entendia muito mais do que os médicos queriam fazer crer.

Em uma dessas consultas, perguntaram para mamãe se eu conseguia separar os brinquedos pela cor, o que ela teve que negar. No dia seguinte, tirei apenas peças azuis da minha caixa de Lego, para mostrar a ela que eu sabia reconhecer as cores. Para desgosto de mamãe, não con-segui me convencer a provar isso também para aqueles que não tinham acreditado em mim. Eu sou assim. Quem confia em mim, recebe provas e mais provas das minhas habilidades. Quem não confia, não recebe nada.

Quanto mais velho eu ficava, mais me irritava o fato de que ninguém me entendia, uma vez que eu entendia todo mundo muito bem. Eu era fluente em “rafaelês”, como diz mamãe, mas isso não ajudava nada, já que não exis-tem dicionários desse idioma exótico, o que é um grande empecilho para a comunicação.

Assim, em alguns dias só me restava gritar, para dei-xar claro que alguma coisa não estava bem. Mas essa co-municação ruidosa é um tanto genérica, de forma que na

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maioria das vezes meus pais, avós e terapeutas não perce-biam qual era realmente o problema. O volume dos gritos era proporcional à minha frustração. Isso, por seu lado, estressava não apenas meus pais, mas também os avós, todos preocupados com meu bem-estar. Um círculo vicio-so. Essa situação só mudou quando finalmente comecei a me comunicar por escrito, aos sete anos.

Meu castelo – minha família

Recebi os melhores pais do mundo, tenho certeza. Mesmo que nem sempre seja fácil conviver comigo, eles se empe-nham ao máximo para me apoiar e tornam o “impossível” possível. Papai já empurrou minha cadeira de rodas vá-rias vezes até o topo do Rittner Horn5, para que eu pudes-se ver a cruz no cume e desfrutar da vista das montanhas.

Nossos “passeios de homem” são verdadeiros pontos altos para mim, ainda que, infelizmente, eu nem sempre consiga demonstrar isso. Comunico-me com papai por gestos. No começo, usava a mão direita para “não” e a es-querda para “sim”. Mas logo ficou claro que, na maioria das vezes, apenas essas duas opções não eram suficientes. Aprendemos com Veronika Raila, que está em uma si-tuação parecida, a associar diferentes significados a cada dedo, de forma que, quando necessário, dispomos de até dez possibilidades de resposta. Infelizmente, às vezes de-mora até que eu consiga comandar minha mão rebelde e, por isso, meu interlocutor precisa estar bem concentrado para entender o significado de cada dedo.

Na prática, isso funciona assim: por exemplo, o pole-gar representa “sim” e o indicador, “não”. Quando não é

5 Montanha nos Alpes italianos, com 2.260 m de altura. (N. de Tradução)

Diferente do esperado

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possível responder uma pergunta com sim ou não, sim-plesmente uso o dedo do meio para indicar “pergunta errada”, “não sei” ou “nem uma coisa nem outra”. Ou en-tão alguém me pergunta o que quero fazer: ler, escrever, fazer contas, descansar, passear…

Papai estabelece os meus limites, volta e meia medimos forças ou vontades. Isso acaba lixando uma ou outra aspere-za. Temo que eu – ou melhor, meu diagnóstico – tenha frus-trado alguns de seus planos de vida. Sou muito feliz por ele me apoiar dessa forma. Ele é a rocha na arrebentação.

Mamãe é minha voz, minha mediadora e meu apoio emocional. Se ela não confiasse em mim e não tivesse fei-to aquele curso básico de FC em novembro de 2006, até hoje provavelmente meu QI seria estimado em zero e eu estaria vegetando, permanentemente limitado a respostas entre sim e não.

A FC funciona mais rapidamente e melhor quando mamãe me ajuda. Não é de admirar, pois já estamos trei-nando diariamente há cerca de sete anos, isto é, mais de 2555 dias. Graças ao tempo e ao esforço que ela me dedi-ca, consigo levar uma vida humanamente digna apesar de todas as minhas limitações.

Assim que se recuperou do primeiro choque, mamãe investiu muito tempo, energia e imaginação para ampliar e aplicar todos os conhecimentos adquiridos com tera-peutas, livros e outros pais. Ela é ao mesmo tempo tera-peuta, médica, enfermeira e mãe. Ela também não hesitou em derrubar montanhas de alpiste, ervilhas ou feijões no chão da sala, para me dar a experiência de “caixa de areia indoor”. Mas como sinto muito melhor com a boca do que com as mãos, logo comecei a colocar ervilhas e feijões crus na boca. Acho que isso gerou certo desconforto nela.

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Eu no aniversário da vovó, em outubro de 2011.

2004: Eu e meu andador (NF-Walker).

Na natação para bebês, em 2001 (foto: Kathrin Dietrich).

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Com mamãe no workshop de jornalismo (foto: Angelina Bürth, 2012).

Curaçao 2009: a terapeuta Heike quer conversar comigo. Usamos o tabuleiro de madeira, que eu tinha começado a usar naquela época. Mas primeiro preciso cumprimentar minhas amigas letras: eu as acaricio com a mão não apoiada.

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Terapia com golfinhos em Curaçao com a terapeuta Heike e o golfinho Mateo, 2009 (foto: CDTC).

Em cima do cavalo na hipoterapia. Atrás do cavalo está a terapeuta Heidi Leimbeck.

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Voando com asas rasgadas

É possível um menino autista encontrar seu espaço no mundo?

Ele não consegue se expressar através da fala, possui sérias difi culdades motoras, no entanto, sua percepção do mundo é totalmente diferente do que a maioria das pessoas conhece como “normal”.

Desacreditado que pudesse aprender, com oito anos escreveu uma carta ao presidente, participou e participa de concuros literários e escreveu este livro aos catorze anos.

Raphael Müller surpreende cada pessoa que o conhece, por sua força de vontade, determinação e capacidade de infl uenciar positivamente aqueles que o conhecem, convivem com ele ou leem seus textos.

“O que você faria se não

pudesse andar? Se não

conseguisse se comunicar

com outras pessoas da

mesma maneira que

fluem seus pensamentos?

Isto é, você se comunica,

claro, mas os outros não o

entendem. As pessoas à

sua volta nem percebem

que você está querendo

dizer alguma coisa.”

Profª Katharina Dollinger