sandokai suzuki texto integral

245
參同会 SANDŌKAI

Upload: joca-penna

Post on 30-Jun-2015

478 views

Category:

Documents


16 download

TRANSCRIPT

Page 1: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

參同会

SANDŌKAI

Page 2: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

2

Page 3: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

3

俊隆 鈴木 SHUNRYŪ SUZUKI

CORRENTES QUE FLUEM NA ESCURIDÃO

O 參同会 SANDŌKAI À LUZ DO BUDISMO

Tradução da edição espanhola Ediciones Oniro, S.A.

Barcelona – 2004

Page 4: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

4

Page 5: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

5

ÍNDICE

Agradecimentos................................................................. 07 Introdução de Mel Weitsman............................................. 11 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN e o 參同会 SANDŌKAI........... 21 Notas para o leitor...................................................... ....... 31

O 參同会 SANDŌKAI Tradução do poema.......................................................... 37 Versão original em chinês................................................. 41 Versão da 曹洞宗 SŌTŌ-SHŪ em Japonês...................... 43

PRIMEIRA PRELEÇÃO “As coisas tal qual é”......................................................... 51

SEGUNDA PRELEÇÃO “De uma mão cálida para outra”........................................ 63

TERCEIRA PRELEÇÃO “Buddha sempre está aqui”.............................................. 77

QUARTA PRELEÇÃO “A pega penetrará diretamente em seu coração”............. 91

QUINTA PRELEÇÃO “Mesmo que hoje sejamos muito felizes, não sabemos o que amanhã nos ocorrerá”....................103

SEXTA PRELEÇÃO “A barca está sempre se movendo”............................... 111

SÉTIMA PRELEÇÃO “Sem abraçar idéia alguma sobre a realização, nossa via é simplesmente sentar-se em 座禅 ZAZEN”............................................ 125

Page 6: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

6

OITAVA PRELEÇÃO “Na luz há a maior escuridão”........................................ 139

NONA PRELEÇÃO

“A neve não pode quebrar o salgueiro”......................... 153

DÉCIMA PRELEÇÃO “O sofrimento é valioso”................................................ 169

Breve preleção durante uma sessão de 座禅 ZAZEN... 183

DÉCIMA PRIMEIRA PRELEÇÃO “Não devemos nos apegar às palavras

ou às regras”................................................................. 187

DÉCIMA SEGUNDA PRELEÇÃO “Não passem os dias e as noites em vão!”................... 197

Preleção oferecida a um grupo de estudantes ............. 215

O 參同会 SANDŌKAI

Tradução compilada por 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI.... 229

Tabela das linhas de transmissão dos mestres citados no texto............................................................. 231

APÊNCICES Fac-símile da edição digitalizada do 參同会 SANDŌKAI..237 A história de 桃太郎 MOMOTARŌ................................... 239

Page 7: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

7

AGRADECIMENTOS

O canto que diariamente entoamos antes das refeições1 no

Centro Zen de São Francisco começa com as seguintes palavras:

1 Trata-se do 五 観 の 偈 GOKAN NO GE, o Verso das Cinco Contemplações: 一には功の多少を計り、彼の来処を量る。 HITOTSU NI WA KŌ NO TA SHŌ O HAKA RI, KA NO RAI SHO O HAKA RU. Primeiro: refletimos sobre o esforço que nos trouxe esta comida e como ela veio até nós. 二には己が徳行の、全欠を忖って供に応ず。 FUTATSU NI WA ONOREGA TOKU GYŌ NO, ZEN KE TO HAKATTE KU NI ŌZU. Segundo: refletimos sobre nossa virtude e prática e se somos dignos desta oferta. 三には心を防ぎ過を離るることは、貪等を宗とす。 MITSU NI WA SHIN NO FUSEGI TOGA O HANARURU KOTO WA, TON TŌ O SHŪ TO SU. Terceiro: como desejamos a condição natural da mente, para estar livre de apegos precisamos estar livres da cobiça. 四には正に良薬を事とするは、形枯を療ぜんが為なり。 YOTSU NIWA MASANI RYO YAKU O KOTO TO SURU WA, GYŌ KO O RYŌ ZEN GA TAME NARI. Quarto: como um bom remédio, aceitamos esta refeição para sustentar nossas vidas. 五には成道の為の故に、今此の食を受く。 ITSUTSU NI WA JŌ DŌ NO TAME NO YUE NI, IMA KO NO JIKI O UKU. Quinto: para nos tornarmos o Caminho, agora comemos esta refeição. (N.T.)

Page 8: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

8

"Esta refeição é possível graças a inumeráveis esforços. Devemos conhecer como chegou até nós".

O mesmo pode ser dito deste livro, ainda que seja certo que ao manifestar nosso agradecimento às numerosas pessoas que colaboraram nele, talvez tenhamos esquecido de alguém.

Começamos manifestando nosso agradecimento a 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN, o grande patriarca chinês que escreveu o texto original. E às numerosas pessoas que conservaram e transmitiram este texto de cerca de 1200 anos de antiguidade.

Também desejamos expressar nosso profundo agradecimento a 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI, que com suas preleções criou este comentário sobre o poema, e a todos os que o ensinaram e nele influíram.

A todas as pessoas que o ajudaram a construir e financiar Tassajara, o primeiro centro fora da Ásia onde se leva a cabo uma intensiva aprendizagem do 禅 ZEN, e que constituiu o ambiente destas palestras.

Aos numerosos estudantes que formulavam perguntas e responderam às conversas. Aos que transcreveram as palestras gravadas nos cassetes: Marian Derby, Jane Schneider, Peter Schneider e Bill Redican.

Às pessoas que fizeram a revisão preliminar do manuscrito: Richard Baker, Lew Richmond e Peter Schneider.

A Michael Katz, nosso exigente e rigoroso agente literário. A Bernd Bender, Linda Grotelueschen, Jane Hirshfield, Basya Petnick, Bill Redican, Jeffrey Schneider e Sybille Scholz por sua ajuda técnica e sugestões.

A Carl Bielefeldt, Andy Ferguson, Richard Jaffe, Kaz Tanahashi e Steve Tipton por seu decisivo apoio. A Kaz Tanahashi por sua ajuda com o texto chinês e por transcrever os caracteres japoneses. A Bill Redican por suas exigentes perguntas.

A Linda Hesse e Carolyn Bond por sua cuidadosa edição.

Page 9: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

9

A nosso editor Reed Malcolm por seu apoio entusiástico. A Jim Clark, Scott Norton e a equipe da editora Universidade

da Califórnia. E por último, a você, leitor. Que possa apreciar os

ensinamentos deste livro, encarná-los e mantê-los vivos.

Mel Weitsman Michael Wenger 8 de Abril de 1999 Aniversário de Buda

Page 10: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

10

Page 11: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

11

INTRODUÇÃO

Mel Weitsman No verão de 1970 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI deu estas

palestras sobre o 參同会 SANDŌKAI de 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI havia chegado à América em 1959, deixando RINSO-IN, seu templo em 焼津 YAIZU (Japão), para servir como sacerdote da congregação americano-japonesa no templo SOKOJI situado no Numero 1881 da Bush Street, em São Francisco. Durante aqueles anos um grande numero de pessoas afluíam para praticar com ele e nasceu o Centro Zen de São Francisco. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI estava rodeado por tantos estudantes americanos entusiasmados com o 禅 ZEN que em 1969 ele e seus estudantes tiveram que se mudar para um edifício maior situado no numero 300 da Page Street e fundaram lá o templo da Mente de Principiante. Dois anos antes o Centro Zen havia adquirido a colônia de férias de Tassajara com suas fontes termais, que se encontrava ao final de uma poeirenta estrada de 22 quilômetros que serpenteava pelas escarpadas montanhas do Parque Nacional de Los Padres perto da costa central da Califórnia. Ali ele e seus estudantes criaram 禅心 時 ZENSHIN-JI (Mente Zen/ Templo do Coração), o primeiro monastério 禅 ZEN budista da América. Começamos do zero sob a orientação de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI.

Todos os anos no Zen Mountain Center de Tassajara há duas temporadas de retiro nas quais se realiza uma prática intensiva: de outubro a dezembro e de janeiro a março. Estas duas temporadas de prática incluem diariamente muitas horas de座 禅 ZAZEN (meditar sentado com as pernas cruzadas),

Page 12: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

12

preleções, estudo e trabalho físico. Durante este período de retiro os estudantes residem no centro durante todo o tempo. Nos meses de primavera e verão (de maio a agosto) Tassajara está aberto aos visitantes que desejam desfrutar das águas termais e do tranqüilo ambiente que lá se respira. Desta forma, nos meses dos visitantes se arrecadam os fundos necessários para sustentar Tassajara e os estudantes. Durante a temporada estival os estudantes se sentam em 座禅 ZAZEN pela manhã e à tarde e o resto do dia se dedicam à prática do trabalho.

Durante o verão de 1970, quando ocorreram estas preleções, os estudantes apareciam para as cerimônias e as sessões de 座禅 ZAZEN várias vezes ao dia, e além disso preparavam a comida e trabalhavam nas numerosas tarefas que o edifício e a conservação do mesmo requeriam. Durante o dia 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI, de corpo pequeno e frágil na aparência, dedicava-se a posicionar corretamente enormes pedras nas margens de um córrego para evitar a erosão. E à noite nos dava as preleções. Aos que tiveram a sorte de trabalhar com ele, sempre era surpreendente a energia e destreza que manifestava, mesmo na fase em que já era um ancião e se encontrava doente. Passava o dia todo trabalhando sob um calor de quase 40º. Através de seu trabalho nos transmitia sua enorme energia. Podíamos passar o dia inteiro posicionando uma enorme pedra num lugar que julgávamos adequado, mas se por acaso não ficasse bem posicionada, voltávamos a retirá-la no dia seguinte e a posicionávamos de novo.

Naquela época eu era assistente pessoal de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI. No início de nossa prática diária de 座禅 ZAZEN e das cerimônias, eu o seguia até o 禅堂 ZENDŌ levando uma oferenda de incenso. Em meio ao calor que às vezes vazia, cobria sua cabeça com uma toalhinha molhada para refrescá-lo. Naquele verão de 1970 MITSU-SAN, sua esposa, chegou de São Francisco e estava muito preocupada com ele. Sabia que apesar de estar muito enfermo, seu esposo prosseguia

Page 13: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

13

trabalhando em tarefas que requeriam um esforço excessivo. Às vezes, quando ela passava próximo de onde ele estava trabalhando, ele fingia estar descansando e quando ela se afastava recomeçava a tarefa de mover pedras. Numa ocasião ela o repreendeu dirigindo-se a ele com o familiar nome reservado a um abade: “HOJO-SAN! Está a encurtar sua vida!”, ao que ele respondeu: “Se não a encurtasse, meus estudantes não cresceriam”.

Ainda que houvesse muitas coisas a fazer, ele nunca se apressava. Era uma pessoa centrada tanto no equilíbrio como no tempo. Sempre me dava a impressão de que se entregava por completo à atividade que realizava. E encontrava sempre o tempo para realizá-la com profundidade. Um dia, mostrou-me como se lavava um 着物 KIMONO, movendo-se lentamente por todo o perímetro da peça usando a parte que segurava com uma das mãos para esfregar a parte que estava na outra até lavá-lo por completo. Numa ocasião me disse: “Vocês têm o ditado ‘matar dois pássaros com um só tiro’, mas nossa forma de agir é matar só um pássaro com cada tiro”.

Em 1969 os estudantes, com muito cuidado, haviam construído a cozinha de pedra. Em Tassajara havia por todos os cantos rochas e pedras de todos as formas e tamanhos. Cortamos o teto de um automóvel velho e o usamos como trenó para transportar as enormes pedras. Convertemo-nos em experts na construção de muros e escadarias de pedra. Nossa equipe de carpintaria era dirigida por um jovem carpinteiro chamado Paul Discoe, que mais tarde foi estudar no Japão e se converteu em expert na carpintaria japonesa. As obras de Edward Espe Brown, “O livro do pão de Tassajara” e “Cozinha Zen”, também foram escritos nesta época, assim como os livros clássicos de Bill Shurtleff sobre o 豆腐 TŌFU, o 味噌 MISO e o TEMPEH2. Havia

2 O TEMPEH é uma comida originária da Indonésia, feita a partir de uma massa de soja parcialmente cozida, parcialmente fermentada e que é usada como ingrediente principal de várias receitas. (N.T.)

Page 14: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

14

no ar uma maravilhosa sensação de pioneirismo. O 禅 ZEN era a meditação sentada, as cerimônias e o trabalho. Esta combinação fez com que a prática proporcionasse uma sensação de integridade. Encontrávamos-nos nas montanhas construindo um monastério apenas com nossas mãos. Sentíamos-nos imensamente agradecidos por este lugar, por cada um de nós, por nosso mestre e por todas as pessoas que apoiavam nosso esforço. Também sentíamos que não só estávamos fazendo algo por nós, mas também para os demais.

Ainda que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI tenha estudado inglês durante muitos anos no Japão, demorou vários anos até que conseguisse se comunicar com fluência na América. Durante os doze anos em que esteve neste país, foi dominando cada vez melhor o idioma, ainda que freqüentemente tivesse que ficar procurando a expressão que justamente correspondesse a seu pensamento, até que finalmente a encontrasse. Mas inclusive enquanto a procurava, era sempre eloqüente. Na verdade, houve um caso em que uma pessoa que o ouviu dar uma palestra em japonês e outra em inglês no mesmo dia, achou que a preleção em inglês havia sido mais inovadora e convincente, talvez até pelo fato do inglês não ser sua língua materna.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI deu centenas de palestras. Falando mais formalmente, uma palestra era uma espécie de apresentação informativa, ao passo que um 提唱 TEISHŌ oferece o próprio Dharma do mestre ou sua compreensão direta, usando freqüentemente um 公案 KOAN ou um texto. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI raramente utilizava um texto, apesar de que com freqüência citasse algum. As preleções de um mestre 曹洞 SŌTŌ podem ser uma mescla na qual o mestre dá a palestra e também expressa sua própria interpretação de determinado texto, como é o caso de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI nesta obra. Durante a preleção os estudantes estão sentados com as pernas cruzadas na postura de 座禅 ZAZEN sem apoiar as costas em nada, com a

Page 15: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

15

coluna alinhada e a mente aberta. É costume que o mestre dê uma preleção toda a semana e às vezes até com maior freqüência. Durante os compridos retiros, chamados 攝心 SESSHIN, 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI falou diariamente, e em algumas ocasiões, mais de uma vez no mesmo dia.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI pertencia a linha de transmissão do mestre 禅 ZEN 道元 DŌGEN (1200-1253) e se havia comprometido a introduzir a forma de praticar de 道元 DŌGEN no Ocidente. Ainda que recomendasse o estudo dos numerosos textos de 道元 DŌGEN (naquela época apenas uns poucos haviam sido traduzidos), o que para ele era mais importante era o espírito de 道元 DŌGEN. Da mesma forma que 道元 DŌGEN, 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI não considerava que o 禅 ZEN fosse um ensinamento ou uma prática distinta do Buddhadharma3 ou que a escola 曹洞 SŌTŌ do 禅 ZEN fosse superior ou inferior a qualquer outra. Descreveu nossa Via como o Hīnayāna, (o Pequeno Veículo), praticado com uma mente Mahāyanā (o Grande Veículo). Em meados dos anos sessenta começamos a gravar as preleções de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI. Naquela época, ele ia visitar os pequenos grupos 禅 ZEN afiliados ao Centro Zen que havia em Mill Valley e Los Altos. Estava decidido a converter algumas palestras que havia dado em Los Altos na base de um livro, para que um número maior de pessoas pudesse conhecer seus ensinamentos. Estas preleções se converteram no material bruto utilizado para escrever a famosa obra “Zen Mind,

3 Os termos em sânscrito foram grafados em itálico, com os sinais diacríticos mais comuns, que ajudam a obter uma compreensão melhorada de sua pronúncia. (N.T.)

Page 16: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

16

Beginner’s Mind” 4 , traduzida para vários idiomas e que na atualidade está a ponto de chegar a sua quadragésima edição em inglês. Nestas espontâneas palestras tratou de muitos temas. Mas fundamentalmente sua mensagem foi a de como podemos nos desprender de nosso egocentrismo e nos estabelecer na 大心 DAISHIN ( a Grande Mente ou grande eu), como praticar de uma maneira formal e como aplicar e encontrar nossa prática na informalidade de nossa vida cotidiana. A parte do título “Mente de Principiante”, refere-se à singela atitude de simplesmente estar presente a cada momento, aceitando a realidade não dual de cada momento com uma mente clara e aberta, procurando não cair em opiniões dualistas nem em idéias falsas e permanecendo aberto a qualquer possibilidade. As palestras foram gravadas por Marian Derby, que dirigia o grupo 禅 ZEN de Los Altos e que teve a idéia de escrever este livro. As transcrições foram revisadas por Trudy Dixon, uma discípula muito próxima, e Richard Baker, que sucedeu a 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI convertendo-se no segundo abade do Centro 禅 ZEN. Os editores de “Mente Zen, Mente de principiante” recolheram as partes mais interessantes e únicas das palestras de Los Altos e as publicaram em capítulos curtos. Cada capítulo constitui uma jóia de sabedoria. As preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI, apresentam, ao contrário, um contexto dos ensinamentos totalmente distinto e portanto emanam uma sensação muito diferente. Nesta ocasião, 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI dedicou-se a falar sobre um antigo poema chinês, linha por linha, palavra por palavra, durante umas seis semanas (de 27 de maio a 06 de julho de 1970). O 參同会 SANDŌKAI de 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN é cantado na liturgia do Centro 禅 ZEN e também nos monastérios japoneses

4 Editada em português como “Mente Zen, Mente de Principiante”, Editora Palas Athena, 1994. (4ª edição – 2002) (N.T.)

Page 17: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

17

da tradição 曹洞 SŌTŌ. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI quis que o compreendêssemos com clareza. Para ele foi uma tarefa prazerosa. Colocou uma placa de ardósia junto a seu assento e no decorrer das preleções foi escrevendo e explicando os ideogramas chineses. (Para que a leitura ficasse mais amena foram eliminadas quase todas as detalhadas explicações de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI sobre cada ideograma chinês).5 As preleções vespertinas se davam no 禅堂 ZENDŌ. À noite fazia tanto calor que quando nos levantávamos, o 坐蒲 ZAFU estava empapado de suor. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI deu no total doze preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI aos estudantes de Tassajara. Nesta obra foi incluída uma preleção a mais que corresponde a que foi dirigida a um grupo de estudantes de filosofia que foram visitar o Centro, a qual adota uma forma de resumo ou perspectiva geral. Também foi incluída uma pequena preleção que foi dada uma manhã durante uma sessão de 座禅 ZAZEN. Como estas preleções foram dadas em seqüência, foram mais difíceis de publicar do que as de “Mente Zen, Mente de Principiante”. A voz das preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI nem sempre soa como a voz de “Mente Zen, Mente de Principiante”, em parte porque 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI fala aqui sobre um texto, mas também pelo enfoque que os editores deram ao apresentá-lo. A princípio queríamos que o texto fosse o mais fiel possível ao original, mas a medida em que íamos trabalhando com as preleções nos dávamos conta que às vezes o relato textual devia ser modificado para que fosse coerente.

5 O que certamente constitui um empobrecimento da obra, e que na medida do possível procurei desfazer nesta tradução, colocando a maioria dos termos chineses e japoneses também em ideogramas, o que não foi feito no original. (N.T.)

Page 18: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

18

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI de vez em quando apresentava os mesmos temas durante uma série de preleções, mas nem sempre o fazia com o mesmo enfoque. Por isso os editores tiveram que escolher dentre as diferentes formas em que começou uma frase em distintas ocasiões. Às vezes tiveram que preencher os vazios que apareciam entre frases vagas ou expressas com pouca clareza. E com certa freqüência também tiveram que decidir se deixavam sem correção uma frase expressa com a forma de falar peculiar de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI ou se a corrigiam para que a frase fosse mais clara e coerente. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI também inventava suas próprias frases para se expressar de uma forma menos dualista. Por exemplo, podia usar a frase “As coisas tal como é” para expressar a natureza fundamental da realidade, algo que está além das palavras. Mas também usava a frase “As coisas tal como são” para se referir à nossa habitual forma diferenciadora e dualista de pensar e perceber (bom/mau, correto/incorreto). Em “As coisas tal como é”, ao usar o singular e o plural na mesma frase, fazia que nossa corriqueira forma de pensar se ampliasse. Também foi inventada a palavra “independency”, que foi utilizada para expressar a natureza dependente, e ao mesmo independente de nossa vida. Quando em certa ocasião perguntei a ele sobre isso e lhe disse que em inglês havia as palavras “independent” (independente), “dependent” (dependente) e “interdependent” (interdependente), mas que nunca havia ouvido a palavra “independency”, ele se pôs a rir e me disse que somos totalmente independentes e, ao mesmo tempo, totalmente dependentes. Se alguém crê ser totalmente independente, incorre num erro. E se crê ser totalmente dependente, também se equivoca. Aparentemente a palavra adequada neste caso seria “interdependent” (interdependente), mas 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI usou “independency” para expressar esta qualidade

Page 19: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

19

ambivalente. Disse que o segredo do 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN era: “Sim, mas...” Procuramos fazer a edição de forma que a linguagem de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI fosse a mais clara e fluida possível sem modificar ou trair sua forma pessoal de se expressar. Numa preleção 禅 ZEN - um 提唱 TEISHŌ - a presença do orador influi poderosamente na experiência do estudante. Os editores ao trabalhar somente com as palavras devem tentar acima de tudo não passar por cima desta qualidade ambivalente quando ela ocorre e não eliminá-la em favor de uma apresentação gramaticalmente perfeita. Com freqüência, as expressões pouco convencionais de 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI exercem mais impacto do que se ele houvesse se expressado de forma “correta”.6 Em vários casos conservou-se o uso que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI fazia dos pronomes masculinos. Ainda que procedesse de uma cultura que tradicionalmente favorecia os homens, ele era inusitado no sentido de que se esforçava muito em respeitar igualmente a prática dos homens e das mulheres sem discriminá-las em absoluto. Também respeitava os valores de longa tradição e a relação que existe entre as mulheres e os homens. Ainda que em suas preleções normalmente usasse o “ele” ao se referir a um estudante, fazia-o assim simplesmente porque naqueles tempos era costume, já que freqüentemente dizia que ainda que fossemos um homem ou uma mulher, deveríamos ser totalmente nós mesmos, e que quando cada um é o que é, o 禅 ZEN é o 禅 ZEN.

6 Esta tradução procurou manter este espírito, principalmente tentando manter ao máximo o clima coloquial que “tempera” estas preleções. (N.T.)

Page 20: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

20

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI faleceu em 04 de dezembro de 1971 de um câncer, um ano e meio depois de oferecer seus ensinamentos sobre o 參同会 SANDŌKAI. Tinha sessenta e sete anos. Quando disse que os mestres da tradição 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN davam as preleções sobre o 參同会 SANDŌKAI no ocaso de suas vidas, devia pressentir que ia morrer proximamente.

Page 21: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

21

石頭 希遷 SEKITŌ KISEN e o 參同会 SANDŌKAI

石頭 希遷 SEKITŌ KISEN (em chinês, Shitou Xiqian, 700-790), autor do 參 同 会 SANDŌKAI, nasceu na província de 广东 7 Guangdong, no sul da China, no princípio do século VIII. Aquela foi uma época de formação na qual o 禅 ZEN se fez mais popular e na qual se expressou, a princípio, como uma escola e uma linguagem únicos. As questões sobre a natureza e as origens do 禅 ZEN e os relatos que se conservaram sobre Bodhidharma,8 o Primeiro Patriarca chinês do 禅 ZEN (470-543), remontam a esta época.

7 Em chinês tradicional, 廣東. (N.T.) 8 Em japonês, 菩提達摩 BODAIDARUMA, Putidamo em chinês. (N.T.)

Page 22: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

22

Foi também durante este período que o 禅 ZEN ficou conhecido por destacar a experiência direta da realidade e a prática da meditação sentada. Mas surgiram disputas sectárias entre a Escola 禅 ZEN do Norte, que ensinava a doutrina de uma prática gradual e paulatina, e a Escola 禅 ZEN do Sul, que ensinava que a obtenção da Iluminação é súbita e imediata. Cresceram os debates acerca de qual linhagem era superior. Do ponto de vista atual, as diferenças entre as duas escolas parecem exageradas, já que ambas enfatizavam tanto uma realização abrupta como uma constante cultivação, sobretudo através da meditação sentada. Na realidade, a Escola do Norte originalmente foi muito popular e influente, mas ao cabo de várias gerações sua influência e identidade como escola distinta foram decaindo. Não se sabe grande coisa da vida de 石頭 SEKITŌ. O primeiro evento registrado é um encontro que teve, com a idade de doze anos, com 大鑑 慧能 DAIKAN ENŌ (em chinês, Dajian Huineng, 638-713), o Sexto Patriarca. Quando este precoce jovenzinho se aproximou de 慧能 ENŌ, o mestre lhe disse zombeteiro: “Se você se converter em meu discípulo, ficará [tão feio] como eu”. 石頭 SEKITŌ sorriu e respondeu: “De acordo”. Ao cabo de dois anos era um dos discípulos presentes no leito de morte de 慧能 ENŌ. Aparentemente, 石頭 SEKITŌ se dedicou basicamente a praticar sozinho nos quinze anos seguintes e depois deste período decidiu estudar com 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI (Quingyuan Xingsi, 660-740), um dos principais discípulos de 慧能 ENŌ. Depois de entabular seu primeiro diálogo com ele, 青原 SEIGEN disse de seu novo discípulo: ”No meu grupo já tenho muitos animais de dois cornos, mas tudo o que eu precisava era de um unicórnio”. No ano 742, 石頭 SEKITŌ construiu uma choça sobre uma grande saliência rochosa do Monte 衡山 Hengshan, na província

Page 23: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

23

de 湖南 Hunan. O nome de 石頭 SEKITŌ, que significa “cabeça de pedra”, vem de ficar sentado em 座禅 ZAZEN na saliência rochosa. 永 平 道 元 EIHEI DŌGEN, que introduziu o 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN no Japão cinco séculos mais tarde, escreveu o seguinte sobre 石頭 SEKITŌ: “O grande mestre Shitou ( 石 頭 SEKITŌ) praticou

座禅 ZAZEN numa saliência rochosa sobre a qual construiu uma

choça de palha. Permaneceu dia e noite sentado em 座禅 ZAZEN sem dormir. Ainda que não tenha se esquecido de trabalhar, ao longo do dia não deixou de fazer座禅 ZAZEN um só momento. Agora os descendentes de seu mestre Qingyuan (青原 SEIGEN) disseminaram-se por toda a China beneficiando tanto os humanos como os devas9. Isto foi possível graças a sólida e contínua prática e a grande determinação de Shitou (石頭 SEKITŌ).” Conservaram-se vários intercâmbios dialéticos entre 石頭 SEKITŌ e seus discípulos. Em um destes encontros, 天皇 道悟 TENNŌ DŌGO (Tian Huang Daowu, 748-827), discípulo de石頭 SEKITŌ, perguntou a seu mestre quem era o herdeiro adequado do Sexto Patriarca: “Quem alcançou o ensinamento essencial do Sexto Patriarca?”, perguntou 道悟 DŌGO. “Aquele que compreende o Buddhadharma”, respondeu 石頭 SEKITŌ.

9 Deuses dos paraísos celestiais. (N.T.)

Page 24: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

24

“Você logrou alcançá-lo?”, inquiriu 道悟 DŌGO. “Eu não compreendo o Buddhadharma”, respondeu 石頭 SEKITŌ. Em outra ocasião, um monge perguntou a 石頭 SEKITŌ: “Como se alcança a emancipação?” 石頭 SEKITŌ respondeu: “Quem te aprisionou?” O monge perguntou: “O que é a Terra Pura?”10 石頭 SEKITŌ respondeu: “Quem te submergiu na ignorância?” O monge perguntou: “O que é o Nirvāna?” 石頭 SEKITŌ respondeu: “Quem te embrulhou no nascimento e na morte?”

10 Terra Pura: 浄土 JŌDO. Nos séculos I e II d. C., a especulação Mahāyāna desenvolveu uma cosmologia que era muito mais extensa do que qualquer outro tema discutido nos primeiros tempos do Budismo. Os Mahāyanistas propunham a existência de mundos sem fim, cada um dos quais albergava Buddhas e Bodhisattvas. Estes “territórios de Buddha” são reinos paradisíacos e cada um deles é presidido por um Buddha, sendo o mais célebre o paraíso ocidental conhecido por Sukhavati (極楽 GOKURAKU), a terra “feliz” ou “pura”.

Esta é a morada do Buddha Amitabha 阿弥陀仏 AMIDA-BUTSU ou

無量光仏 MURYŌKŌBUTSU. Trata-se de um paraíso onde “não há dores físicas nem mentais, cheio de deuses e de homens que nunca renascem exceto como Bodhisattvas.” (N.T.)

Page 25: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

25

Falava-se na época que um monge seguiria sendo um ignorante a não ser que visitasse o Sul do Lago, o lugar onde vivia mestre石頭 SEKITŌ, e o Oeste do Rio, o lugar onde vivia mestre 馬祖 BASO (em chinês, Mazu, 709-788). As cinco escolas do 禅 ZEN 11 se desenvolveram a partir destes dois

11 Retornando um pouco no tempo, dentre os sucessores do Sexto Patriarca, 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ e 青原行思 SEIGEN GYŌSHI são de especial importância para a história subseqüente do 禅 ZEN, pois a partir de suas linhagens foram produzidas todas as posteriores tradições da corrente chinesa, conhecidas coletivamente como “As Cinco Casas”. Estas por sua vez são assim conhecidas:

1) 臨濟 RINZAI (Linji), fundada por 臨濟 義玄 RINZAI GIGEN (f. 866), descendente de 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ; existe até hoje.

2) 潙仰 IGYŌ (Guiyan), fundada por 潙山 靈祐 ISAN REIYU (711-853) e seu discípulo 仰山 慧寂 KYŌZAN EJAKU (807-883), também descendentes de 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ. Declinou e desapareceu após cerca de 150 anos;

3) 曹 洞 SŌTŌ (Caodong), fundada pelos descendentes de 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI e de 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN, 洞 山 良 价 TŌZAN RYŌKAI (807-869) e seu discípulo 曹山 本寂 SŌZAN HONJAKU (840-901). Desapareceu na China durante a dinastia Ming (1368–1644), permanecendo ativa no Japão até hoje;

4) 雲門 UNMON (Yunmen), fundada por 雲門 文偃 UNMON BUN’EM (864-949), também descendente de 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI. Depois de florescer durante séculos principalmente entre membros da elite educada, passou por um lento processo de decadência, desaparecendo na era Yuan (1280-1368);

5) 法眼 HŌGEN (Fayan), fundada também por um descendente de 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI, 法眼 文益 HŌGEN MON’EKI (885-958). Devido a tendências sincréticas, após alguns séculos desapareceu como escola distinta, tendo sido absorvida pelas demais.

Page 26: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

26

grandes mestres que, em sua época, encarnaram realmente a Via do 禅 ZEN. Ainda que não haja qualquer informação registrada de que tenham chegado a se conhecer pessoalmente, cada um deles enviava seus discípulos a estudar com o outro. O seguinte exemplo mostra como se relacionavam com 藥山惟儼 YAKUSAN IGEN (em chinês, Yueshan Weiyan, 745-828), que mais tarde se converteu num dos sucessores de 石頭 SEKITŌ. 藥山 YAKUSAN foi visitar 石頭 SEKITŌ e lhe pediu: “Compreendo os ensinamentos das escrituras budistas, mas ouvi dizer que no sul [os praticantes do 禅 ZEN] se concentram diretamente na mente humana. Percebem sua natureza e se convertem em Buddhas. Mas não terminei de compreender. Peço humildemente que me explique”. 石頭 SEKITŌ respondeu-lhe: “Este método não serve e o outro tampouco adianta. Não servem ambos e nem um só. Que tal lhe parece?” 藥山 YAKUSAN não soube o que responder. 石頭 SEKITŌ disse-lhe: “Vá ver 馬祖 BASO.” 藥山 YAKUSAN, depois de apresentar seus respeitos a 馬祖 BASO, formulou a mesma pergunta. 馬祖 BASO respondeu-lhe: “Às vezes consigo que “ele” arqueie as sobrancelhas e pestaneje, e outras vezes, não. Que te parece?” Ao ouvir estas palavras, 藥山 YAKUSAN experimentou o Grande Despertar e se prosternou.

A escola 臨濟 RINZAI (Linji) posteriormente dividiu-se nas linhagens de 楊岐 方會 YOGI HŌE - (992-1049) e 横龍 慧南 ORYŌ E'NAN (1002-1069), as quais, conjuntamente com As Cinco Casas, perfazem As Sete Escolas. (N.T.)

Page 27: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

27

馬祖 BASO perguntou-lhe: “Que verdade que você viu que te impulsionou a se prosternar?” 藥山 YAKUSAN respondeu-lhe: “Quando eu estava com 石頭 SEKITŌ, era como um mosquito se lançando contra um boi de ferro.” 馬祖 BASO disse-lhe: “Já que você alcançou a Verdade, guarde-a bem dentro de ti. Mas seu mestre é 石頭 SEKITŌ.” Outro intercâmbio dialético entre 石 頭 SEKITŌ e 藥山 YAKUSAN mostra um verdadeiro encontro entre mestre e discípulo. Um dia, ao ver que 藥山 YAKUSAN estava sentado em座禅 ZAZEN, 石頭 SEKITŌ lhe perguntou: “O que você está fazendo aqui?” 藥山 YAKUSAN respondeu-lhe; “Não estou fazendo nada.” 石頭 SEKITŌ disse-lhe: “Neste caso, está sentado ociosamente.” 藥山 YAKUSAN argumentou: “Se estivesse sentado ociosamente estaria fazendo algo.” Ao que 石頭 SEKITŌ replicou: “Você diz que não está fazendo nada. Em que consiste este ‘Não fazer’?” 藥山 YAKUSAN respondeu-lhe; “Nem sequer os dez mil sábios o sabem.” O 參同会 SANDŌKAI (em chinês, Cantongqi) trata sobre a divisão que surgiu entre a Escola do Norte e a Escola do Sul, e sobre outras dicotomias como a unidade e multiplicidade, a luz e a escuridão, a identidade e a diferença. (No clima científico atual,

Page 28: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

28

石頭 SEKITŌ poderia ter escrito sobre ondas e partículas). O poema, composto de quarenta e quatro versos pareados dois a dois, segue freqüentemente a pauta de distinguir primeiro a descontinuidade, depois a continuidade e, por último, a complementaridade. Um texto anterior taoista sobre o 易經 Yi Jing (I Ching) se

chamava 參同会 SANDŌKAI e o poema de 石頭 SEKITŌ faz alusão aos temas taoistas referentes à natureza e à mudança. Também mostra a influência da escola 華嚴 KEGON (a escola de budismo japonês correspondente à escola chinesa Huayan, ou a Escola do Ornamento Floral) que ensina a igualdade e a interdependência de todas as coisas. É evidente que para a linhagem 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN o 參 同 会 SANDŌKAI é fundamental. O poema é cantado diariamente nos templos da escola 曹洞 SŌTŌ de todo o mundo e quase sempre que se celebra a cerimônia para comemorar o aniversário da morte do fundador de um templo. Três gerações depois de 石頭 SEKITŌ, 洞山 良价 TŌZAN RYŌKAI (em chinês Dongshan Liangjie, 807-869), escreveu o 寶鏡三昧 HOKYŌ ZANMAI (em chinês Baojing Sanmei)12, que desenvolve idéias do參同会 SANDŌKAI. O ensinamento dos Cinco Estágios13 também procede do 參同会 SANDŌKAI.

12 O título completo do poema é 寶鏡三昧歌 HŌKYŌ ZANMAI KA (Baojìng Sanmei Ge), e se encontra no T48n2004-p0279a12. Veja também a nota nº 18. (N.T.) 13 Em japonês, 五位 GO I. Correspondem aos princípios fundamentais da lógica 禅 ZEN, articulando os silogismos em cinco etapas sendo A o primeiro termo, relacionado com os fenômenos (色 SHIKI), a noção de

Page 29: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

29

obliqüidade ou de diferença; e B o segundo termo: a essência ou o vazio (空 KŪ), a noção de retidão ou de igualdade. Temos assim, sucessivamente:

I. A entra em B. II. B entra em A. III. B é B. IV. A é A. V. A e B se interpenetram. Em japonês, teríamos: I. 正中偏 SHŌ CHŪ HEN. II. 偏中正 HEN CHŪ SHŌ. III. 正中來 SHŌ CHŪ RAI. IV. 兼中至 KEN CHŪ RAI.

VI. 兼中到 KEN CHŪ TŌ. 正 SHŌ significa substância do cosmos, o Poder Cósmico

fundamental, o reto, o justo, a essência. Corresponde a 空 KŪ, a Vacuidade. 偏 HEN designa os fenômenos, o curvo, o oblíquo, o parcial. É 色 SHIKI, os fenômenos.

Podem ser estabelecidas assim as seguintes similaridades:

Page 30: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

30

Gostaria de concluir este texto com o último par de versos do 參同会 SANDŌKAI, cuja mensagem pode estar escrita no 板 HAN, a tábua de madeira com a qual se anuncia - ao ser percutida ritmicamente - o inicio e o fim da sessão de meditação nos templos e monastérios 禅 ZEN:

偏 HEN O oblíquo, a diferença.

色 SHIKI. Os fenômenos

中 CHŪ entra em

即 是 SOKU ZE são em si

正 SHŌ o reto, a igualdade.

空 KŪ a essência.

正 SHŌ O reto, a igualdade

空 KŪ A essência

中 CHŪ entra em

即 是 SOKU ZE é em si

偏 HEN o oblíquo, a diferença.

色 SHIKI. o fenômeno.

兼 KEN O oblíquo, a diferença.

色 SHIKI. Os fenômenos

中 CHŪ entra em (é)

即 是 SOKU ZE são

至 RAI o oblíquo, a diferença.

色 SHIKI. os fenômenos.

正 SHŌ O reto, a igualdade

空 KŪ A essência

中 CHŪ entra em (é)

即 是 SOKU ZE é

來 RAI o reto, a igualdade.

空 KŪ a essência.

兼 KEN 中 CHŪ 到 TŌ

A CHEGADA DE AMBOS À UNIDADE.

Este quinto princípio resume, sintetiza e supera os quatro anteriores. (N.T.)

Page 31: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

31

謹んで参玄さの人にもうす、 TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU,

Vocês que estudam o mistério,

respeitosamente e com urgência eu os exorto:

光陰虚しく度ることなかれ。 KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE.

Não passem os dias e as noites em vão!

NOTAS PARA O LEITOR

Page 32: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

32

Como 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI usava várias traduções do參同会 SANDŌKAI disponíveis naquela época - principalmente a de R.H. Blyth e a de Reiho Matsunaga - e também traduzia diretamente do original em caracteres chineses, seu comentário não corresponde a nenhuma tradução existente e nem se ajusta por completo a qualquer uma destas enumeradas. No texto que apresentamos a seguir foi utilizada como fonte a tradução inglesa da 曹洞 宗 SŌTŌ SHU (Escola SŌTŌ) Liturgy Conference oferecida em Green Gulch Farm, em Sausalito (Califórnia) em 1997, ainda que com algumas pequenas correções. Tão pouco encontramos um título que traduzisse perfeitamente o significado de 參同会 SANDŌKAI. O título proposto pela 曹洞 宗 SŌTŌ SHU Liturgy Conference é “A harmonia entre o diferente e o igual”14. Os problemas inerentes a qualquer tradução de um texto tão profundo recordam uma linha do 寶鏡三昧 HOKYŌ ZANMAI15: “O significado não se acha nas palavras, mas elas encorajam àquele que procura”. Ainda que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI não tenha feito por completo sua própria tradução do 參同会 SANDŌKAI, em suas

14 Outras traduções possíveis: “Harmonia entre a diferença e a igualdade”. “Fusão da diferença e da igualdade”. (Thomas Cleary) “Identidade do relativo e do absoluto”. (Dennis Genpo Merzel) “Ode à identidade”. (D.T. Suzuki). 15 A citação em questão corresponde a seguinte passagem:

意不在言 來機亦赴

意言にあらざれば、來機またおもむく。 KOKORO KOTO NI ARAZAREBA, RAIKI MATA OMOMUKU.

A mente não se expressa em palavras,

mas elas encorajam àquele que procura. (N.T.)

Page 33: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

33

preleções foi-nos traduzindo passo a passo cada um dos caracteres do poema. Depois de depurar estas preleções e outras fontes que não foram incluídas na obra (por exemplo, discussões privadas que 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI manteve com os estudantes), criamos uma outra versão do 參同会 SANDŌKAI que foi incluída no final deste livro. Como 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI traduziu os mesmo caracteres e frases de formas distintas, dependendo do contexto de sua preleção, a versão que compusemos é apenas uma aproximação daquela que poderia ter sido escrita por ele. Os mestres chineses citados no livro foram apresentados com o nome equivalente em japonês16 acompanhado do nome original chinês entre parênteses. Para tanto, os nomes chineses receberam sua transliteração no sistema 拼音 Pinyin. Segundo este sistema, 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN, o autor do poema, é Shitou Xiqian. Mas no sistema Wade-Giles, mais antigo, seria Shih-T’ou Hsi -Ch’ien17. Para ajudar o leitor a seguir os diversos

16 Sempre que possível, os termos em japonês foram grafados em ideogramas (漢字 KANJI) ou nos silabários auxiliares (平仮名 HIRAGANA e 片仮名 KATAKANA), seguidos da transliteração fonética ou romanização (ローマ字 RŌMAJI) no Sistema Hepburn (ヘボン式 HEBON SHIKI), um dos principais sistemas de romanização do japonês, desenvolvido pelo reverendo James Curtis Hepburn para seu Japanese-English Dictionary, editado em 1867. Este sistema foi subseqüentemente revisado e chamado修正ヘボン式 SHŪSEI HEBON-SHIKI 修正ヘボン式. Esta versão revisada às vezes também é chamada de 標準式 HYŌJUN-SHIKI, “estilo padrão”. A versão original e as variantes revisadas deste sistema permanecem sendo o mais popular método de transcrição do japonês, permitindo uma compreensão mais exata da pronúncia do idioma. (N.T.) 17 拼音 Pinyin significa literalmente, “colocar sons juntos”. Em chinês geralmente se refere ao 汉语拼音 Hànyǔ Pīnyīn, que é o sistema de romanização do mandarin, aprovado em 1958 e adotado a partir de 1979

Page 34: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

34

mestres e linhagens mencionados na obra, incluímos ao final do livro uma tabela das linhas de transmissão. A transcrição dos caracteres do 參同会 SANDŌKAI em japonês, tão habilmente realizada foi-nos brindada amavelmente por KAZUAKI TANAHASHI. A versão chinesa do 參同会 SANDŌKAI, foi reproduzida do 大正新脩大蔵経 TAISHŌ SHINSHŪ DAIZŌKYŌ, uma edição do cânone completo sino-japonês publicada por 順次郎 高楠 JUNISHIRŌ TAKAKUSU e 海旭 渡部 KAIGYOKU WATANABE.18

pela Republica Popular da China. Este sistema substituiu outros sistemas mais antigos, entre eles o Wade-Giles. (N.T.) 18 Entre os anos de 1924 e 1934 um consórcio de eruditos japoneses sob a direção de 順 次 郎 高 楠 JUNISHIRŌ TAKAKUSU (1866-1945), 海旭 渡部 KAIGYOKU WATANABE (1872-1932) e 亦妙小野 GEMMYŌ ONO (1884-1939) produziu uma edição crítica do cânone budista Sino-Japonês que desde então tem servido como edição padrão para as citações de textos budistas. Seu nome completo, 大正 新脩 大蔵経 TAISHŌ SHINSHŪ DAIZŌKYŌ ( Grande Coletânea de Escrituras Recentemente Compiladas Durante a Era TAISHŌ, [1912-1925]) é freqüentemente abreviado para 大正 TAISHŌ ou “T.” Compreende um total de 100 grossos volumes que contém um total de 3360 obras, compiladas a partir das edições anteriores dos cânones chineses, coreanos e japoneses, além de obras que não constavam nestas versões, como obras compostas no Japão e excluídas de versões mais antigas do cânone japonês, textos ilustrados das tradições esotéricas japonesas e reimpressões de setenta e sete catálogos de cânones anteriores. O 參同会 SANDŌKAI está relacionado no Volume 48 obra 2006, e recebe a identificação T48n2006p0327a14-b07. Uma reprodução do 參同会 SANDŌKAI no formato digitalizado do 大正 TAISHŌ se encontra reproduzida no APÊNDICE 01, ao final do livro. (N.T.)

Page 35: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

35

Page 36: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

36

參同会

SANDŌKAI

Page 37: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

37

A HARMONIA ENTRE O DIFERENTE E O IGUAL

Page 38: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

38

A mente do grande sábio da Índia, tem sido transmitida intimamente

de Oeste para Leste.

Apesar de que as faculdades humanas possam ser inteligentes ou tontas,

na Via não há Patriarcas do Norte ou Patriarcas do Sul.

A fonte espiritual brilha claramente na luz,

os afluentes fluem na escuridão.

Apegar-se aos fenômenos é uma ilusão, aceitar a identidade não é a Iluminação.

Os objetos dos sentidos interagem e ao mesmo tempo não interagem.

A intenção produz implicação.

e, sem embargo, cada fenômeno mantém-se em seu próprio lugar.

Page 39: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

39

As imagens variam em qualidade e forma, os sons podem ser prazerosos ou

desagradáveis.

As palavras refinadas e as ordinárias não se diferenciam na escuridão,

as frases claras e as obscuras distinguem- se na luz.

Os quatro elementos regressam à sua natureza,

tal como uma criança regressa à sua mãe.

O fogo aquece, o vento move, a água molha, a terra é sólida.

Olhos e imagens, ouvidos e sons, nariz e odores, língua e sabores.

Cada um e todos os fenômenos

dependem destas raízes, são como as folhas de uma árvore.

O tronco e os ramos compartilham

Page 40: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

40

a mesma essência, o venerado e o vulgar se expressam

de sua própria maneira.

Na luz há obscuridade, mas não a veja só como obscuridade.

Na obscuridade há luz,

mas não a veja só como luz.

A luz e a escuridão se opõem uma a outra, como o pé direito e o esquerdo ao caminhar.

Cada um das miríades de fenômenos

tem seu próprio mérito, expresso de acordo com sua função e lugar.

Os fenômenos existem como uma caixa que

perfeitamente se ajusta à sua tampa, princípio igual a quando duas flechas se

encontram em pleno vôo, ponta com ponta.

Page 41: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

41

Ao ouvir estas palavras, você deve compreender seu significado;

não estabeleça suas próprias normas.

Se não for capaz de compreender a via que tem diante de si, como poderá reconhecê-la

ao caminhar por ela?

A prática nada tem a ver com longe ou perto, mas se você se confundir,

montanhas e rios obstruirão seu passo.

Vocês que estudam o mistério, respeitosamente e com urgência eu os exorto:

não passem os dias e as noites em vão!

Traduzido a partir da versão em inglês da 曹洞 宗 SŌTŌ SHU (Escola SŌTŌ) Liturgy Conference oferecida em Green Gulch Farm, em Sausalito (Califórnia) em 1997; foram feitas algumas pequenas correções

VERSÃO ORIGINAL EM CHINÊS

Page 42: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

42

參同会

竺土大仙心 東西密相付 人根有利鈍 道無南北祖 霊源明皎潔 枝派暗流注 執事元是迷 契理亦非悟 門門一切境 迴互不迴互 迴而更相渉 不爾依位住 色本殊質象 聲元異樂苦 暗合上中言 明明清濁句 四大性自復 如子得其母 火熱風動搖 水濕地堅固 眼色耳音聲 鼻香舌鹹醋

Page 43: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

43

然依一一法 依根葉分布 本末須歸宗 尊卑用其語 當明中有暗 勿以暗相遇 當暗中有明 勿以明相覩 明暗各相對 比如前後歩 萬物自有功 當言用及處 事存函蓋合 理應箭鋒哘 承言須會宗 勿自立規矩

觸目不會道 運足焉知路 進歩非近遠 迷隔山河固

謹白參玄人 光陰莫虚度

Page 44: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

44

VERSÃO DA 曹洞宗 SŌTŌ-SHŪ EM JAPONÊS, COM A CORRESPONDENTE

TRANSLITERAÇÃO FONÉTICA EM RŌMAJI

參同会 SANDŌKAI

竺土大仙の心、

CHIKUDO DAISEN NO SHIN,

東西密に相附す、 TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU,

人根に利鈍あり、 NIN KON NI RIDON ARI,

道に南北の祖なし、

DŌ NI NAN BOKU NO SO NASHI,

霊源明に皓潔たり、 REI GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI

Page 45: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

45

支派暗に流注す、 SHIHA NA NI RUCHŪ SU,

事を執するも元これ迷い、

JI O SHŪ SURU MO MOTO KORE MAYOI,

理に契うも亦悟にあらず、 RI NI KANAU MO MATA SATORI NI ARAZU,

門門一切の境、

MON MON ISSAI NO KYŌ,

回互と不回互と、 EGO TO FU EGO TO,

回してさらに相渉る、 ESHITE SARANI AI WATARU,

しからざれば位によって住す、

SHIKARA ZAREBA KURAI NI YOTTE JŪ SU,

Page 46: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

46

色もと質像を殊にし、 SHIKI MOTO SHITSU ZŌ O KOTONI SHI,

声もと楽苦を異にす、

SHŌ MOTO RAKKU O KOTO NI SU,

暗は上中の言に合い、 AN WA JŌ CHŪ NO KOTO NI KANAI,

明は清濁の句を分つ、

MEI WA SEI DAKU NO KU O WAKATSU,

四大の性おのずから復す、 SHIDAI NO SHŌ ONOZU KARA FUKUSU,

子の其の母を得るがごとし、

KONO SONO HAHA O URU GA GOTOSHI,

火は熱し、風は動揺、 HI WA NESSHI, KAZE WA DŌYŌ,

水は湿い、地は堅固、

MIZU WA URUOI, CHI WA KENGO,

Page 47: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

47

眼は色、耳は音声、 MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ,

鼻は香、舌は鹹酢、

HANA WA KA, SHITA WA KANSO,

しかも一一の法において、 SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI OITE,

根によって葉分布す、 NE NI YOTTE HABUNPU SU,

本末すべからく宗に帰すべし、

HON MATSU SUBE KARAKU SHŪ NI KISU BESHI,

尊卑其の語を用ゆ、 SONPI SONO GO O MOCHI YU,

明中に当って暗あり、 MEI CHŪ NI ATATTE AN ARI,

暗相をもって遇うことなかれ、

AN SŌ O MOTTE AU KOTO NAKARE,

Page 48: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

48

暗中に当って明あり、 AN CHŪ NI ATATTE MEI ARI,

明相をもって覩ることなかれ、 MEI SŌ O MOTTE MIRU KOTO NAKARE,

明暗おのおの相対して、 MEI AN ONO-ONO AITAI SHITE,

比するに前後の歩みのごとし、

HISU RUNI ZENGO NO AYUMI NO GOTOSHI,

万物おのずから功あり、 BANMOTSU ONOZUKARA KŌ ARI,

当に用と処とを言うべし、 MASANI YŌ TO SHO TO O IU BESHI,

事存すれば函蓋合し、

JI SON SUREBA KANGAI GASSHI,

理応ずれば箭鋒さそう、 RI Ō ZUREBA SENPŌ SASŌ,

Page 49: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

49

言を承てはすべからく宗を会すべし、 KOTO O UKETE WA SUBE KARAKU SHŪ O ESU BESHI, みずから規矩を立することなかれ、 MIZUKARA KIKU O RISSURU KOTO NAKARE,

触目道を会せずんば、

SOKU MOKU DŌ O ESSE ZUNBA,

足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、 ASHI O HAKOBU MO IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN,

歩をすすむれば近遠にあらず、

AYUMI O SUSU MUREBA GON NON NI ARAZU,

迷て山河の固をへだつ、 MAYŌTE SEN GA NO KO O HEDATSU,

謹んで参玄さの人にもうす、

TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU,

光陰虚しく度ることなかれ。 KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE.

Page 50: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

50

Como esta versão corresponde à utilizada nas

liturgias da 曹洞宗 SŌTŌ-SHŪ, está acompanhada das marcações dos sinos que são percutidos durante a leitura.

GATSU KESU

KORIN

Page 51: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

51

Page 52: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

52

PRIMEIRA PRELEÇÃO

“AS COISAS TAL QUAL É”

Page 53: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

53

Page 54: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

54

竺土大仙心

竺土大仙の心、 CHIKUDO DAISEN NO SHIN,

A mente do grande sábio da Índia,

東西密相付

東西密に相附す。 TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU.

é transmitida intimamente de Oeste a Leste.

Sinto-me muito grato por ter a oportunidade de falar sobre o參同会 SANDŌKAI, um dos ensinamentos mais importantes. O poema foi expresso com tanta fluidez que talvez vocês não sejam capazes de captar seu profundo significado ao lê-lo. Seu autor, 石頭 希遷 SEKITŌ KISEN (ou SEKITŌ MUSAI DAISHIN, seu nome póstumo) foi o neto no Dharma do Sexto Patriarca chinês大鑑 慧能 DAIKAN ENŌ (em chinês, Dajian Huineng) e descendente direto de 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI (em chinês, Quingyuan Xingsi), considerado o Sétimo Patriarca. Entre os

Page 55: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

55

numerosos discípulos do Sexto Patriarca, os mais destacados foram 青原 行思 SEIGEN GYŌSHI e 南嶽 懷讓 NANGAKU EJŌ. Mais tarde, o mestre 洞山 良价 TŌZAN RYŌKAI continuou a linhagem de 青原 SEIGEN como escola 曹洞 SŌTŌ e o mestre 臨濟 義玄 RINZAI GIGEN (em chinês, Linji Yixuan), continuou a linhagem de 南嶽 NANGAKU como escola 臨濟 RINZAI. As escolas 曹洞 SŌTŌ e 臨濟 RINZAI acabaram sendo as escolas mais influente do 禅 ZEN. As formas de agir de 青原 SEIGEN e de 石頭 SEKITŌ foram mais suaves que a de 南嶽 NANGAKU. No Japão a chamamos de forma de atuar própria do irmão maior. A de 南嶽 NANGAKU é mais parecida com a forma de agir do segundo ou terceiro filho, que podem ser mais travessos. O irmão maior talvez não seja tão hábil ou brilhante, mas é muito doce. Ao falar das escolas, 曹洞 SŌTŌ ou 臨濟 RINZAI, consideramos-nas deste modo. Às vezes, o 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN é denominado NENMITSU NO KAFU, “um estilo muito cuidadoso e de consideração”. O método de 青原 SEIGEN consiste em encontrar tudo quanto existe no interior de alguém. Em realizar a grande mente que tudo inclui e praticar de acordo com tudo isso. Nosso esforço no 禅 ZEN se baseia em observar tudo tal qual é. E, sem embargo, ainda que digamos que devemos fazê-lo, não significa forçosamente que observemos tudo tal como é. Dizemos “Aqui está meu amigo, ali está a montanha e no alto do céu, a lua”. Mas seu amigo não é apenas seu amigo, a montanha não é só a montanha e a lua não é só a lua. Se pensarmos “eu estou aqui e a montanha esta ali”, estamos observando as coisas de uma maneira dualista. Para ir a São Francisco temos que cruzar as montanhas de Tassajara. Assim é como normalmente compreendemos. Mas no Budismo as coisas não são observadas assim, pois encontramos a montanha, a lua, nosso amigo ou São Francisco em nosso interior. Aqui mesmo. Esta é a grande mente que tudo contém.

Page 56: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

56

Analisemos agora o título 參同会 SANDŌKAI. 參 SAN significa literalmente “três”, mas aqui quer dizer “fenômenos”. 同 DŌ é a identidade. Identificar uma coisa com outra é 同 DŌ. Também se refere à unidade, ou a “um único Ser”, que aqui significa “mente maravilhosa” ou “grande mente”. Ou seja, que se interpreta que há um único Ser que inclui tudo e que a multiplicidade de fenômenos está incluída nele. Ainda que digamos “muitos seres”, estes são na realidade as numerosas partes que compõe este único Ser que tudo inclui. Se dizemos “muitos”, são muitos, e se dizemos “um”, é um. “Muitos” e “um” são duas formas distintas de descrever o único Ser. 会 KAI significa “dar a mão”. Uma sensação de amizade. Sentir que dois amigos são uma só pessoa. Do mesmo modo, este único e grande Ser e a multiplicidade de fenômenos são bons amigos, porque originalmente são um só. 会 KAI é como dar a mão a alguém, como dizer “Ola! Como Vai?” O título do poema significa isto. O que é muitos? O que é um? E o que é a unidade do múltiplo e do um. Originalmente, 參同会 SANDŌKAI foi o título de um livro taoista. 石頭 SEKITŌ pôs o mesmo título em seu poema, que descreve o ensinamento de Buddha. Que diferença há entre os ensinamentos taoistas e os ensinamentos budistas? Ambos guardam muitas similitudes. Quando um budista os lê, é um texto budista, e quando um taoista os lê, é um texto taoista. Mas na realidade são o mesmo. Quando um budista come uma verdura, é uma comida budista e quando um vegetariano come a mesma classe de verdura, é uma comida vegetariana. Mas a verdura continua sendo apenas comida. Em nossa qualidade de budistas, não comemos uma determinada verdura por que ela tenha alguma propriedade nutritiva especial nem a escolhemos porque seja 陰 yin ou

陽 yang, ácida ou alcalina, mas pelo fato de que comer é simplesmente nossa prática. Não comemos apenas para subsistir. Como dizemos na invocação que entoamos antes das refeições:

Page 57: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

57

“Tomamos esta comida para praticar a Via”. Assim é como incluímos a grande mente em nossa prática. Temos que tratar as coisas como uma parte de nós que está contida em nossa prática e na grande mente. A pequena mente é a mente limitada pelos desejos ou coberta por alguma determinada emoção ou pela diferenciação entre o bem e o mal. Para a maioria, ainda que acreditemos estar observando “as coisas tal como é” na realidade não é assim. Por que? Por culpa de nossas diferenciações, de nossos desejos. A senda budista consiste em tentar se desprender desta classe de diferenciação emocional do bem e do mal, de nossos preconceitos, e em ver “as coisas tal como é”. Quando digo “ver as coisas tal como é”, quero dizer que temos de praticar com empenho com nossos desejos, não para nos libertarmos deles, mas para podermos reconhecê-los. Se temos um computador devemos introduzir nele todas as informações: esta quantidade de desejos, esta quantidade de alimentos, esta classe de cores, esta quantidade de peso. Para vermos “as coisas tal como é” temos que incluir, entre muitas outras coisas, nossos próprios desejos. Nem sempre refletimos sobre eles, quanto menos nos detemos para refletir sobre nossos juízos de valor egoístas. Dizemos: “Ele é bom” ou “Ele é mau”. Mesmo que eu considere que esta pessoa é má, não significa que esta pessoa tenha que ser sempre má. Para outra pessoa talvez seja uma boa pessoa. Ao refletir deste modo podemos ver “as coisas tal como é”. A mente de Buddha é isto.

O poema se inicia com 竺土大仙の心 CHIKUDO DAISEN NO SHIN, que significa “A mente do grande sábio da Índia”. Trata-se da grande mente de Buddha que tudo inclui. A mente que se manifesta em nós quando praticamos 座禅 ZAZEN é a grande mente: naquele momento não tentamos perceber nada, detemos qualquer pensamento conceitual, detemos a atividade emocional e nos limitamos a sentar-se em 座禅 ZAZEN. Aconteça o que acontecer, não nos afeta. Simplesmente nos sentamos em座禅 ZAZEN. É como algo que acontece no grande céu. Seja

Page 58: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

58

qual for a classe de ave que voe por ele, o céu não se importa. Esta é a mente que Buddha nos transmitiu.

Enquanto estamos sentados em 座禅 ZAZEN podem ocorrer muitas coisas. Talvez possamos ouvir o murmúrio de um córrego. Talvez pensemos em algo, mas para nossa mente não importa. Nossa grande mente limita-se a permanecer sentada. Ainda que não sejamos conscientes de ver, ouvir ou pensar algo, na nossa grande mente está sucedendo algo. Observamos as coisas. Sem dizer isso é “bom” ou isto é “mau” permanecemos sentados, sem mais. Desfrutamos das coisas mas sem nos apegarmos a nenhuma delas em especial. Naquele momento simplesmente as apreciamos por completo, isso é tudo. Depois de fazer 座禅 ZAZEN dizemos: “Oh! Bom dia!” Desta forma as coisas irão nos ocorrendo, uma após a outra, e poderemos apreciá-las por completo. Esta é a mente que Buddha nos transmitiu. E esta é a forma de praticar 座禅 ZAZEN.

Se vocês praticarem 座禅 ZAZEN deste modo, não tenderão tanto a ter algum problema quando vivenciarem algum acontecimento. Compreenderam? Na melhor das hipóteses terão uma experiência especial e pensarão: “É isso, assim é como deve ser!”, mas se alguém se opõe a vocês, vão se enraivecer e pensar: “Não, não é assim, tem que ser dessa outra maneira, um centro 禅 ZEN tem que ser desta maneira!”. Talvez vocês tenham razão. Mas nem sempre é assim. Se os tempos mudam e perdemos Tassajara e nos mudamos para outra montanha, ali não poderemos seguir agindo da mesma forma que estamos fazendo aqui. De modo que, sem nos apegarmos a qualquer forma de agir em especial, abrimos nossa mente para observar as coisas “tal como é”, e aceitá-las. Sem esta base, quando vocês disserem “Esta é a montanha”, ou “Este é meu amigo”, “Esta é a lua”, a montanha não será montanha, meu amigo não será meu amigo e a lua não será a lua. Esta é a diferença entre apegar-se a algo e a Via de Buddha.

A Via de Buddha consiste em estudar e compreender a natureza humana, o que inclui ver o quão estúpidos somos, que

Page 59: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

59

classes de desejos temos e nossas preferências e inclinações. Sem me apegar a nada, eu tento recordar que hei de aplicar em minha vida a expressão “sou propenso”, já que todos somos propensos ou nos sentimos inclinados a fazer algo. Este é o meu lema.

Quando estava preparando esta preleção, alguém me perguntou: “O que é a integridade e como posso obtê-la?” A integridade não é algo que vocês podem sentir que têm. Quando pensam “Sou integro”, deixam de sê-lo. Mas quando vocês são simplesmente vocês mesmos, sem pensar ou tentar dizer algo em especial, e dizem simplesmente o que pensam e como se sentem, então têm naturalmente integridade. Quando me relaciono estreitamente com vocês e com tudo, sou uma parte de um grande e único Ser. Sem embargo, quando sinto algo, sou parte dele, mas não por completo. Quando vocês fazem algo sem pensar que fizeram algo, então estão sendo vocês mesmos. Estão com todos os demais por completo, sem parar para pensar nisso. Isso é ser integro.

Quando pensarem que são alguém, deverão praticar 座禅 ZAZEN com mais afinco. Como vocês já sabem, é difícil sentar em 座禅 ZAZEN sem pensar ou sentir. Quando vocês não pensam nem sentem algo, normalmente é porque acabaram dormindo. Mas nossa prática consiste em ser um só, sem adormecer ou pensar. Quando vocês conseguirem fazê-lo, serão capazes de falar sem pensar demasiado e sem perseguir nenhum propósito em especial. Quando falarem ou agirem será simplesmente para se expressarem. Isto é ser totalmente íntegro. Praticar 座禅 ZAZEN é alcançar esta classe de integridade. Vocês deverão ser rigorosos consigo mesmos e em especial com suas inclinações. Mas se enquanto fazemos 座 禅 ZAZEN tentamos nos livrar delas, ou tentamos não pensar ou não ouvir o murmúrio do córrego, será impossível. Deixem que seus ouvidos ouçam sem tentar ouvir. Deixem que sua mente pense sem tentar pensar nem não pensar. A prática consiste nisto.

Page 60: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

60

E a cada vez vocês irão adquirindo mais este ritmo ou esta força interior que constitui o poder da prática. Se vocês praticarem com empenho serão como uma criança. Enquanto estávamos falando sobre a integridade, um pássaro cantava lá fora. Pip, pip, pip, pip. Isto é a integridade. Pip, pip, pip. Não significa qualquer coisa. Ou melhor, só estava cantando. Talvez o fizesse sem tentar pensar que estava simplesmente cantando, pip, pip, pip. Ao ouvi-lo, não podemos evitar de sorrir. Não podemos dizer que não é nada mais que um pássaro, já que controla a montanha inteira, o mundo inteiro. Isto é a integridade.

Para poder realizar esta prática cotidiana, estudamos com afinco. Quando alcançamos este lugar, já não necessitamos dizer “um único ser” ou “um pássaro” ou “muitos fenômenos que estão contidos em um único ser”. Poderia ser apenas um pássaro, uma montanha ou o 參同会 SANDŌKAI. Se vocês compreenderem isso, não há necessidade de recitar o 參同会 SANDŌKAI. Ainda que o recitemos nesta forma sino-japonesa, não é uma questão de que seja chinês ou japonês, mas que não é mais que um poema, ou um pássaro, e esta preleção que vocês estão ouvindo não é nada mais que uma preleção. Não significa grande coisa. Em nossa tradição dizemos que o 禅 ZEN não é algo que se possa falar, mas aquilo que cada um experimenta no verdadeiro sentido da palavra. Sei que é difícil. Mas de todo modo vivemos em um mundo difícil, ou seja, não se preocupem. Onde quer que vocês forem encontrarão problemas. Deverão enfrentá-los. Talvez seja muito melhor ter este tipo de problemas relacionados com a prática do que outra classe de problemas, aqueles que nos enredam.

Page 61: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

61

DIÁLOGO ESTUDANTE: Outro dia, enquanto golpeava o

木魚 MOKUGYO19, uma aranha se encarapitou nele. Nada pude fazer para evitá-lo. Enquanto tangia o 木魚 MOKUGYO tentei afugentá-la, mas ela foi diretamente para onde a baqueta o percutia. Não pôde escapar de sua poderosa vibração.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Você não a matou. ESTUDANTE: Mas algo a matou! [risos] 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Foi um acidente. Ocorreu deste

modo. ESTUDANTE: Sim. Mas não pude me deter. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Foi inevitável. Buddha a

matou! [mais risos]. Pode ser que agora a aranha esteja muito feliz.

Viver neste mundo não é fácil. Quando vemos algumas crianças brincando junto a um rio ou sobre uma ponte, pode ser que nos preocupemos de verdade e que pensemos: “Os automóveis estão passando, zás, zás, zás, pela estrada ao lado. E se houver um acidente?” Se algo ocorre, simplesmente ocorre. Se nos imobilizarmos e nos pusermos a pensar nisso, ficaremos aterrorizados em face das coisas que podem chegar a acontecer. Já ouviram falar do ancião de 165 anos que tem no total mais de

19 木魚 MOKUGYO : tambor de madeira que se tange com uma baqueta cuja extremidade é almofadada e é utilizado para acompanhar com seu ritmo a recitação dos Sūtras.

Page 62: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

62

duzentos filhos, netos e bisnetos? Se pensasse no que pudesse acontecer com cada um deles, viveria aterrorizado com medo de perder algum deles.

Nossa prática pode ser uma prática muito rigorosa. Devemos estar preparados, caso acidentalmente causemos a morte de algum ser, mesmo sendo budistas. Sendo bom ou mau, algumas vezes acontecerá. É impossível sobreviver sem matar nenhum ser. Não podemos viver somente de nossos sentimentos. Nossa prática é muito mais profunda que isso. Este é o aspecto rigoroso de nossa prática. Por outro lado, no caso que seja absolutamente necessário, você deverá deixar de tanger o 木魚 MOKUGYO, mesmo provocando uma grande confusão, o que também não é nada fácil.

ESTUDANTE: Poderia nos explicar com mais detalhe ao que

se refere ao dizer “uma prática rigorosa”? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Uma prática rigorosa? As coisas

já estão acontecendo de uma forma muito rigorosa. Sem nenhuma exceção. Onde quer que exista algo, estará sendo governado por alguma regra ou verdade que sempre o estará controlando de uma forma rigorosa, sem exceção. Acreditamos que desejamos ardentemente a liberdade, mas a liberdade é uma regra rigorosa. Na regra rigorosa há uma absoluta liberdade. A liberdade e a regra rigorosa não são duas coisas distintas. No fundo são as regras rigorosas ou as verdades que nos sustentam. Este é o outro aspecto de uma absoluta liberdade.

ESTUDANTE: poderia dar mais exemplos que sejam

aplicáveis à nossa vida? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: quando se levantarem pela

manhã, levantem-se sem delongas. Quando todo mundo estiver dormindo, durmam. Este é o meu exemplo.

Page 63: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

63

ESTUDANTE: ao exercer um cargo de responsabilidade,

para mim é muito mais fácil ser rigoroso, porque minha posição o facilita. Outras pessoas têm, ao contrário, distintas responsabilidades. Algumas vezes, como tendo a ser rigoroso, temos nossas pequenas diferenças e, outras vezes, opino que tudo bem que pensem de uma forma distinta da minha. Minha atitude é correta?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Às vezes você tem que

fazer vista grossa [risos]. Em algumas ocasiões é melhor não ver algo, já que se for visto, algo deverá ser dito, ou seja, talvez resulte útil praticar sem olhar ao redor. Na realidade, é a melhor forma de fazê-lo, já que se você olhar ao redor, verá apenas as pessoas que estão deste lado do 禅堂 ZENDŌ, mas as que estão no outro lado estarão dormindo. Assim, é melhor nada ver! [risos]. Não sabendo o que você está fazendo, pensarão: “Como não sei se ele está dormindo ou não, vou ficar é bem acordado”. Se você vê algo, não verá o resto. Mas se nada ver, nada ignorará. Esta é a grande mente que tudo inclui. Se alguém então se move, você vai se precaver disso. Mesmo que não queira ouvi-lo, se surge algum som você vai captá-lo. Se centrar sua atenção em uma pessoa só, o resto se sentirá muito feliz [risos]. Mas se não centrar a atenção em alguém em particular, então ninguém poderá se mover.

Page 64: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

64

SEGUNDA PRELEÇÃO

DE UMA MÃO CÁLIDA PARA OUTRA

Page 65: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

65

Page 66: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

66

竺土大仙心

竺土大仙の心、 CHIKUDO DAISEN NO SHIN,

A mente do grande sábio da Índia,

東西密相付

東西密に相附す。 TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU.

é transmitida intimamente de Oeste a Leste.

人根有利鈍

人根に利鈍あり、 NIN KON NI RIDON ARI,

Apesar de que as faculdades humanas

possam ser inteligentes ou tolas,

Page 67: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

67

道無南北祖

道に南北のなし、 DŌ NI NAN BOKU NO SO NASHI,

na Via não há

Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul.

Na minha primeira preleção expliquei o significado do título 參 同 会 SANDŌKAI e a primeira frase que reza: 竺土大仙の心 CHIKUDO DAISEN NO SHIN, “A mente do grande sábio da Índia, 東西密に相附す。TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU. [é intimamente transmitida de Oeste a Leste.]20” Hoje gostaria de explicar a origem deste poema e porque 石頭 SEKITŌ MUSAI DAISHIN, o Oitavo Patriarca da China escreveu-o. Quando 大満弘忍 DAIMAN KŌNIN, o Quinto Patriarca anunciou que pretendia transmitir o Dharma a alguém, todos os monges acreditavam que 神秀 JINSHŪ seria o escolhido. 神秀 JINSHŪ era um grande letrado que mais tarde iria para o norte da China e se converteria num grande mestre. Mas quem na realidade recebeu a transmissão e se converteu no Sexto Patriarca foi 慧能 ENŌ, um ajudante de cozinha que se dedicava a moer arroz num canto do templo. A escola de 神秀 JINSHŪ se chamou 北 禅 HOKU ZEN, ou 禅 ZEN do Norte e a escola de 慧能 ENŌ se difundiu pelo sul e se chamou 南 禅 NAN ZEN ou 禅 ZEN do Sul. Mais tarde, depois da morte de 神秀 JINSHŪ, o 禅 ZEN do Norte

20 A oração entre colchetes não consta no original. (N.T.)

Page 68: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

68

entrou em decadência e, ao contrário, o 禅 ZEN do Sul foi se tornando mais forte. Mas no tempo de 石頭 SEKITŌ, a escola 禅 ZEN do Norte era ainda poderosa. 慧 能 ENŌ, o Sexto Patriarca, teve muitos discípulos. Sabemos com certeza que contou com pelo menos cinqüenta, mas ele deve ter tido ainda mais. O mais jovem era 荷澤神會 KATAKU JINNE (em chinês, Heze Shenhui), uma pessoa muito vigilante e ativa que contestou o 禅 ZEN de 神秀 JINSHŪ. Nós não podemos aceitar por completo seus ensinamentos. Se estudarmos o Sūtra da Plataforma do Sexto Patriarca 21 , verificamos que nele os ensinamentos de 神秀 JINSHŪ são duramente contestados. Pode ser que o Sūtra tenha sido compilado por alguém que estivesse sob a influência de 荷澤神會 KATAKU JINNE. De qualquer forma, existia um conflito entre o 禅 Zen do Sul de 慧能 ENŌ e o 禅 Zen do Norte de 神秀 JINSHŪ. 石頭 SEKITŌ desejava esclarecer esta disputa a partir de seu ponto de vista. Por isso escreveu o 參同会 SANDŌKAI. O poema inicia com 竺土大仙の心 CHIKUDO DAISEN NO SHIN, “A mente do grande sábio da Índia”, 東西密に相附す。TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU. “é transmitida intimamente de Oeste a Leste”. O entendimento de 石頭 SEKITŌ era que o verdadeiro ensinamento do grande sábio Shākyamuni Buddha, inclui tanto a Escola do Sul como a Escola do Norte, sem cair em qualquer contradição. Ainda que os ensinamentos do grande sábio não sejam compreendidos por completo, continuam chegando a todas as partes. Se temos olhos para ver ou uma mente para entender os ensinamentos, veremos que não é necessário tomar partido nesta disputa. Mas como alguns descendentes de 慧 能 ENŌ e de 神 秀 JINSHŪ não compreendiam de todo os ensinamentos, enredaram-se numa

21 Em japonês, 六祖 壇經 ROKUSO DANKYŌ. (N.T.)

Page 69: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

69

disputa. Mas, desde o ponto de vista de 石頭 SEKITŌ, esta discussão não era necessária.

東西密に相附す。TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU. “É transmitida intimamente de Oeste para Leste”. 密に MITSUNI significa literalmente, “com exatidão, sem que exista o menor espaço entre os dois”. O principal objetivo do 參同会 SANDŌKAI é explicar a realidade a partir dos dois lados. Como já disse, 參 SAN significa “muitos” e 同 DŌ, “Um”. O que é muitos? O que é um? O múltiplo é um e o um é múltiplo. Ainda que possamos dizer “muitos”, os numerosos fenômenos não existem separados uns dos outros. Estão intimamente relacionados. Até o ponto em que são um só. Mas ainda que sejam um, aparecem, manifestam-se como muitos. De forma que dizer “muitos” é correto e dizer “um” também é. Ainda que digamos “um”, não podemos ignorar os diversos fenômenos, como são as estrelas e as luas, os animais e os peixes. Deste ponto de vista dizemos que são interdependentes. Quando analisamos o significado de cada ser, pode ser que tenhamos “muitas” entidades para falar a respeito. Mas ao deduzir que a realidade é de fato a unidade, toda a discussão terá lugar a partir desta compreensão da singularidade existente entre a multiplicidade e a unidade.

Outra forma de explicar a realidade é por meio da diferenciação. A diferenciação é igualdade, e as coisas têm o mesmo valor porque são diferentes. Se os homens e as mulheres fossem a mesma coisa, as diferenças que existem entre eles não teriam qualquer valor. Mas como os homens e as mulheres são diferentes, os homens são valiosos como homens e as mulheres são valiosas como mulheres. Ser diferente é ter um valor. Neste sentido todas as coisas têm o mesmo valor absoluto. Cada um tem um valor absoluto e portanto é idêntico ao resto. Normalmente somos regidos por modelos valorativos: um valor de troca, um valor material, um valor espiritual e um valor moral. Como somos guiados por certos modelos, podemos dizer “ele é bom“ ou “ele não é bom”. O modelo moral pelo qual nos regemos

Page 70: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

70

define o valor de uma pessoa. Mas este modelo moral está sempre mudando, já que uma pessoa virtuosa nem sempre é virtuosa. Se a compararmos com alguém como Buddha, não é tão boa. O bem e o mal nascem de algum modelo valorativo. Mas como cada coisa é distinta, cada uma tem seu próprio valor e esse valor é absoluto. A montanha não é mais valiosa pelo fato de ter uma grande altura e o rio não é menos valioso pelo fato de ter pouca altura. Por outro lado, como uma montanha é alta, é uma montanha e tem um valor absoluto, e como a água escorre a pouca altura pelo vale, a água é água e tem um valor absoluto. A qualidade da montanha e a do rio são totalmente distintas, mas como são distintas têm o mesmo valor, e ter o mesmo valor significa um valor absoluto.

Segundo o Budismo a igualdade é diferença e a diferença é igualdade. Normalmente se considera que a diferença é o oposto da igualdade, mas no Budismo se considera que são a mesma coisa. A multiplicidade e unidade são o mesmo. Se apenas vemos desde o ponto de vista que afirma que a unidade é distinta da multiplicidade, teremos uma compreensão demasiado materialista e superficial.

A linha seguinte diz “Apesar de que as faculdades humanas possam ser inteligentes ou tolas”. Resulta difícil traduzir esta passagem. Ela se refere à disputa que existia entre a Escola do Norte e a Escola do Sul. Aquele que é inteligente nem sempre tem uma vantagem para estudar ou aceitar o Budismo, e nem sempre é a pessoa tola a que tem dificuldades. Uma pessoa tola é boa porque é tola e uma inteligente é boa porque é inteligente. Ainda que as comparemos, não podemos dizer qual delas é a melhor. Pessoalmente, não sou uma pessoa muito perspicaz, por isso entendo esta parte muito bem. Meu mestre [GYOKUJUN SO-ON] sempre se dirigia a mim me chamando de “pepino torcido”. Eu era seu último discípulo, mas acabei por me converter no primeiro porque todos os pepinos bons acabaram fugindo. Talvez fossem espertos demais. De todo modo, como eu

Page 71: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

71

não era tão inteligente a ponto de escapar, acabei aprisionado. Minha lerdeza acabou sendo uma vantagem ao estudar o Budismo. Quando todos os demais se foram e eu fiquei sozinho com meu mestre, me senti muito triste. Se tivesse sido inteligente como meus companheiros, também teria fugido. Mas eu havia saído de casa por vontade própria. Meus pais haviam-me dito: “Você é jovem demais. Deveria ficar conosco”. Mas eu tinha de ir. Depois de abandonar meus pais senti que não poderia regressar para casa. Poderia tê-lo feito, mas acreditava que não era possível. Ou seja, acreditava que não tinha para onde ir. Esta foi uma das razões pelas quais não fugi. Outra foi porque não era inteligente o bastante. Ser inteligente nem sempre se constitui numa vantagem e uma pessoa parva é boa porque é parva. Assim é como nós o entendemos. Na realidade não existe uma pessoa parva ou uma pessoa inteligente. A vida não é fácil para nenhuma delas. Tanto o inteligente quanto o parvo terão dificuldades. Por exemplo, uma pessoa que não seja demasiado esperta deverá estudar com empenho e ler um livro várias vezes. E uma pessoa inteligente se esquecerá das coisas com muita facilidade. Talvez aprenda rapidamente, mas pode ser que esqueça rapidamente o que aprendeu. Uma pessoa parva, ao contrario, demorará mais tempo para memorizar algo, mas se lê uma coisa uma e outra vez e consegue memorizá-la, não a esquecerá tão cedo. Uma pessoa inteligente não se diferencia demasiado de uma que seja parva. 人根に利鈍あり、NIN KON NI RIDON ARI, “Apesar de que as faculdades humanas possam ser inteligentes ou tolas”. No 參同会 SANDŌKAI esta questão não é tão importante, mas é interessante compreender o que o Budismo entende por potencial humano, para explicar com mais profundidade como a prática é compreendida e porque é necessário praticar 座禅 ZAZEN. 人 NIN significa “humano” e 根 KON, “raiz” ou “potencial”, de modo que 人根 NINKON significa “potencial humano”. 利 RI neste contexto significa “alguém que tem uma vantagem” e 鈍 DON,

Page 72: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

72

“alguém que tem uma desvantagem”. A raiz do potencial humano constitui, então, nossa vantagem e ao mesmo tempo, nossa desvantagem. A capacidade da mente humana tem três aspectos: o potencial, a inter-relação e o uso adequado. Todos temos o potencial de ser um Buddha. Como o arco e a flecha têm um potencial, se ele não for utilizado, a flecha não voará. Cada um de nós está preparado para ser um Buddha, mas se vocês não praticarem 座禅 ZAZEN ou se Buddha não os ajuda, não poderão sê-lo apesar que sejam dotados do potencial para tanto. O potencial tem dois significados. Um é o de “possibilidade”. Do ponto de vista de nossa natureza, temos a possibilidade de sermos Buddhas. Mas, por outro lado, se me analisarem com relação ao tempo, ainda que eu tenha o potencial para ser um Buddha, se alguém não me ajudar não poderei sê-lo. Do ponto de vista do tempo o potencial significa algo como “uma futura possibilidade”. Este é o outro significado de potencial. Quando consideramos o potencial com relação à nossa natureza, temos que ser muito bondosos e generosos com todo o mundo porque todos temos de forma inata a possibilidade de sermos um Budha. Mas quando consideramos com relação a ”quando”, temos que ser muito rigorosos com nós mesmos. Compreendem? Por que se desperdiçarem este momento, se não se esforçarem esta semana ou este ano, se sempre disserem ”vou fazê-lo amanhã, amanhã, amanhã”, perderão a oportunidade de obter a Iluminação, ainda que tenham esta possibilidade. Com sua prática ocorre o mesmo. Quando vocês não levam em conta o tempo, podem ser muito generosos com todo o mundo e tratar todos muito bem. Mas se pensam no tempo - em hoje ou amanhã - não poderão ser tão generosos porque estariam perdendo tempo. Dessa forma dizemos “você faz isto que eu faço aquilo” e “ajude esta pessoa que eu ajudarei aquela outra”. Temos que ser muito rigorosos com nós mesmos. Por isso 起 KI, o potencial, é interpretado como uma “possibilidade” e

Page 73: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

73

como uma “futura possibilidade”. Ao entender o potencial deste modo, vocês poderão trabalhar e praticar muito bem, às vezes com grande generosidade e outras, com grande rigor. Nossa prática e nossa compreensão da palavra 起 KI deve levar em conta estes dois aspectos. Este é o primeiro significado de 起 KI: o de potencial. 起 KI também significa “inter-relação”, aqui se referindo a inter-relação existente entre um Buddha e uma pessoa boa por natureza, e entre um Buddha e uma pessoa má por natureza. Sinto ter que dizer “má por natureza”, mas utilizarei estas palavras provisoriamente. Temos que estimular as pessoas boas por natureza, oferecendo-lhes a alegria que nos proporciona a prática. E quando praticamos com alguém que não parece ser tão bom assim, devemos sofrer com essa pessoa. Assim é como o Budismo enxerga este problema. 起 KI significa às vezes “a inter-relação que existe entre o que ajuda e o que é ajudado”. Também se denomina 慈悲 JIHI. 慈 JI significa aqui estimular alguém. 悲 HI, dar felicidade. 慈悲 JIHI pode ser traduzido como “amor”. O amor tem dois aspectos: um é o de produzir alegria, 与 楽 YORAKU, e o outro, é o de diminuir o sofrimento, 抜苦 BAKKU. 22 Para diminuir o sofrimento de uma pessoa, sofremos com ela, compartilhamos seu sofrimento. Isto é amor. Se uma pessoa é muito boa, podemos compartilhar com ela a alegria que a prática nos proporciona oferecendo-lhe um bom

22 Em japonês, 抜苦与楽 BAKKU-YORAKU, significa “remover o sofrimento e proporcionar alegria e paz”. É a prática da compaixão, 慈悲 JIHI. A compaixão é interpretada como abarcar duas ações misericordiosas: salvar os outros seres de seus sofrimentos e proporcionar-lhes paz e deleite. Com esta intenção o Budismo encoraja seus seguidores a resgatar outros seres do sofrimento e a dar-lhes paz e alegria. (N.T.)

Page 74: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

74

坐蒲 ZAFU para fazer 座禅 ZAZEN, um bom 禅堂 ZENDŌ ou algo parecido. Mas, ao contrário, para uma pessoa que esta sofrendo demasiado um 禅堂 ZENDŌ não significa grande coisa e talvez não queira aceitar qualquer coisa que lha ofereçamos, seja o que for. Ou melhor, ela acaba nos dizendo “Não preciso disso! Estou sofrendo demais. Não sei por quê. Para mim, o mais importante agora é deixar de sofrer. E nem você nem nada podem me ajudar.” Ao ouvi-la temos que ser como o Bodhisattva Avalokiteshvara, temos que nos converter na pessoa que está sofrendo e sofrer como ela. Por causa de nosso amor inato, de nosso amor instintivo, compartilhamos seu sofrimento. Isso é amor no verdadeiro sentido da palavra. 起 KI não só significa “potencial” ou “possibilidade”, mas também “inter-relação”. O terceiro significado de 起 KI é o de “meios hábeis” ou “uso adequado”, é como encontrar uma tampa justa para uma panela. A banheira tradicional japonesa é de madeira e depois de nos banharmos nela colocamos uma grande tampa que também é de madeira. Mas esta tampa não serve para uma panela. É muito grande. A panela deve ter sua própria tampa. Neste sentido, 起 KI significa “uso adequado”. Quando vemos que alguém sofre por culpa da ignorância, como esta pessoa não sabe o que está fazendo, choramos e sofremos junto. Mas quando vemos que alguém goza de sua verdadeira natureza, compartilhamos de sua alegria e a motivamos. Isso é manter uma relação boa e adequada. Na linha seguinte o poema diz: 道に南北のなし、DŌ NI NAN BOKU NO SO NASHI, “Na Via não há Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul.” Isso é bem verdade. Os ensinamentos de神秀 JINSHŪ são corretos e os de 慧能 ENŌ, o Sexto Patriarca, também são. O método de 神秀 JINSHŪ é bom para alguém que estude as coisas com lentidão e deliberação, e o método do Sexto Patriarca é bom para uma pessoa de mente rápida e aguda. Um mestre pode ser que explique os ensinamentos de Buddha em detalhe, para que o estudante os compreenda palavra por

Page 75: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

75

palavra, mas outro estudante talvez não necessite tantas palavras para compreendê-los. Depende da pessoa. Um grande mestre pode ter uma forma única de explicar os ensinamentos. Mas na verdadeira compreensão não há qualquer diferença. As pessoas se confundem na sua forma de avaliar as coisas ao diferenciar o tolo do inteligente, mas do ponto de vista dos Patriarcas, o tolo e o inteligente são a mesma coisa. Todos os Patriarcas coincidem neste ponto. De forma que não há Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul. Assim é o entendimento de 石頭 SEKITŌ. A propósito, 石頭 SEKITŌ foi na realidade um discípulo do Sexto Patriarca, mas depois que este faleceu, foi discípulo de 青原 SEIGEN, o Sétimo Patriarca. Este tipo de coisa acontecia freqüentemente. Nesta sala estão alguns discípulos meus, mas se eu morresse, os que não puderam terminar seus estudos como meus discípulos se converteriam em discípulos de meus discípulos. Estudar o Budismo não é como estudar qualquer outra coisa. Pode ser que vocês tenham que deixar passar muito tempo antes de aceitar os ensinamentos por completo. O mais importante não é seu mestre, mas vocês mesmos. Quando vocês estudam com empenho o que recebem de seu mestre é o espírito do estudo. Este espírito irá se transmitindo de uma mão morna para outra. Só vocês poderão fazê-lo! Isso é tudo. Não há nada que eu possa transmitir a vocês. E o que aprenderem pode ser que provenha de livros ou de outros mestres, por isso temos outros mestre além do nosso. Alguns de vocês são meus discípulos. Os discípulos de um mestre chamamos de 弟子 DESHI. E os que não são meus discípulos recebem o nome de 随身 ZUISHIN. Um 随身 ZUISHIN é um seguidor. Talvez até possamos focar muito tempo com outro mestre, às vezes mais tempo do que passamos com nosso próprio mestre. Quando eu tinha trinta e dois anos meu mestre faleceu, e decidi estudar com KISHIZAWA RŌSHI e a maior parte de meu jeito de compreender as coisas devo a ele. Mas meu mestre era GYOKUJUN SO-ON.

Page 76: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

76

De toda forma, na Via não há Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul. Só há uma Via autêntica. Praticar não consiste em reunir coisas e metê-las numa cesta, mas encontrar algo que estava escondido em sua manga.23 O único que há é que antes de estudar com empenho vocês ignoravam o que havia nela. “Eu e Buddha temos a mesma natureza. Oh! É assombroso!” este é o espírito que deve animá-los. Apesar do que eu diga, vocês deverão estudar com empenho. E se não gostarem do que eu digo, não o aceitem. Se disserem “Não!”, eu responderei “Está bem, mas siga adiante e se esforce ainda mais!” Eu creio que esta é uma das características do Budismo. Sua visão é muito ampla e na vossa condição de budistas vocês gozam de uma enorme liberdade em relação a vosso estudo. O que quer que digam, está bem. Ou seja, Não há Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul.

DIÁLOGO ESTUDANTE: RŌSHI, poderíamos trabalhar apenas com o

poema em japonês e esquecermos a versão em inglês? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Estou tentando ao máximo

seguir a ordem dos caracteres. Caso traduzamos o poema em inglês fluido, talvez resulte difícil explicá-lo. O poema original está cheio de termos técnicos que não podem ser trocados. Se tentarmos trocá-los, perderemos parte do significado e o poema ficará sem sentido. Como desejo que vocês o compreendam por completo, quero que sigam o texto original fielmente, ainda que isto seja difícil. 23 Veja nota nº 30. (N.T.)

Page 77: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

77

Page 78: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

78

TERCEIRA PRELEÇÃO

BUDDHA SEMPRE ESTÁ AQUI

Page 79: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

79

Page 80: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

80

霊源明皎潔

霊源明に皓潔たり、 REI GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI

A fonte espiritual brilha claramente na luz,

枝派暗流注

支派暗に流注す、 SHIHA NA NI RUCHŪ SU,

Os afluentes fluem na escuridão.

執事元是迷

事を執するも元これ迷い、 JI O SHŪ SURU MO MOTO KORE MAYOI,

Page 81: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

81

Apegar-se aos fenômenos é uma ilusão,

契理亦非悟

理に契うも亦悟にあらず、 RI NI KANAU MO MATA SATORI NI ARAZU,

Aceitar a identidade não é a Iluminação.

霊源明に皓潔たり、REI GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI, “A fonte espiritual brilha claramente na luz”. A fonte é algo maravilhoso, algo que não pode ser descrito nem expresso com palavras. Buddha falou sobre a fonte do ensinamento, mais além da diferenciação do correto e do incorreto, o que é muito importante. Qualquer coisa que suas mente possam conceber, não é a fonte. A fonte é algo que só um Buddha conhece. Vocês só a terão quando praticarem 座禅 ZAZEN. Entretanto, mesmo que praticarem ou não, mesmo que sejam conscientes disso ou não, existe algo, inclusive antes que nos déssemos conta disso e isso é a fonte. Não é algo que vocês possam degustar. A verdadeira fonte não é deliciosa nem é insípida. No último destes quatro versos, 石 頭 SEKITŌ diz: 理に契うも亦悟にあらず、RI NI KANA UMO MATA SATORI NI ARAZU, “Aceitar a identidade não é a Iluminação”. Ou seja, que reconhecer a verdade tampouco o é. Freqüentemente acreditamos que a verdade é algo que podemos perceber ou explicar. Mas no Budismo isso não é a verdade. A verdade está mais além de nossa capacidade descritiva, mais além de nossa

Page 82: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

82

capacidade mental. A verdade também pode significar a “fonte maravilhosa”, maravilhosa e inefável. Esta é a fonte de todos os seres. A propósito, quando dizemos “seres”, esta palavra inclui nossos pensamentos assim como as numerosas coisas que vemos. Normalmente, quando dizemos “verdade” estamos nos referindo a algum princípio subjacente, como a verdade que a terra gira numa determinada direção. Mas no Budismo isso não é uma verdade suprema, mas um “ser”, um ser contido na grande mente. Qualquer coisa que exista em nossa mente – seja importante ou desprezível, correta ou incorreta – é um ser. Se vocês pensarem algo em termos de correto ou incorreto, poderão dizer “isso é a verdade eterna”, mas no Budismo esta idéia de uma verdade eterna é também um aspecto do ser porque só existe em nossa mente. Nós não diferenciamos muito as coisas que existem fora das coisas que existem em nosso interior. Pode ser que vocês afirmem que algo exista fora de vocês, talvez acreditem que é assim, mas estão equivocados. Quando dizem : “Há um rio”, o rio já estava em suas mentes. Uma pessoa pode dizer precipitadamente: “O rio está ali!”, mas se refletir melhor sobre isso descobrirá que o rio só se encontra em sua mente como uma classe de pensamento. Tudo quanto existe fora de nós constitui-se numa compreensão dualista, primitiva e estreita das coisas. Os caracteres do primeiro verso, 霊源明に皓潔たり、REI GEN MYŌ NI KŌ KETTA RI, referem-se a 理 RI, a fonte inefável dos ensinamentos. A verdadeira fonte, 理 RI, está mais além de nossos pensamentos; é pura e imaculada. Quando vocês a descrevem estão-na limitando. Ou seja, estão maculando a verdade ou estão-na rotulando. No Sūtra do Coração da Grande

Page 83: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

83

Sabedoria Completa24 se lê: “Sem cor, sem som, sem aroma, sem sabor, sem tato, sem objetos da mente”25, etc. isso é 理 RI. O verso seguinte reza: 支派暗に流注す、SHIHA NA NI RUCHŪ SU, “Os afluentes fluem na escuridão”. 支派 SHIHA significa afluentes. 石頭 SEKITŌ diz 支派 SHIHA por uma razão poética, para embelezar estes dois versos do poema e para que支派 SHIHA contraste com 霊源 REIGEN, “fonte”. 霊源 REIGEN é uma palavra mais numênica26 e 支派 SHIHA é mais fenomênica. Dizer “numênico” ou “fenomênico” não é de todo correto, mas tenho de dizê-lo provisoriamente. Por isso é bom lembrar dos termos mais técnicos, 理 RI e 事 JI. 事 JI, que aparece no terceiro verso, refere-se aos fenômenos, a algo que se pode ver, ouvir, cheirar ou saborear, [tatear]27, e também aos objetos da mente ou as idéias. Qualquer coisa que possa entrar em nossa consciência é 事 JI. E aquilo que está mais além de nossa consciência – o númeno – é 理 RI. Na escuridão os afluentes correm em todas as direções, como a água. Ainda que não sejamos conscientes da água, a água segue sendo água. A água se encontra em nosso corpo físico e também nas plantas; por toda a parte há água. Do mesmo modo, a fonte pura está em todos os lugares. Cada ser é em si mesmo a fonte pura e a fonte pura nada é senão cada um 24 Em sânscrito, Mahā Prajñā Paramitā Hridaya Sūtra. Em japonês, 摩訶 般若 波羅蜜多 心経 MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ. (N.T.) 25 Em japonês, 無色声香味触法、MU SHIKI SHŌ KŌ MI SOKU HŌ, “Sem cor, som, cheiro, sabor, tato, fenômeno”. (N.T.) 26 Numênico refere-se a númeno, “essência” ou “a coisa em si” em oposição ao “fenômeno ou às coisas tais como aparecem e são conhecidas”. (N.T.) 27 A expressão entre colchetes não consta no original. (N.T.)

Page 84: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

84

dos seres. Não são duas coisas distintas. Não há diferença alguma entre 理 RI e 事 JI, a fonte pura e os afluentes. O afluente é a fonte pura e a fonte pura é o afluente. A fonte pura flui por toda parte ainda que o ignoremos. Este “ignorar” é o que chamamos “escuridão” e é muito importante.

事を執するも元これ迷い、JI O SHŪ SURU MO MOTO KORE MAYOI, “Apegar-se aos fenômenos é uma ilusão”. “Apegar-se aos fenômenos”, significa aferrar-se às numerosas coisas que vemos. Ao compreender que cada ser é diferente, vocês os vêem como algo especial e então passam a se aferrar a algo. Mas mesmo que reconheçam a verdade que tudo é um, isso não significa que seja a Iluminação. Pode ser que seja a Iluminação, mas nem sempre é assim. Não é mais que uma compreensão intelectual. Uma pessoa Iluminada não ignora as coisas nem se apega a elas, nem sequer à verdade. Não há uma verdade que seja distinta do que cada ser é. Cada ser é em si mesmo a verdade. Talvez vocês acreditem que haja alguma verdade que está controlando cada ser. Esta verdade, vocês podem pensar, é como a verdade da gravidade. Se uma maçã contém todos os seres, então por trás da maçã deve haver uma verdade que atue sobre ela. Compreender as coisas deste modo não é a Iluminação. Apegar-se aos seres, às idéias, inclusive aos ensinamentos de Buddha dizendo: “Os ensinamentos de Buddha são algo como isto”, é se apegar a 事 JI. Esta é a coluna vertebral do 參同会 SANDŌKAI. 理に契うも亦悟にあらず、RI NI KANA UMO MATA SATORI NI ARAZU, “Aceitar a identidade não é a Iluminação”. E reconhecê-la, tampouco. Talvez seja melhor nada dizer. Se traduzo 理 RI para o inglês, já é事 JI. A Iluminação na realidade não é algo que possamos experimentar. Está mais além de nossa própria experiência. Se alguém diz: “Eu alcancei a Iluminação”, esta se equivocando. Significa que está se apegando a alguma explicação da Iluminação. É uma ilusão. Ao mesmo tempo, mesmo que vocês pensem que a Iluminação esta mais além de

Page 85: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

85

nossa experiência, que é algo que não se pode experimentar, inclusive mesmo que fosse assim, a Iluminação continua estando ai. Vocês não podem dizer que a Iluminação existe ou que não existe. A Iluminação não é algo sobre o que possamos afirmar ou negar a existência. E ao mesmo tempo, algo que vocês possam experimentar também é a Iluminação. Em minha última preleção mencionei a grande disputa que surgiu na época de 石頭 SEKITŌ sobre a Iluminação súbita e a Iluminação gradual. O Sūtra da Plataforma do Sexto Patriarca critica o método de 神秀 JINSHŪ como uma Via da Iluminação gradual, enquanto que declara que a Via do Sexto Patriarca é a Iluminação súbita. Segundo o Sūtra da Plataforma do Sexto Patriarca, parece que sentar simplesmente em 座禅 ZAZEN não constitui a verdadeira prática. Mas talvez não fosse esta a visão do Sexto Patriarca. Na realidade o método de 神秀 JINSHŪ não se diferenciava demais do método do Sexto Patriarca. O Sūtra da Plataforma do Sexto Patriarca foi compilado logo após sua morte e é possível que, cinqüenta anos mais tarde, 荷澤神會 KATAKU JINNE – um discípulo do Sexto Patriarca - ou algum discípulo de 荷澤神會 KATAKU JINNE, tenham acrescentado as críticas à escola de 神秀 JINSHŪ da Iluminação gradual. 荷澤神會 KATAKU JINNE foi um grande mestre 禅 ZEN. Era muito ativo e criticava a pratica de 神秀 JINSHŪ, mas provavelmente não com tanta dureza como a que transmitem as palavras do Sūtra. Pode ser que 荷澤神會 KATAKU JINNE ou seus discípulos acrescentaram este poema:

Page 86: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

86

“Não há árvore Bodhi,

não há espelho. Não há um suporte para o espelho, nada há.

Como poderia então limpá-lo?”28

28 大満弘忍 DAIMAN KŌNIN, o Quinto Patriarca, queria encontrar seu sucessor e pediu aos monges que escrevessem um poema no qual expressassem sua compreensão do 禅 ZEN. 神秀 JINSHŪ, o decano dos monges, escreveu, no meio da noite, o seguinte poema sobre a parede do monastério:

身是菩提樹 MI WA KORE BODAIJU 心如明鏡台 SHIN WA MEIKYÕDAI NO GOTOSHI 時時勤拂拭 JIJI NI TSUTOMETE FUSSHIKI SHITE 莫使惹塵埃 JIN'AI O SHITE HIKASHIMURU KOTO NAKARE

“O corpo é a árvore Bodhi, a mente é um espelho puro. Há que limpá-lo sem cessar e não deixar que o pó se acumule”. Quando no dia seguinte 慧能 ENŌ viu este poema, pediu ao monge que estava ao seu lado para que o lesse. “Eu também tenho um poema. Como sou analfabeto, poderia escrevê-lo para mim?”

菩提本無樹 BODAI MOTO JU NASHI 明鏡亦非台 MEIKYÕ MO MATA DAI NI ARAZU 本夾無一物 HONRAI MUICHIMOTSU 何處惹塵埃 DORE NO SHO NI KA JIN'AI O HIKAN “Não há árvore Bodhi nem suporte de um espelho puro. Como tudo é Vacuidade, onde poderia se depositar a poeira?”

Page 87: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

87

Como este não é um poema muito bom, muitas pessoas criticaram-no e pensaram que o Sexto Patriarca não podia tê-lo escrito.

Naqueles dias era uma honra possuir uma cópia do Sūtra da Plataforma do Sexto Patriarca. Existiam muitas versões do mesmo e a mais antiga não inclui este poema nem qualquer crítica sobre a escola de 神秀 JINSHŪ.

Um dos objetivos do 參同会 SANDŌKAI é esclarecer esta falsa idéia sobre 神秀 JINSHŪ, que dá a impressão de que ele se apegava aos rituais ou à erudição. O estudo intelectual pertence a 事 JI. 理 RI é algo que se pode experimentar através da prática. Talvez vocês acreditem que o estudo intelectual é 理 RI, mas para mim não é assim. Nossa prática consiste em realizar 理 RI ou alcançar uma completa compreensão dele, em aceitá-lo. Mas mesmo que vocês pratiquem 座禅 ZAZEN e acreditem que é理 RI, ou a obtenção ou a realização de 理 RI, segundo 石頭 SEKITŌ, nem sempre é assim. Se vocês compreenderem este ponto, já haverão compreendido todo o 參同会 SANDŌKAI.

Os primeiros versos do poema são a introdução: 竺土大仙の心 CHIKUDO DAISEN NO SHIN, “A mente do grande sábio da Índia”. 東西密に相附す。TŌ ZAI MITSU NI AI FUSU. “É transmitida intimamente de Oeste pra Leste”. Aqui, 大仙 DAISEN, “grande sábio”, pode também significar ermitão. No tempo de 石頭 SEKITŌ haviam muitos eremitas taoistas que se orgulhavam de seus poderes sobrenaturais e buscavam um elixir que lhes

Quando 弘忍 KŌNIN viu este poema, soube que o autor tinha a

compreensão do 禅 ZEN que ele estava buscando e reconheceu 慧能 ENŌ como seu sucessor no Dharma e como Sexto Patriarca.(N.T.)

Page 88: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

88

prolongasse a vida. Não estavam muito interessados na prática budista nem entendiam porque era tão necessário praticar 座禅 ZAZEN. 道元 禅師 DŌGEN ZENJI29 também se fazia a mesma questão. Se temos todos a natureza de Buddha, por que é preciso praticar? Sofria devido a esta questão. Não podia resolver este problema através do estudo intelectual.

Quando vocês se conhecerem realmente, compreenderão a importância de praticar 座禅 ZAZEN. Se não souberem o que estão fazendo, não poderão saber porque praticamos. Vocês acreditam que são livres, que o que fazem só diz respeito a vocês mesmos, mas na realidade estão criando um karma para vocês e para os demais. Como não sabem o que estão fazendo, acreditam que não é necessário praticar 座禅 ZAZEN. Mas temos que pagar nossas próprias dívidas, ninguém pode fazê-lo por nós. Por isso é necessário praticar. Praticamos para cumprir com nossas responsabilidades. Temos de fazê-lo. Se não praticarem, não se sentirão tão bem e além disso criarão problemas para os demais. Mas se não estiverem conscientes deste fato dirão: “Por que é necessário praticar 座禅 ZAZEN?” Ademais, quando dizem: ”Temos a natureza de Buddha”, talvez acreditem que a natureza de Buddha é como ter um diamante na dobra da manga30. Mas a verdadeira natureza de Buddha não é assim. Um

29 禅師 ZENJI é no Budismo japonês um título honorífico que significa “Mestre ZEN”. 30 Alusão à história de dois amigos que se encontram depois de muito tempo separados. Um está muito rico e o outro, miserável. Apesar de querer ajudá-lo, o amigo rico esbarra no orgulho do amigo pobre que se recusa a receber o que quer que seja. O amigo rico aproveita então quando o amigo pobre está dormindo e costura no forro de sua remendada camisa uma pedra preciosa, de valor suficiente para comprar um palácio. Na manhã seguinte, os amigos se separam. Tempos depois, voltam a se encontrar e para espanto do amigo rico, o outro permanece miserável, pois passou todo o tempo ignorando que trazia aquele tesouro costurado em sua roupa. (N.T.)

Page 89: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

89

diamante é 事 JI, mas não é 理 RI. Estamos sempre comprometidos com o mundo de 事 JI sem realizar 理 RI.

Há outro ponto que me interessa muito. Tradicionalmente os budistas dizem, como possivelmente vocês já sabem, que o Budismo não durará para sempre. Os Sūtras assinalam diferentes espaços de tempo, mas em geral dizem que o Dharma desaparecerá 1500 anos depois da morte de Buddha.

Segundo a tradição budista, durantes os primeiros quinhentos anos, na época dos discípulos diretos de Buddha ou dos discípulos de seus discípulos, haveria grandes sábios como o Buddha. Trata-se de 正法 SHŌBŌ, a época de Buddha. Nos quinhentos anos seguintes, as pessoas praticariam 座禅 ZAZEN e estudariam o Budismo. Refere-se a 像法 ZŌHŌ, a época da

imitação do Dharma. Em 末法 MAPPŌ, o último período, que se inicia mil anos depois da morte de Buddha, as pessoas não observarão os preceitos, lerão e cantarão os Sūtras, mas não estarão interessadas no 座禅 ZAZEN. Serão muito poucos os que praticarão 座禅 ZAZEN e compreenderão os ensinamentos. Na realidade, isto é bem verdadeiro. Na atualidade não se observam os preceitos.

No período 末法 MAPPŌ as pessoas estarão envoltas em idéias acerca da Vacuidade e do ser, mas sem entender realmente o que significam. Falamos da Vacuidade e vocês acreditam que a compreendem, mas mesmo que possam explicá-la muito bem, trata-se de 事 JI e não de 理 RI. A verdadeira Vacuidade será experimentada – na verdade não será experimentada, mas realizada – através de uma boa prática. O propósito do 參同会 SANDŌKAI é deixar claro no que consiste a Vacuidade, o ser, a escuridão, a claridade e a verdadeira fonte do ensinamento, e quem são os diversos seres que são sustentados pela verdadeira fonte dos ensinamentos.

Pedi emprestado à Masa, a mulher de Gary Snyder, um livro sobre 山海経 SANGAIKYŌ (em chinês, San Jie), uma pequena

Page 90: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

90

escola tântrica do Japão. O livro diz que mil anos depois da morte de Buddha as pessoas se dividirão em duas classes: os inocentes e os cínicos. Falando com propriedade, nem os japoneses nem os norte-americanos observam os preceitos. Em ambos países as pessoas consomem pescado e se sacrificam animais. Mas na América as pessoas são muito inocentes. Quando violam os preceitos, na realidade não sabem o que estão fazendo. No Japão, ao contrário, somos uns cínicos, porque sabemos o que estamos fazendo mas continuamos violando os preceitos. As pessoas inocentes parecem ser umas cínicas, mas na realidade não é um autêntico cinismo.

Vocês podem perguntar: “Qual é o verdadeiro ensinamento de Buddha? Se não compreenderem, seguirão perguntando: “Qual é? Qual é? O que significa?” vocês estão buscando algo que possam compreender. Mas isto é um erro. Nós não existimos deste modo. 道元 禅師 DŌGEN ZENJI disse: “Não há pássaro algum que voe conhecendo os limites do espaço, nenhum peixe que nade conhecendo os confins do oceano”. Existimos num universo ilimitado. Os seres são inumeráveis e nossos desejos são infinitos, mas temos que seguir nos esforçando, da mesma forma que um peixe segue nadando e um pássaro segue voando. 道元 禅師 DŌGEN ZENJI disse: “Um pássaro voa como um pássaro, um peixe nada como um peixe”. Essa é a Via do Bodhisattva, e assim é que observamos nossa prática.

Quando compreendemos as coisas deste modo, não somos, segundo 道元 DŌGEN, pessoas vivendo em 末法 MAPPŌ, o último período; nossa prática não se vê perturbada pelo contexto do tempo ou do espaço. 道元 DŌGEN disse: “Buddha sempre está aqui”. De algum modo, o Budismo segue existindo e quando chegamos a compreender o que Buddha quis nos dizer, estamos vivendo na época de Buddha.

Page 91: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

91

Page 92: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

92

QUARTA PRELEÇÃO

A PEGA31 PENETRARÁ DIRETAMENTE EM

SEU CORAÇÃO

31 A pega é uma barulhenta ave do hemisfério norte, da família dos corvos. (N.T.)

Page 93: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

93

Page 94: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

94

門門一切境

門門一切の境、 MON MON ISSAI NO KYŌ,

Os objetos dos sentidos,

迴互不迴互

回互と不回互と、 EGO TO FU EGO TO,

Interagem e ao mesmo tempo não interagem.

迴而更相渉

回してさらに相渉る、

Page 95: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

95

ESHITE SARANI AI WATARU,

A interação produz implicação,

不爾依位住

しからざれば位によって住す、 SHIKARA ZAREBA KURAI NI YOTTE JŪ SU,

E, sem embargo, cada fenômeno se mantém em

seu próprio lugar.

Na última preleção expliquei como as pessoas se apegam a 事 JI, “os fenômenos”. Isto é algo corriqueiro. A característica dos ensinamentos de Buddha é ir mais além dos fenômenos; mais além dos diversos seres, idéias e coisas materiais. Quando dizemos “a verdade”, normalmente nos referimos a algo que podemos entender. A verdade que podemos entender ou a verdade sobre a qual podemos pensar é 事 JI. Quando vamos mais além do mundo subjetivo e do mundo objetivo, chegamos a compreender a unidade de tudo, a unidade da subjetividade e da objetividade, a unidade do interno e do externo. Por exemplo, quando vocês se sentam em 座禅 ZAZEN não pensam nem observam o que quer que seja. O centro de atenção se acha frente a vocês a um metro e meio de distância, mas vocês nada contemplam. Mesmo que surjam em nossa mente muitas idéias, não pensamos nelas; elas chegam e vão, isso é tudo. Não damos entretenimento às diversas idéias: não as

Page 96: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

96

convidamos a ficar nem oferecemos comida nem qualquer outra coisa. Caso apareçam, tudo bem, e se vão embora, também. Isso é tudo. Isso é 座禅 ZAZEN. Quando praticamos deste modo, nossa mente inclui tudo, mesmo que não tentemos fazê-lo. Não nos preocupamos com algo inalcançável nem desejamos obtê-lo. Qualquer coisa que digamos em qualquer momento se encontra em nossa mente. Mas normalmente acreditamos que existem muitas coisas: que há isto e isso e aquele outro. No cosmos há muitas estrelas, mas por enquanto só chegamos à lua. Ao cabo de alguns anos pode ser que cheguemos a outros planetas e ao final, talvez até a outro sistema solar. No Budismo, a mente e o ser são um só, não são distintos. Como os seres cósmicos são infinitos, nossa mente é ilimitada, chega a qualquer lugar. Como finalmente inclui as estrelas, nossa mente é apenas nossa mente, mas é algo maior que a pequena mente que acreditamos que é. Nossa mente e os fenômenos são um. De modo que se vocês pensarem “tudo isso é minha mente”, está certo. E se pensarem “ali há outros seres”, também está certo. Mas indo diretamente ao assunto, quando os budistas dizem “isto” ou “aquilo” ou “eu”, esses “isto” ou “aquilo” ou “eu” incluem tudo. Escutem o tom de voz em vez de só as palavras. O som é distinto do ruído. O som é algo que surge de sua prática. O ruído é algo mais objetivo, algo que pode incomodá-los. Se tangerem um tambor, o som que fizerem é o som de sua prática subjetiva e também o som que nos anima. O som é tanto subjetivo como objetivo. No Japão dizemos 響 HIBIKI. 響 HIBIKI significa “algo que vai e vem como um eco”. Se você diz algo, receberá a resposta daquilo que provocou: vai e vem. Isso é o som. Os budistas interpretam o som como uma criação da mente. Eu posso pensar ”o pássaro está cantando ali”. Mas quando estou ouvindo, eu já sou o pássaro. Na realidade, não o estou escutando. O pássaro já está aqui, na minha mente, e eu estou cantando com ele: Pip, pip, pip. Se enquanto vocês estudarem pensarem “a

Page 97: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

97

pega está cantando no telhado, mas não o está fazendo assim tão bem”, este pensamento é um ruído. Em contrapartida, quando as pegas não estiverem perturbando-os, elas penetrarão diretamente em seus corações e vocês serão uma pega e a pega estará lendo algo, e não perturbará sua leitura. Quando pensamos “esta pega não deveria estar sobre o telhado”, esse pensamento é uma compreensão mais primitiva do ser. Por causa de nossa falta de prática, compreendemos as coisas deste modo. Quanto mais vocês praticarem 座禅 ZAZEN, mais poderão aceitar que qualquer coisa nada mais é senão vocês mesmos, seja o que for. Estes são os ensinamentos de 事事 無礙 JIJI

MUGE da escola 華嚴 KEGON32 (em chinês, Huayen). 事事 JIJI significa “ser sem barreira, imperturbável”. Como as coisas estão inter-relacionadas, é difícil dizer “isto é um pássaro e isto sou eu”. É difícil separar a pega de mim. Isso é 事事 無礙 JIJI MUGE.

O texto diz: 門門一切の境, MON MON ISSAI NO KYŌ, “Os objetos dos sentidos”, 回互と不回互と、EGO TO FU EGO TO, “Interagem e ao mesmo tempo não interagem”. Mesmo que as coisas estejam inter-relacionadas, todo mundo – qualquer ser – pode ser o chefe. Cada um de nós pode ser o chefe porque 32

Trata-se de 四 法界 SHI HŌKAI, os quatro Dharnadhātu, reinos da realidade, assim como são explicados pelos mestres da escola 華嚴 KEGON:

事 法界 JI HŌKAI, “Reino dos fenômenos individuais”, reino dos fenômenos, com diferenciação;

理 法界 RI HŌKAI, “Reino do princípio uno”, Shūnyatā (Vacuidade), reino numênico da unidade;

理事 無礙 法界 RIJI MUGE HŌKAI, “Reino da não obstrução entre principio e fenômeno”, onde essência e fenômeno são interdependentes.

事事 無礙 法界 JIJI MUGE HŌKAI, “Reino da não obstrução entre fenômenos”, onde os fenômenos são também entre si interdependentes. (N.T.)

Page 98: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

98

estamos intimamente relacionados. Se eu digo “Mel”, Mel deixa de ser só Mel. É um dos estudantes do centro 禅 ZEN. Se vocês

vêem Mel compreendem o que é o Centro 禅 ZEN. Mas se pensarem “Oh! É apenas Mel!”, não terão uma compreensão boa o bastante. Significa que vocês não sabem quem é Mel. Se tiverem uma boa compreensão das coisas em si mesmas, compreenderão o mundo através delas. Cada um de nós é o chefe do mundo inteiro. E ao ter esta compreensão, vocês descobrirão que as coisas estão inter-relacionadas e que, sem embargo, também são independentes. Não há nada com que vocês possam comparar. São simplesmente vocês mesmos. Temos de compreender as coisas de duas formas. Uma delas é compreender que estão inter-relacionadas. E a outra, compreender que cada um é independente de todos os demais. Quando incluímos tudo em nós mesmos, somos totalmente independentes, porque não há qualquer coisa com que possamos comparar. Se só há uma coisa, como poderia ser comparada com outra? Como nada há com que vocês possam comparar, vocês têm uma absoluta independência, não estão inter-relacionados, são absolutamente independentes. Continuando, o texto diz: 門門一切の境, MON MON ISSAI NO KYŌ, “Os objetos dos sentidos”. Os sentidos - os olhos, os ouvidos, o nariz, a língua e o corpo - são portas33, e os objetos dos sentidos entram por elas. Estão inter-relacionados e, ao mesmo tempo, são independentes. Para os olhos há algo que se ver, para os ouvidos há algo que se ouvir, para o nariz há algo que se cheirar, para a língua há algo que saborear, para o corpo há algo que tocar. Existem cinco classes de objetos sensoriais para os cinco órgãos sensoriais. Este é o sentido comum budista. O poema ao citá-los está se referindo simplesmente a “tudo”. É como dizer “as flores e as árvores, os pássaros e as estrelas, os

33 Em japonês, 門 MON significa porta, portão. (N.T.)

Page 99: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

99

riachos e as montanhas”, mas em seu lugar falamos “cada um dos sentidos e seus objetos”. Os diversos seres que vemos e ouvimos estão inter-relacionados mas ao mesmo tempo, cada ser é absolutamente independente e tem seu próprio valor. A este valor chamamos 理 RI. 理 RI é aquilo que outorga significado a algo, não é apenas algo teórico. Mesmo que não alcancemos a Iluminação, dizemos que já a temos. A esta Iluminação chamamos 理 RI. O fato de que algo exista aqui significa que há alguma razão para tanto. Eu não a conheço. Ninguém a conhece. Cada coisa tem o seu próprio valor. É muito curioso que não haja duas coisas que sejam iguais. Como nada há com que vocês possam compará-lo, vocês têm seu próprio valor. Este valor não é um valor comparativo nem um valor de intercâmbio, é mais do que isso. Quando vocês permanecerem simplesmente em 座禅 ZAZEN

sobre o坐蒲 ZAFU, terão seu próprio valor. Apesar de que este valor esteja relacionado com todos os demais, também é absoluto. Talvez seja melhor não falar demasiado disso. 回してさらに相渉る、ESHITE SARANI AI WATARU, “A interação produz implicação”. Um pássaro chega do sul na primavera e regressa no outono ao sul cruzando várias montanhas, rios e oceanos. As coisas se relacionam da mesma forma sem cessar, por todos os lugares. しからざれば位によって住す、SHIKARA ZAREBA KURAI NI YOTTE JŪ SU, “E, sem embargo, cada fenômeno se mantém em seu próprio lugar.” Este verso significa que ainda que o pássaro esteja em algum lugar, em um lago, por exemplo, seu lar não é só o lago mas o mundo inteiro. Assim é como um pássaro vive. No 禅 ZEN dizemos que cada um de nós é tão íngreme como um abismo. Ninguém pode nos escalar. Somos completamente independentes. Mas, quando me ouvirem dizer isso, também devem compreender o outro lado, o de que

Page 100: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

100

estamos nos inter-relacionando sem cessar. Se apenas compreenderem um lado da verdade, não poderão ouvir o que eu estou lhes dizendo. Se não compreenderem as palavras 禅 ZEN,

não estarão compreendendo o 禅 ZEN e não serão ainda

estudantes do 禅 ZEN. As palavras 禅 ZEN são distintas das palavras normais. São como uma espada de fio duplo, cortam em ambos os lados. Talvez vocês estejam pensando que só estou cortando para frente, mas não é assim, na realidade também estou cortando para trás. Vigiem minha cutilada! Compreendem? Às vezes repreendo um discípulo dizendo-lhe: “Não!”. Um outro estudante pensa: “Oh! Ele o repreendeu!” Mas na realidade não é assim. Como não posso repreender o estudante que está mais distante, hei de repreender o que tenho próximo de mim. Mas a maioria pensa: “Oh! Coitadinho, está sendo repreendido!” Se pensarem desta forma não são estudantes 禅 ZEN. Quando repreendo alguém vocês deverão escutar, deverão prestar suficiente atenção para saber a quem estou repreendendo. Assim é como nós ensinamos. Quando eu era um discípulo muito jovem, meus irmãos no Dharma e eu fomos a um determinado lugar com nosso mestre e voltamos para casa bastante tarde. No Japão há muitas serpentes venenosas. Meu mestre nos disse: como vocês estão usando 足袋 TABI [coturnos brancos que se usam com as sandálias] e eu não, uma serpente poderia me morder, portanto é melhor que vocês fiquem na minha frente. Nós concordamos e assim o fizemos. Mas quando chegamos ao templo, ele nos disse rispidamente: “Sentem-se todos!” Não sabíamos o que havia ocorrido, mas nos sentamos frente a ele. “Vocês são uns rapazes bem sem consideração!”, disse-nos. “Se eu não estava usando o 足袋 TABI, por que vocês continuaram usando os seus?” “Eu os avisei: Não estou usando 足袋 TABI. Vocês deveriam ter compreendido e tirado os 足袋 TABI, mas não o

Page 101: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

101

fizeram e seguiram andando à minha frente. Vocês são uns rapazes muito estúpidos!” Temos que estar atentos o suficiente para ouvir o significado que há por detrás das palavras. Isso é tudo. Devemos captar mais do que simplesmente o que é dito. Uma noite, quando eu era estudante no monastério de 永平 寺 EIHEI JI34, abri a porta de correr do 障子 SHŌJI35 pela parte da direita – porque é costume abri-la deste lado – mas fui repreendido: “Não abra a porta por este lado!”, cutucou-me um dos monges mais antigos. Na manhã seguinte, abri a porta pelo lado esquerdo e voltaram a me repreender: “Por que você está abrindo a porta deste lado?” Eu já não sabia o que fazer. Quando a abria pelo lado direito me repreendiam, e quando a abria pelo lado esquerdo, também. Não consegui averiguar porque. Mas no final observei que da primeira vez, havia uma visita na parte direita da porta de correr, e na segunda, uma na parte esquerda. Ou seja, que nas duas vezes que havia aberto a porta o visitante havia ficado a descoberto. Essa era a razão da repreensão. Em永平 寺 EIHEI JI nunca nos diziam porque nos repreendiam, simplesmente o faziam. As palavras tinham duplo sentido. As palavras do 參同会 SANDŌKAI também são uma espada de fio duplo. Um lado é a interdependência 回互 EGO e o outro a absoluta independência 不回互 FUEGO. Esta interdependência sucede sem cessar por todos os lugares e, sem embargo, as coisas se mantém em seu próprio lugar. Este é o ponto principal do 參同会 SANDŌKAI. 34 永平 寺 EIHEI JI , fundado no século XIII por 永平道元 EIHEI DŌGEN, é

um dos principais templos da escola 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN. 35 障子 SHŌJI é a divisória ou porta de correr tradicional dos cômodos japoneses, feita de uma treliça de madeira recoberta com papel de arroz translúcido. (N.T.)

Page 102: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

102

DIÁLOGO

ESTUDANTE: a interdependência significa que o pássaro é o mundo inteiro e a independência, que o pássaro não é mais que um pássaro?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. No Sūtra do Coração da

Grande Sabedoria Completa36 se diz que “A forma é Vazio e o Vazio é forma”37. “A forma é vazio”: 回互 EGO. E “O vazio é forma”: 不回互 FUEGO. [Dá uma pancada na mesa.] Isto é 不回互 FUEGO. Sabe que nada pode ser dito. É difícil dizer o que é. [Volta a dar uma pancada na mesa.]

ESTUDANTE: Existe alguma razão em particular pela qual

tocamos o sino quando cantamos a primeira sílaba do verso 門門一切の境, MON MON ISSAI NO KYŌ?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Tocar o sino significa produzir um Buddha independente, um Buddha após o outro. Gong. Um Buddha. Aparece um Buddha independente. Gong. Aparece outro 36 Em sânscrito, Mahā Prajñā Paramitā Hridaya Sūtra. Em japonês, 摩訶 般若 波羅蜜多 心経 MAKA HANNYA HARAMITTA SHINGYŌ. (N.T.) 37 Em japonês, 色不異空、空不異色、SHIKI FU I KŪ, KŪ FU I SHIKI. “Forma não é mais que vazio, vazio não é mais que forma”. (N.T.)

Page 103: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

103

Buddha independente. Quando o Buddha seguinte aparece, o anterior desaparece. Ao tocar o sino uma e outra vez, você vai produzindo um a um, um Buddha após o outro. Esta é a nossa prática. ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, hoje alguém disse: “Sem estudantes não há mestre, sem mestre não há estudantes”. Outro perguntou: “O que faz com que o 老師 RŌSHI seja um

老師 RŌSHI?” e alguém respondeu: “Os estudantes”. Sem

estudantes você não poderia ser um 老師 RŌSHI. E sem um

老 師 RŌSHI não poderia haver estudantes. Ambos são independentes porque seguem unidos. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim, seguem unidos. Sem estudantes, não há mestre. E os estudantes animam o mestre. Assim é. Se eu não tivesse estudantes, talvez descansasse o dia todo. Mas como tenho tantos olhos me observando, tenho de fazer algo: devo estudar e dar uma preleção. Se não tivesse que a dar, não estudaria. Mas, ao mesmo tempo, deveria me envergonhar de mim mesmo se estudasse apenas para preparar a preleção. Em geral, quando estudo para a preleção me ponho a pensar em outra direção e sigo algo interessante, e a maior parte das vezes acabo não estudando para a preleção. Mas de todo o modo, se não estudo para a preleção não me sinto muito bem. Como penso que necessito me preparar para ela, ponho-me a estudar. Mas quando começo, deixo-me levar e estudo pelo mero fato de estudar, não só para dar a preleção. As coisas estão ocorrendo sem cessar deste modo. E como vocês já sabem, é bom que seja assim. Algum dia o que estudo ajudará os estudantes. Não sei quando acontecerá. Estudamos para nos sentir bem e praticamos座禅 ZAZEN para nos sentirmos melhor. Ninguém sabe o que

Page 104: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

104

nos ocorrerá depois de havermos sentado em 座禅 ZAZEN durante um, dois, ou dez anos. Ninguém sabe e tudo bem que seja assim. Na realidade, sentamos-nos em 座禅 ZAZEN apenas para nos sentirmos bem. No fundo, essa classe de prática sem objetivos os ajudará.

QUINTA PRELEÇÃO

MESMO QUE HOJE SEJAMOS MUITO FELIZES,

NÃO SABEMOS O QUE AMANHÃ NOS OCORRERÁ

Page 105: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

105

Page 106: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

106

色本殊質象

色もと質像を殊にし、 SHIKI MOTO SHITSU ZŌ O KOTONI SHI,

As imagens variam em qualidade e forma,

聲元異樂苦

声もと楽苦を異にす、 SHŌ MOTO RAKKU O KOTO NI SU,

Os sons podem ser prazerosos ou desagradáveis.

Page 107: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

107

暗合上中言

暗は上中の言に合い、 AN WA JŌ CHŪ NO KOTO NI KANAI,

As palavras refinadas e as ordinárias não diferem

na escuridão,

明明清濁句

明は清濁の句を分つ、 MEI WA SEI DAKU NO KU O WAKATSU,

As frases claras e as obscuras se distinguem na luz.

Cada coisa tem sua própria natureza e forma e quando vocês escutam uma voz ela pode ser prazerosa ou desagradável. O 參同会 SANDŌKAI esta falando aqui das imagens e dos sons, mas ocorre o mesmo com os outros sentidos e também com a mente. Há sabores deliciosos ou repugnantes, sentimentos bons ou maus, idéias agradáveis ou desagradáveis. É nosso apego a isso o que nos faz sofrer. Quando vocês ouvem algo bom, aproveitam disso. E quando ouvem algo ruim, zangam-se ou ficam alterados. Mas se vocês entendessem a realidade por completo, as coisas não os perturbariam. O verso seguinte confirma este fato: 暗は上中の言に合い、AN WA JŌ CHŪ NO

Page 108: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

108

KOTO NI KANAI, “As palavras refinadas e as ordinárias não diferem na escuridão”. Nós compreendemos as coisas de duas formas: Na escuridão, 暗 AN, e na luz da forma, 色 SHIKI, donde vemos as coisas como boas ou como más. Sabemos que as coisas em si mesmas não são boas ou más. Somos nós que as distinguimos como boas e más, criando com isso algo bom ou algo mau. Se reconhecermos este fato, não sofreremos tanto. “Oh! É isso o que estou fazendo!”, pensaremos. As coisas por si mesmas não são por natureza boas nem más. Compreender isso é compreender as coisas em meio à escuridão. Neste caso, vocês não se enredarão numa compreensão dualista das coisas, vendo-as como boas ou más. 石頭 SEKITŌ diz: 暗は上中の言に合い、AN WA JŌ CHŪ NO KOTO NI KANAI,“As palavras refinadas e as ordinárias não diferem na escuridão”. A escuridão inclui tanto o bom quanto o mau. Na maior escuridão, as palavras boas e as palavras más não vão perturbá-los. 明は清濁の句を分つ、MEI WA SEI DAKU NO KU O WAKATSU, “As frases claras e as obscuras se distinguem na luz”. Há palavras puras e palavras turvas. Em meio à luz, as palavras se tornam dualistas, há a dualidade do puro e do impuro. Mesmo que estivermos com raiva de alguém, podemos prosseguir aceitando esta pessoa. Como um mestre conhece seu discípulo muito bem, às vezes se aborrece muito com ele. O mestre sabe que o seu discípulo é muito bom, mas algumas vezes este é muito preguiçoso. Então o mestre o espanca. Outras vezes, o mestre o elogia ou o anima. Mas isto não significa que adote métodos ou atitudes distintos. A compreensão do mestre é a mesma, mas sua expressão é distinta. Os discípulos pessimistas, que vêem as coisas de uma maneira muito negativa, devem ser animados. Mas se são demasiado bons ou brilhantes, o mestre deverá repreendê-los. Assim é como agimos.

Page 109: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

109

Nós dizemos “a forma positiva” e a “forma negativa”. A forma positiva consiste em reconhecer as coisas em termos de bom ou mau, de belo ou feio. Se vocês se esforçarem a fundo, serão bons estudantes. Reconhecer o esforço que o estudante tem feito é a forma positiva. A forma negativa, ao contrário, consiste em nada aceitar. Qualquer coisa que disserem, receberão trinta varadas. Positiva e negativa... às vezes se usa a primeira, e outras, a segunda. Em geral nos apegamos muito ao lado claro ou ao lado escuro das coisas. Vocês conhecem este famoso 公案 KOAN? Um monge pergunta a seu mestre: “Está fazendo muito calor. Como poderia me livrar dele?” E o mestre responde: “Por que você não vai para um lugar onde não faça calor nem frio?” O discípulo disse: “Acaso existe um lugar onde não faça calor nem frio?” E o mestre respondeu: “Quando faz frio, você há de ser um Buddha frio. Quando faz calor, há de ser um Buddha quente.” Talvez vocês acreditem que se praticarem 座禅 ZAZEN alcançarão um estado no qual não faça calor nem frio, em que não haja felicidade nem dor. Pode ser que perguntem: “Se pratico 座禅 ZAZEN, posso alcançar este tipo de ganho?” Um verdadeiro mestre responderá: “Quando sofrer, sofra. Quando se sentir bem, sinta-se bem”. Algumas vezes deveremos ser um Buddha que sofre. Outras, um Buddha que chora. E outras, um Buddha muito feliz. Esta felicidade não é exatamente a mesma felicidade que a gente costuma experimentar. Há entre ambas uma pequena diferença e esta pequena diferença é importante. Como os Buddhas conhecem os dois aspectos da realidade, têm esta classe de serenidade. Não se alteram quando lhes ocorre algo mau nem se extasiam quando lhes ocorre algo bom. Têm uma autêntica alegria que nunca perderão. Para eles, o tom básico da vida segue sendo o mesmo e nele há algumas melodias felizes e algumas melodias tristes. Esta é a sensação que tem uma pessoa Iluminada. Significa que quando vocês tiverem calor ou quando se sentirem tristes, deverão se entregar por completo ao calor ou à tristeza, sem se importarem com a felicidade. E

Page 110: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

110

quando forem felizes, deverão desfrutar completamente desta felicidade. E podemos fazê-lo porque mentalmente estamos preparados para qualquer coisa. Mesmo que as circunstâncias mudem de repente, não nos importa. Ainda que hoje sejamos muito felizes, não sabemos o que amanhã nos ocorrerá. Quando estamos preparados para o que possa nos ocorrer amanhã, podemos desfrutar do dia de hoje por completo. E isto não se consegue estudando uma preleção, mas através da prática. Esta são as palavras de 石頭 SEKITŌ. Mais tarde, na época de 洞山 TŌZAN (três gerações depois de 石頭 SEKITŌ), as pessoas começaram a se apegar aos jogos de palavras a cerca da claridade e da escuridão. Gostavam de falar do lado claro, do lado escuro e do Caminho do Meio, mas perderam a chave de como alcançar a verdadeira liberdade. 道元禅師 DŌGEN ZENJI, que viveu mais tarde ainda, não só não ficou aprisionado nestes jogos de palavras, como destacou a forma de sair deles apreciando as coisas a cada momento. Estava mais interessado num 公案 KOAN como aquele de: “Quando fizer frio, deve-se ser um Buddha frio; quando fizer calor, deve-se ser uma Buddha quente”. Isso é tudo. A via de 道元 DŌGEN é se entregar por completo ao que cada um está fazendo sem pensar em várias coisas ao mesmo tempo. E este tipo de sucesso não é alcançado através de palavras, mas da prática. As palavras podem nos ajudar a compreender as coisas. Quando vocês são muito dualistas, quando estão confusos, elas podem ajudá-los. Mas se vocês têm demasiado interesse em falar delas, vão se perder. Há que se interessar pelo 座禅 ZAZEN em si mesmo e não pelas palavras, e praticar um verdadeiro 座禅 ZAZEN. A Via de 道元禅師 DŌGEN ZENJI consiste em encontrar o significado em cada ser, como num grão de arroz ou num pote d’água. Vocês podem dizer que um pote d’água ou um grão de arroz é algo que é visto na brilhante luz. Mas quando vocês

Page 111: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

111

manifestarem um profundo respeito pelo grão de arroz, significa na realidade que o estão respeitando como se ele fosse o próprio Buddha, e compreenderão então que um grão de arroz é absoluto. Quando viverem entregando-se por completo no mundo dualista, possuirão o mundo absoluto em seu verdadeiro sentido. Quando praticarem 座禅 ZAZEN sem perseguir a Iluminação ou qualquer outra coisa, a verdadeira Iluminação estará presente. DIÁLOGO ESTUDANTE: Quando estou desperto, talvez tenha um pouco de controle sobre meus desejos, mas de manhã... 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: De manhã você tem problemas. Eu sei. Por isso digo: “Levantem-se”. [Dá um golpe na mesa.] ESTUDANTE: E como posso consegui-lo? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Faça-o sem delongas. Caso contrário virá alguém e lhe dará uma varada! [Faz uma espécie de gracioso grunhido.] ESTUDANTE: Consegui me levantar um par de vezes e saltei da cama. Mas foi uma façanha! 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Uma verdadeira façanha. Quando puder se levantar sem qualquer problema, creio que sua prática será quase boa. É uma oportunidade ideal para praticar nossa Via. Levantar-se imediatamente! De acordo? Isso é o mais importante.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, estudar um livro o que ocasiona?

Page 112: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

112

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Para você talvez não seja importante, mas eu devo ter uma idéia clara do que estou falando ou, se não, é melhor nada dizer. Por isso estudo antes de dar uma preleção. Meu mestre sempre me dizia: “Mesmo que não te sirva de ajuda, antes de uma preleção você deve estudar”. [risos]

SEXTA PRELEÇÃO

A BARCA ESTÁ SEMPRE SE MOVENDO

Page 113: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

113

Page 114: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

114

四大性自復

四大の性おのずから復す、 SHIDAI NO SHŌ ONOZU KARA FUKUSU,

Os quatro elementos regressam à sua natureza,

如子得其母

子の其の母を得るがごとし、 KONO SONO HAHA O URU GA GOTOSHI,

Tal qual uma criança retorna à sua mãe.

火熱風動搖

Page 115: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

115

火は熱し、風は動揺、

HI WA NESSHI, KAZE WA DŌYŌ,

O fogo queima, o vento move,

水濕地堅固

水は湿い、地は堅固、 MIZU WA URUOI, CHI WA KENGO,

A água molha, a terra é sólida

Segundo o pensamento budista, os quatro elementos são o fogo, o vento, a água e a terra. Mesmo que não seja uma descrição perfeita, dizemos que cada um destes quatro elementos tem sua própria natureza. A natureza do fogo é purificar. O vento faz as coisas amadurecerem. Não sei porque, mas a natureza do vento faz as coisas amadurecerem mais depressa. O vento tem uma atividade mais orgânica. Ao contrário, a atividade do fogo é mais química. A natureza da água é a de conter as coisas. Onde quer que vocês vão, haverá água; a água contém tudo. Em geral, a água é compreendida da forma contrária. Mas nós em vez de dizer que no tronco de uma árvore há água, dizemos que a água contém o tronco e também as folhas e os ramos. A água é portanto, algo imenso e no qual tudo – inclusive nós mesmos – está incluído. A natureza da terra é a

Page 116: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

116

solidez. Aqui, “terra” não significa um terreno, mas a natureza sólida da matéria. Segundo o Budismo, ao decompormos um objeto na sua menor unidade que se possa imaginar, esta unidade se chama 極微 GOKUMI 38 . Mesmo que às vezes se defina isto como “átomo”, não o é, porque um átomo não é a menor unidade. Eu não conheço os termos adequados, mas segundo minha compreensão da física moderna, a última unidade do ser carece de peso ou de tamanho. Não é mais que energia elétrica. Curiosamente, o Budismo tem uma idéia parecida. Apesar de que um 極微 GOKUMI contenha os quatro elementos – fogo, vento, água e terra – não é algo sólido. Quando chegamos a este ponto vemos que sua natureza é simplesmente a Vacuidade. Os quatro elementos não são só materiais. São também energia, potencial ou disposição. Isto é o 極微 GOKUMI. A estes quatro elementos acrescentamos a qualidade da Vacuidade. O fogo, o vento, a água e a terra são portanto vazio. Entretanto, ainda que sejam vazio, é desta Vacuidade que se manifestam os quatro elementos. E enquanto se manifestam, aparece a última unidade, o 極微 GOKUMI. É assim como o Budismo compreende o ser. Parece que estamos falando de matéria, mas estes elementos não são apenas matéria, já que são tanto espírito como matéria. E neles também está incluída a mente racional. A Vacuidade inclui tanto a matéria como o espírito, tanto a mente como o objeto, tanto o mundo subjetivo como o mundo objetivo. A Vacuidade é o ser último que nossa mente racional não pode compreender. Cada um destes quatro elementos regressa à sua própria natureza, ou seja, para a Vacuidade. 子の其の母を得るがごとし、 KONO SONO HAHA O URU GA GOTOSHI, “Tal qual uma criança retorna à sua mãe”. Sem a mãe o filho não existiria. O

38 Em sânscrito, Paramānu. (N.T.)

Page 117: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

117

menino existe porque a mãe existe. A existência da Vacuidade significa a existência dos quatro elementos. E mesmo que os quatro elementos existam, não são mais que uma formação momentânea da Vacuidade suprema. Neste quatro versos e nos seis seguintes, 石頭 SEKITŌ está explicando a realidade de duas formas: uma é a independência e a outra, a dependência. Em primeiro lugar fala da verdade da independência. Apesar de que haja quatro elementos, cada um deles regressa naturalmente para sua natureza original. Mesmo que haja muitos fenômenos, cada um deles é independente. O fogo é independente em sua natureza calorífica, o vento é independente em sua natureza de movimento, a água é independente em sua natureza umectante e a terra é independente em sua natureza de solidez. Cada fenômeno é independente. Gostaria de ler os versos que comentarei na próxima preleção para que vocês possam compreender melhor o conteúdo da presente:

眼色耳音聲

眼は色、耳は音声、 MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ,

Olhos e imagens, ouvido e sons,

鼻香舌鹹醋

Page 118: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

118

鼻は香、舌は鹹酢、 HANA WA KA, SHITA WA KANSO,

Nariz e odores, língua e sabores,

然依一一法

しかも一一の法において、 SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI OITE,

Cada um e todos os fenômenos dependem destas

raízes,

依根葉分布

根によって葉分布す、 NE NI YOTTE HABUNPU SU,

São como as folhas de uma árvore.

Page 119: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

119

本末須歸宗

本末すべからく宗に帰すべし、 HON MATSU SUBE KARAKU SHŪ NI KISU BESHI,

O tronco e os ramos compartilham a mesma

essência,

尊卑用其語

尊卑其の語を用ゆ、 SONPI SONO GO O MOCHI YU,

O venerado e o vulgar se expressam de sua própria

maneira.

Estes versos expressam a compreensão do que eu chamo de “independência”. Cada um de vocês é independente e, sem embargo, estão relacionados entre si. E mesmo estando relacionados entre si, são independentes. Pode-se dizer de ambas maneiras. Compreenderam? Normalmente, quando se diz que algo é “independente”, não se pensa que ao mesmo tempo também é “dependente”. Mas o Budismo não compreende assim a realidade. Nós sempre tentamos compreender as coisas por completo para não nos confundir. Tanto a “dependência” como a “independência” não devem nos confundir. Se alguém nos disse “Tudo é independente”, dizemos “Sim, está certo.” E se outra

Page 120: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

120

pessoa afirma “As coisas estão inter-relacionadas”, dizemos “Sim, também está certo”. Compreendemos ambos aspectos. Seja o que for que respondemos, está correto. Mas se alguém só tem em conta a idéia de independência, diremos “Não, você está equivocado”. Há muitos 公案 KOAN sobre isso, como o seguinte: “Se o fogo kármico final queimasse tudo, existiria naquele momento a natureza de Buddha?” Algumas vezes o mestre responde: “Sim, existiria”. Mas outras vezes diz: “Não, não existiria”. Ambas respostas são certas. Um discípulo poderia lhe perguntar: “Por que disse então que existiria?” E receberia no ato um grande bofetão. “Mas, em que está pensando?”, responderia o mestre. “Não compreende o que eu quero dizer? Afirmar que a natureza de Buddha não existiria é correto, e afirmar que existiria, também é”. Do ponto de vista da independência, tudo quanto existe tem a natureza de Buddha, aconteça o que acontecer neste mundo. Mas mesmo que seja assim, se enxergamos desde o ponto de vista da maior escuridão ou do absoluto, nada existe. Aquilo que existe é o nada, a escuridão, na qual as miríades de fenômenos existem como um. Existem muitos fenômenos, mas não há nada que se possa ver ou que se possa falar. As coisas não podem ser compreendidas se são explicadas individualmente. Isso não seria mais que uma descrição intelectual. Temos, além disso, de percebê-las de verdade. Se vocês conseguirem apreciar cada coisa, uma a uma, sentirão uma grande gratidão. Mesmo se observarem apenas uma flor, esta flor inclui tudo. Não é só uma flor, mas o absoluto, o próprio Buddha. Assim nós o vemos. Mas ao mesmo tempo, aquilo que existe não é mais que uma flor, e não há alguém que a esteja vendo nem algo que possa ser visto. Esta é a sensação que devemos ter em nossa prática e em nossa atividade cotidiana. Nesse caso, fazendo o trabalho que fizerem, vocês sentirão uma contínua e pura gratidão. Quando pensamos em algo de uma forma dual, estamos observando-o e compreendendo-o intelectualmente. Mesmo sendo assim, é importante que não nos apeguemos às nossas

Page 121: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

121

idéias. Esta compreensão devemos ir melhorando dia a dia através de um puro pensamento não dual. Nós dizemos: “Não se pode pescar duas vezes no mesmo local”. Hoje, podemos ter tido a sorte de pescar um grande peixe num determinado lugar, mas amanhã deveremos ir pescar em outro lugar. Também temos o dito de que “Há uma mosca no parapeito do barco para lembrar o lugar”. A barca está se movendo continuamente, mas quando vocês pensam: “Oh, que lindo foi o que me aconteceu! Vou lembrá-lo para sempre!”, estarão marcando o parapeito para lembrar o lugar. Mas marcá-lo de nada serve, porque a barca está sempre se movendo. Entretanto, fazemos precisamente isso. É um bom exemplo da mente racional. Mostra-nos nossa estupidez e nos sugere o que é a vida budista. Vocês conhecem o antigo conto chinês do caçador que vê um coelho se escondendo no oco de uma arvore? No dia seguinte, ele volta ao mesmo lugar e espera que outro coelho faça o mesmo. Mas isso é uma estupidez. Se aparece um coelho, tivemos sorte. E se não aparece, não temos do que nos queixar. Temos de apreciar o que estamos vendo agora mesmo, neste momento. “Oh! Que flor mais bonita!” Devemos apreciá-la por completo, mas sem fazer uma marca no parapeito do barco. DIÁLOGO ESTUDANTE: Em uma preleção anterior você disse que se compreendemos a proximidade que mantemos com tudo, que dependemos de tudo o mais, seremos independentes. Somos independentes mesmo que não o compreendamos? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Na realidade, assim é, mas a questão é que você não se sente desse modo, ou seja, não compreende dessa forma. Mas mesmo que não se sinta realmente próximo dos demais, como conhece este fato

Page 122: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

122

intelectualmente, não cometerá um erro demasiado grande. Ou ao menos não terá em conta só um aspecto da realidade, ou não será tão arrogante. Nesta questão há algo muito importante. Quando digo desse modo, estou falando das coisas como se eu fosse uma pessoa plenamente iluminada. Para uma pessoa que alcançou a Iluminação isto é muito certo, mas para outra que não a alcançou, são só palavras. Quando nossa prática segue esta compreensão, constitui o verdadeiro Budismo. Nossa prática não deve ser só intelectual. Mesmo que vocês praticarem com empenho, se não tiverem esta compreensão, sua prática não servirá para grande coisa, já que seguirá condicionada à idéia de algo. ESTUDANTE: Você acaba de dizer que para uma pessoa que tenha alcançado a Iluminação isto é muito certo e que para outra que não a alcançou, são apenas palavras. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: E o que é que falta à segunda? A prática. Só é certo quando vocês praticarem 座禅 ZAZEN com empenho. Ao mesmo tempo, mesmo que praticarem com empenho, sua prática nem sempre será completa. Pode ser que haja um abismo entre a verdade e sua compreensão ou sua experiência real. Vocês podem ter uma elevada compreensão intelectual, mas um baixo nível de prática. Ter uma compreensão intelectual é fácil, mas praticar com as emoções é difícil porque facilmente ficamos apegados emocionalmente a algo. Desta forma, dizemos: “É fácil compreender o nada.” e “É fácil destruir uma compreensão intelectual”. Mas resolver um problema emocional é tão difícil como partir uma flor de lótus pela metade. Vocês não conseguem se desfazer dos compridos filamentos que se formarão. Ficarão os filamentos. Resolver um problema intelectual, ao contrário, é tão fácil como partir uma pedra pela metade. Ela se partirá sem que fique o menor resíduo.

Page 123: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

123

ESTUDANTE: Ver uma situação na qual uma pessoa parece estar fazendo mal a outra me altera muito emocionalmente. Fico alterado porque não estou vendo a situação como ele é na realidade? Se eu a visse tal qual ela é não me alteraria? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Esta é uma pergunta muito difícil. É difícil saber se uma pessoa está ajudando outra ou não. Se não está procedendo corretamente, a pessoa se desgosta com ela. Ou pelo menos se preocupa. Mas mesmo que uma pessoa esteja ajudando outra corretamente, a pessoa também pode se alterar. Como vocês bem sabem, é algo que pode ocorrer. Se alguém ajuda sua namorada ou seu namorado corretamente, pode ser que você se desgoste de qualquer maneira. Este tipo de coisa acontece freqüentemente. ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, minha pergunta esta relacionada mais ao seguinte: Se alguém vê as coisas com claridade, não haverá situação alguma que o afete emocionalmente? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Que o afete emocionalmente? Creio que não. Mas é claro que o afetará. Há uma grande diferença entre ambas as coisas. Um Buddha pode se desgostar facilmente, no sentido de estar profundamente afetado por algo. Mas quando está desgostoso não é devido aos seus apegos. Às vezes ficará com muita raiva. A cólera é permitida quando se trata da cólera de um Buddha. Mas esta cólera não é a mesma cólera que nós costumamos experimentar. Se um Buddha não se desgosta quando tem de desgostar-se, está violando os preceitos. Quando ele necessita se enraivecer, haverá de se enraivecer. Esta é a forma característica do Mahāyanā, observar os preceitos. Nós dizemos: “Às vezes a ira é como um por do sol”. Ainda que pareça ira, na verdade é um belo por do sol. Se a ira brota de uma mente pura, de uma pureza como a do lótus, então é boa.

Page 124: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

124

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, você observou que nossas emoções parecem ser independentes de nossa compreensão intelectual e têm uma vida própria que nada tem a ver com o que conhecemos ou compreendemos. Qual é a fonte das emoções: nosso corpo ou nossa mente? De onde surgem? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: A maior parte das vezes têm uma origem física. Talvez sejam algo fisiológico. A mente racional é como um rio. Quando pensamos o fazemos de forma universal, como um rio, ignorando as condições físicas e fisiológicas. Mas se nos centramos nas diversas condições que poderiam acontecer – cinco, dez, cem ou mais – resultaria impossível pensar. Uma característica da mente racional é ignorar todas as condições e seguir seu próprio caminho, tendemos a apenas pensar e agir. Aconteça o que acontecer, não importa. “Do que você está falando? Nós temos que fazer isto!” Esta forma de pensar seria típica de um homem. Uma mulher, por outro lado, talvez levasse em conta as diversas condições, observaria-as cuidadosamente averiguando pouco a pouco o que deveria ser feito. Há uma similitude entre a mente racional e a prática emocional. Como um praticante não se interessa tanto pelas coisas a nível emocional ou intelectual, fica mais fácil vê-las tal qual são. ESTUDANTE: Tenho alguma dificuldade ao escutar esta preleção. Quando somente cantava o 參同会 SANDŌKAI sem conhecer em absoluto seu significado, podia me concentrar somente na respiração e na minha voz surgindo do 腹 HARA39. Mas agora me ponho a pensar no significado do 參同会 SANDŌKAI e me esqueço do que estou fazendo. Apego-

39 Centro vital do corpo, situado logo abaixo do umbigo.

Page 125: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

125

me às palavras e à idéia de que há um lado escuro, ou 理 RI, convertendo-me então no lado de 事 JI. Agora quando canto o 參同会 SANDŌKAI, o lado intelectual, o lado claro, é mais forte e não aproveito quando o estou cantando. Talvez você possa me aconselhar algo que me ajude a vencer esta dificuldade. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Você não pode evitá-lo. Por isso dou estas preleções, para que você possa ir polindo a sua compreensão. ESTUDANTE: Outro dia você disse que pela manhã devemos levantar sem demora. Normalmente me levanto facilmente, mas esta manhã ao despertar não me levantei imediatamente da cama. Esperei até que escutei o sino pela segunda vez e então comecei a pensar no que você havia dito nas preleções. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: As preleções não têm culpa. Não foi por minha culpa! [risos] ESTUDANTE: Minha pergunta é a seguinte: Podemos compreender subjetivamente nossa prática sem ter nenhuma classe de compreensão objetiva ou correta, ou temos de compreendê-la de ambos os modos e equilibrá-los? Podemos praticar a Via de Buddha sem conhecê-la intelectualmente? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Se você conseguir fazê-lo, haverá tido muito sorte. Mas, por desgraça, não se pode praticar sem ter alguma compreensão intelectual dela. ESTUDANTE: Quando nos sentamos em 座禅 ZAZEN e mantemos uma boa postura e seguimos a respiração, temos que

Page 126: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

126

ter em conta esses conceitos sobre o Budismo ou sobre os quatro elementos? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Não, neste momento temos que nos esquecer deles. ESTUDANTE: Quero dizer, para praticar, preciso compreender a idéia do Budismo? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Deverá compreendê-la porque tendemos a ver as coisas do modo que descrevi. Tanto o estudo como a prática são importantes. Temos de ir polindo nossa compreensão para não nos confundirmos intelectualmente. É importante fazê-lo.

SÉTIMA PRELEÇÃO

SEM ABRAÇAR IDÉIA ALGUMA SOBRE A REALIZAÇÃO,

Page 127: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

127

NOSSA VIA É SIMPLESMENTE SENTAR-SE EM 座禅 ZAZEN

Page 128: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

128

眼色耳音聲

眼は色、耳は音声、 MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ,

Olhos e imagens, ouvido e sons,

鼻香舌鹹醋

Page 129: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

129

鼻は香、舌は鹹酢、 HANA WA KA, SHITA WA KANSO,

Nariz e odores, língua e sabores.

然依一一法

しかも一一の法において、 SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI OITE,

Cada um e todos os fenômenos dependem destas

raízes,

依根葉分布

根によって葉分布す、 NE NI YOTTE HABUNPU SU,

São como as folhas de uma árvore.

本末須歸宗

Page 130: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

130

本末すべからく宗に帰すべし、 HON MATSU SUBE KARAKU SHŪ NI KISU BESHI,

O tronco e os ramos compartilham a mesma

essência,

尊卑用其語

尊卑其の語を用ゆ、 SONPI SONO GO O MOCHI YU,

O venerado e o vulgar se expressam de sua própria

maneira. Em minha última preleção expliquei o que significa tudo ser independente. Mesmo que as coisas sejam interdependentes umas das outras, ao mesmo tempo, cada ser é independente. Quando cada ser inclui o mundo inteiro, então cada ser é na realidade independente. 石頭 SEKITŌ estava falando sobre a natureza da realidade em uma época em que a maioria das pessoas se esquecia desta questão e julgava qual escola 禅 ZEN era correta ou incorreta. Por isso, 石頭 禅師 SEKITŌ ZENJI escreveu este poema. Aqui ele está falando da realidade desde o ponto de vista da independência. A Escola do Sul é independente e a Escola do Norte também é, e não há razão para termos que decidir qual é a correta. Ambas escolas expressam à sua própria maneira o Budismo em seu conjunto: a Escola 臨濟 RINZAI tem sua própria

Page 131: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

131

forma de abordar a realidade, da mesma forma que a Escola 曹洞 SŌTŌ. 石頭 禅師 SEKITŌ ZENJI está assinalando este fato. Ainda que se refira à disputa entre a Escola do Norte e a Escola do Sul, ao mesmo tempo está falando sobre a natureza da realidade e sobre o que são os ensinamentos de Buddha em seu verdadeiro sentido. Agora gostaria de explicar a vocês os seguintes versos, que descrevem a realidade desde o ponto de vista da independência: 眼は色、耳は音声、 MANAKO WA IRO, MIMI WA ONJŌ, “Olhos e imagens, ouvido e sons,” 鼻は香、舌は鹹酢、HANA WA KA, SHITA WA KANSO, “Nariz e odores, língua e sabores.” Parece que 石頭 SEKITŌ está falando de uma forma dual sobre a dependência dos olhos com seus objetos. Mas quando vocês vêem em seu verdadeiro sentido, não há nada que ver nem alguém que esteja vendo. Isto só acontece quando vocês analisam que há um observador e um objeto observado. É uma atividade que pode ser compreendida de duas formas: eu estou vendo algo, mas na realidade ninguém está vendo o que quer que seja. Aqui 石頭 SEKITŌ está falando sobre a unidade que há entre os olhos e a forma. Assim é como o Budismo percebe as coisas. Compreendemos as coisas de uma forma dualista. “Eu estou vendo algo”, ou “Alguém ou algo está sendo visto por alguém”, não são mais que interpretações sobre o sujeito e o objeto que nossa mente racional cria. O sujeito e o objeto são um, mas também são dois. 石頭 SEKITŌ está dizendo aqui que para os olhos há a forma. Quando vocês dizem “olhos”, os olhos incluem a forma. Quando dizem “forma”, a forma inclui os olhos. Se não há uma forma nem algo para ser visto, os olhos deixam de ser olhos. Mas como há algo para ser visto, os olhos se tornam olhos. O mesmo ocorre com os ouvidos, o nariz e a língua.

道元禅師 DŌGEN ZENJI disse: “Se não há um rio, não há uma barca”, já que mesmo que haja uma barca, não será uma barca. Mas como há um rio, uma barca pode ser uma barca. A

Page 132: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

132

gente costuma apegar-se ao mundo objetivo, ou a algo que vê, porque compreende as coisas somente de uma forma. Acredita que existe independentemente de cada um. Esta é a forma habitual de compreendê-las. “Aqui há algo muito doce para comer”. Mas um bolinho se converte num bolinho porque nós desejamos comê-lo. De modo que fritamos o bolinho. Mas sem nós, o bolinho não existiria. Quando compreendemos as coisas deste modo, estamos vendo o bolinho e, ao mesmo tempo, não o estamos vendo. E ter esta compreensão é observar os preceitos.

Talvez possamos matar acidentalmente algum animal ou algum inseto. Mas quando vocês pensam “Como aqui há muitas saúvas, e estas são insetos daninhos, vou matá-las”, estarão compreendendo as coisas só de uma maneira dualista. Na realidade, as saúvas e os seres humanos são um. Não são diferentes. É impossível matar qualquer saúva. Mesmo que vocês a esmaguem, seguirá com vida. Aquela forma momentânea pode ser que desapareça, mas enquanto o mundo inteiro - incluindo nós mesmos - seguir existindo, não poderemos matar uma única saúva. Quando adquirimos esta compreensão podemos manter os preceitos por completo.

Mas ainda que seja assim, não devemos matar qualquer ser sem uma razão, nem matá-lo inventando uma boa razão para fazê-lo: “Como as saúvas comem as verduras da horta, devo matá-las”, ou “Como matar animais é aceitável, dedico-me a matar saúvas”. Matar um animal, justificando a ação com algum argumento, não é nossa forma de agir. Na realidade, quando matamos um animal não nos sentimos bem. Esta possibilidade também deve ser levada em conta em nossa compreensão: “Apesar de não gostar da idéia, haverei de matar algum animal”. Deste modo, seguimos adiante pelo vasto mundo.

Apegar-se a alguma idéia sobre matar ou não matar, ou a alguma razão de por que matar ou não matar, não é observar os preceitos. A forma de observar os preceitos é compreender a realidade por completo. É dessa forma que não matamos ser algum. Compreendem? O modo como vocês compreendem

Page 133: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

133

minha preleção, o modo que vocês praticam 座禅 ZAZEN, é o modo como vocês não matam. Ou seja, vocês não devem viver apenas no mundo da dualidade. Vocês podem contemplar o mundo desde o ponto de vista dualista e desde o ponto de vista do absoluto. “Matar não é bom” é o ponto de vista da dualidade. “Ainda que você acredite haver matado um ser, não o matou”, é o ponto de vista do absoluto. Mesmo que vocês tenham violado os preceitos, se depois de fazê-lo sentirem uma profundo pena e disserem para a saúva: “Eu sinto muito”, isso constitui a Via de Buddha. Assim seguiremos praticando continuamente. Talvez vocês acreditem que como há preceitos, deverão segui-los ao pé da letra porque, se não o fizerem, não poderão ser budistas. Mas sentir-se bem só porque estão observando algum preceito, isso tampouco é a Via. Sentir pena quando matamos um animal está incluído em nossos preceitos. Todo mundo participa neste tipo de atividade. Mas a forma de fazê-lo e o sentimento que cada um experimenta não é o mesmo para todos. Uma pessoa pode não ter nem idéia dos preceitos ou da realização e, ao contrário, outra pessoa pode estar procurando se sentir bem com a atividade religiosa ou com a observância dos preceitos. Mas isso não é a Via budista.

A via budista é em uma palavra, 慈悲 JIHI, compaixão. 慈悲 JIHI significa estimular os demais quando estes se sentem bem e também ajudá-los quando estão sofrendo. Isso é o verdadeiro amor. A Via não se pratica apenas dando algo, recebendo algo ou observando os preceitos, mas a vamos praticando a medida em que as coisas vão ocorrendo de forma natural, apoiando os demais, sofrendo com eles, ajudando-os a aliviar seu sofrimento e animando-os a seguir e seguir. Assim é como se observam os preceitos. Vemos algo, mas ao mesmo tempo, não o estamos vendo. Vivemos sentindo sempre a unidade que existe entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo, entre os olhos e a forma, entre a língua e o sabor. Sem nos apegarmos a nada em especial e sem nos sentirmos especialmente satisfeitos por causa de nossa prática budista. Ao

Page 134: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

134

praticar deste modo, somos independentes. É sobre isso que 石頭 SEKITŌ está falando.

しかも一一の法において、SHIKA MO ICHI ICHI NO HŌ NI OITE, “Cada um e todos os fenômenos dependem destas raízes”, 根によって葉分布す、NE NI YOTTE HABUNPU SU, “São como as folhas de uma árvore”. Os olhos, o nariz, a língua, os ouvidos, o visto, o olfato, o paladar e o ouvido, tudo são dharmas, e cada dharma se arraiga no absoluto, que é a natureza de Buddha. Ao observar os múltiplos fenômenos, temos que vê-los mais além de seu aspecto e conhecer como existe cada um deles. Existimos por causa da raiz, da natureza de Buddha absoluta. Ao compreender os fenômenos desse modo, somos uma unidade com tudo.

本末すべからく宗に帰すべし、 HON MATSU SUBE KARAKU SHŪ NI KISU BESHI, “O tronco e os ramos compartilham a mesma essência”, 尊卑其の語を用ゆ、SONPI SONO GO O MOCHI YU, “O venerado e o vulgar se expressam de sua própria maneira”. Empregamos distintas palavras – palavras boas e palavras más, palavras respeitosas e palavras cruéis – mas através delas temos de compreender o ser absoluto ou a fonte do ensinamento. É a isso que 石頭 SEKITŌ está se referindo aqui.

No 梵網 經 BONMŌ KYŌ40, uma importante escritura sobre os preceitos, aparece o seguinte trecho: “Ver é não ver, e não ver 40 Fanwang Jing, em chinês. Brahmajāla-sūtra em sânscrito. T 1484.24.997a-1010a. Acredita-se que se trata da tradução do décimo capítulo de um texto sânscrito muito mais extenso, em 120 fascículos, Bodhisattva-śīla-sūtra. Consiste de dois fascículos: o primeiro trata de tópicos relacionados aos estágios do Bodhisattva e o segundo enumera os Dez Preceitos Maiores e os Quarenta e Oito Preceitos Secundários. Este segundo fascículo começou a circular na China por volta do século V d.C. como um texto independente, conhecido como o “Capítulo” ou o “Livro dos Preceitos de Bodhisattva”. Na tradição Budista do Oeste asiático passou a ser altamente reputado como o texto canônico fundamental para a definição dos Preceitos Mahāyāna. (N.T.)

Page 135: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

135

é ver”. Comer carne é não comer carne, não comer carne é comer carne. Vocês compreendem os preceitos só de uma forma. Observam-nos não comendo carne. Mas não comer carne é comer carne. Na realidade, estão comendo carne. Compreenderam? Assim é como se observam os preceitos. “Não cometer atos impuros”. Ver uma mulher é não ver uma mulher. Não ver uma mulher é ver uma mulher.

Havia uma vez dois monges que viajavam juntos. Chegaram a um grande rio no qual não se via qualquer ponte por onde cruzá-lo. Enquanto permaneciam na margem, viram uma bela mulher se aproximar. Um deles a ajudou a cruzar o rio carregando-a nos ombros. Mais tarde, o outro monge espetou-o furioso: “Você é um monge! Acaba de violar o preceito de não tocar em qualquer mulher! Por que fez isto?” O monge que havia ajudado a mulher respondeu: “Depois de ajudá-la, eu a esqueci. Você ainda a está levando nas costas. É você que está violando os preceitos”. Talvez não tenha sido de todo correto que um monge levasse uma mulher nas costas. Mas ainda assim, como todos os seres são nossos amigos, temos de ajudá-los ainda que isso signifique violar um preceito budista. Se vocês considerarem os preceitos somente de uma forma limitada ou literal, isso é na realidade violar os preceitos. Ver a mulher era portanto não ver a mulher. Quando o monge cruzou o rio com ela nas costas, na realidade não a estava ajudando. Compreendem? Não ajudá-la era ajudá-la no verdadeiro sentido da palavra.

Quando vocês compreendem os preceitos de uma forma dualista – como homem e mulher, monge e laico – isto é violar os preceitos e ter uma pobre compreensão dos ensinamentos de Buddha. Nossa Via consiste em sentar-se em 座禅 ZAZEN sem abrigar nenhum propósito, sem manter idéia alguma de estar fazendo algo, sem idéia alguma de estar fazendo uma prática importante.41 Nosso 座禅 ZAZEN consiste em se entregar por

41 O que corresponde ao conceito 只管打座 無所得 SHIKANTAZA MUSHOTOKU, “apenas sentar-se sem espírito de proveito”. (N.T.)

Page 136: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

136

completo à meditação sentada. E assim é como se observam os preceitos. Algumas vezes ficaremos enraivecidos, e outras, sorriremos. Às vezes nos enfadaremos com nossos amigos e outras, ao contrário, falaremos a eles com espírito puro, mas na realidade, o que estaremos fazendo é observarmos nossa Via. Não posso explicá-lo demasiado bem, mas creio que vocês entenderam o que quero dizer.

DIÁLOGO ESTUDANTE: Não sinto que falar sobre o Budismo ou o

參同会 SANDŌKAI seja o mesmo que falar sobre minha vida ou minha prática. Sinto que há como uma separação. Me dá a impressão de que se está falando de outra coisa, de algo distinto de mim.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Eu também tive esta sensação durante muito tempo. É difícil comunicar um sentimento através de uma preleção. Por isso, os antigos mestres torciam os narizes de seus discípulos ou lhes davam um safanão. “Esteja aqui mesmo! Em que está pensando?”, diziam-lhes. Em resumo, esta é a questão. Eu estou dando voltas e mais voltas para explicar este ponto por meio de palavras. Mas é como se estivéssemos falando de coçar o pé que nos coça com o sapato no pé. Não serve de grande coisa, mas ainda assim tenho que falar disso com vocês.

ESTUDANTE: Você disse que quando matamos uma saúva

ou qualquer outro inseto, na realidade é impossível matá-los pois tudo segue existindo. Quer dizer que cada coisa seguirá sendo sempre cada coisa, que esta preleção seguirá sendo esta preleção.

Page 137: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

137

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Quando você vê “as coisas tal qual elas é”, assim é.

ESTUDANTE: Se o corpo da saúva morre, o que ocorre com

o karma da saúva? Para onde ele vai? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: As saúvas vão para a fonte da

realidade. Sabem para onde ir. Ao manter esta conversa comigo talvez você sinta que não são mais que palavras. Mas quando alguém está sofrendo muito, é um grande alívio sabê-lo.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, qual é a diferença entre você e

eu? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Há e não há, ao mesmo tempo,

uma diferença, por isso praticamos juntos. Como somos diferentes, praticamos juntos, e como não somos diferentes, praticamos juntos. Se você fosse completamente distinto de mim, não haveria qualquer razão para que praticássemos juntos. Mas como somos diferentes, praticamos a Via, e como em essência somos o mesmo, também a praticamos. Não somos diferentes e, ao mesmo tempo o somos. Estes tipos de coisas não são fáceis de ver. A prática tradicional emana da fonte do ensinamento, que é o nada, o absoluto, a não dualidade. Normalmente algo nos atrai através dos olhos ou do nariz, da visão ou do olfato, ou de alguma outra forma, mas não através da fonte original do ensinamento. Como a fonte original é indescritível, dizemos que só pode ser expressa “pelo silêncio”. Estou falando sobre algo que é impossível falar. Um 提唱 TEISHŌ na realidade não é “uma preleção”. Não se pode explicar com palavras, mas como estou explicando aquilo que é vazio, chamamos estas palavras de “O dedo apontado para a lua”. Se você compreende o que é a lua, o dedo já não é necessário. Não são as minhas palavras aquilo que

Page 138: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

138

você deve compreender, mas realizar através de sua verdadeira experiência o que estou tentando descrever. Como até aqui você tem estado cego, acredita que estou falando de maneira sofisticada de algo que se parece à chamada Via budista. Mas a Via budista não são estas palavras, mas o significado que existe por trás delas.

ESTUDANTE: Ao matar a saúva, não há palavras nem

recordações nem nada. Só a experiência de matá-la. Este é o mestre que te conduz à fonte? O Mestre é a experiência de matar a saúva, e não a conversa que mantivemos acerca disso?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Nesse momento você não

necessita sentir que é um bom budista ou um monge pecador, nem pensar que está violando os preceitos. Quando trabalhar no jardim com algum propósito, deve se entregar à esta atividade por completo. Algumas vezes, talvez fique irritado com as saúvas, mas na realidade ninguém pode criticá-lo por isto. Se te expulsam de Tassajara por haver matado um montão de saúvas, deve ir embora. “Está bem, vou-me embora.” Você deverá ter esta grande confiança em você mesmo - na realidade não é confiança - mas algo muito maior. Você não deve se confrontar com ninguém. Se você tiver esta compreensão do que está fazendo, significa que está seguindo a Via.

ESTUDANTE: Quando falamos que não devemos fazer mal

aos seres sensíveis, às saúvas ou a qualquer outro ser, é porque é impossível fazer-lhes mal, porque é incorreto fazê-lo, ou por ambas as coisas?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Por ambas as razões. E

ademais, temos que saber que é impossível fazer-lhes mal. É impossível porque não são mais que palavras. E as palavras não podem chegar a esse lugar [o absoluto]. Somente quando você é

Page 139: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

139

cativo das palavras que pode dizer “é possível” ou “é impossível”. Na realidade, a cada dia estamos matando, sacrificando algum ser. Aplicar os ensinamentos de Buddha apenas para se justificar, mesmo que te ajude a se sentir melhor, é ter uma compreensão muito superficial do Budismo. Mas isso não significa que você esteja fazendo algo errado, porque na realidade não está matando qualquer ser. As duas coisas são certas. Mas se você diz: “Como na realidade não estou matando qualquer ser, é correto matar”, isso tambem é errado, já que você está se aferrando a uma idéia ou a um preceito que em si mesmo não é mais que palavras. Não é o verdadeiro coração, o verdadeiro sentimento de Buddha.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, cada animal tem uma forma de

viver, de comer, de criar suas crias e de se relacionar com o mundo que está em harmonia com o Dharma particular ou o 道 Tao de seu ser. Também nós, seres humanos, temos nossa forma particular de viver, de comer e de criar nossos filhos que esteja em harmonia com nosso Dharma ou 道 Tao?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Absolutamente. Mas temos que

nos esforçar ao máximo para manter o Dharma, que é sobre o que estas palavras tratam. As palavras são necessárias, mas ainda que sejam necessárias, não devemos acreditar que são completas. Temos de nos esforçar constantemente para produzir um novo Dharma, novos preceitos. Dizemos: “Isto é a vida humana”. Mas esta vida humana é a de hoje e não a de amanhã. Amanhã temos que vivê-la melhor que agora. Este tipo de esforço deve ser contínuo. Quando nos sentimos mal significa que temos de melhorar nossa Via. Mas não esperem um Dharma perfeito que lhes diga claramente se “devem” ou “não devem” fazer algo. Ninguém pode insistir que seu próprio caminho é o melhor, mas temos de apreciar o esforço que essa pessoa faz para melhorar o Dharma. Compreende?

Page 140: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

140

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, você disse que devemos ir

melhorando sempre, dia a dia, nossa forma de agir, fazer tudo quanto possamos. Ouvi dizer que “Para que o verdadeiro ensinamento siga sendo transmitido, o discípulo há de superar o mestre”. Podemos seguir transmitindo o Dharma mesmo que não superemos o mestre?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Como “superar” é também

uma palavra dualista, não devemos nos apegar a ela. Não há razão alguma para que você se sinta bem ou mal se me superar. Falar sobre o que é melhor são apenas palavras. Inclusive criar uma nova página na história do Dharma é muito difícil. Mesmo que você acredite que inventou algo novo, Buddha sempre estará te esperando ali e te dirá: “Oh, venha! Você fez muito bem! Chegue mais perto, tenho algumas coisas a mais para você”. É muito difícil superar seus ensinamentos.

OITAVA PRELEÇÃO

Page 141: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

141

NA LUZ HÁ A MAIOR ESCURIDÃO

Page 142: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

142

當明中有暗

明中に当って暗あり、 MEI CHŪ NI ATATTE AN ARI,

Page 143: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

143

Em meio à luz há escuridão,

勿以暗相遇

暗相をもって遇うことなかれ、 AN SŌ O MOTTE AU KOTO NAKARE,

Mas não a veja só como escuridão.

當暗中有明

暗中に当って明あり、 AN CHŪ NI ATATTE MEI ARI,

Em meio à escuridão há luz,

勿以明相覩

明相をもって覩ることなかれ、 MEI SŌ O MOTTE MIRU KOTO NAKARE,

Page 144: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

144

Mas não a veja só como luz.

Em primeiro lugar, falarei sobre os dois termos, 明 MEI e 暗 AN, “luz” e “escuridão”. A luz significa o relativo, o mundo dualista das palavras, o mundo mental, o mundo visível no qual vivemos. A escuridão se refere ao absoluto, onde não há um valor de troca ou um valor materialista, ou nem sequer um valor espiritual: é o mundo no qual nossas palavras e nossa mente racional não podem chegar. Por vivermos no reino da dualidade, precisamos ter uma boa compreensão do absoluto; talvez vocês acreditem que se trata de uma deidade, mas no Budismo não há qualquer idéia em particular sobre uma deidade. O absoluto é o absoluto porque transcende nosso pensamento intelectual ou dualista. Não podemos negar o mundo do absoluto. Muita gente diz que o Budismo é ateísta porque nele não há qualquer idéia em particular de Deus. No Budismo sabemos que existe o absoluto, mas como também sabemos que ele está mais além do limite da mente racional, não falamos demasiado dele. Isso é o que significa 暗 AN, “escuridão”.

明中に当って暗あり、MEI CHŪ NI ATATTE AN ARI, “Em meio à luz há escuridão”, Esta é uma tradução literal, mas a tradução literal não tem demasiado sentido. Temos de compreender o verdadeiro sentido de あり ARI, “há”. Em japonês há dois caracteres que significam “há”: 有 ARI e 在 ZAI. Quando dizemos em japonês que há algo sobre a mesa, ou sobre a terra, ou em Tassajara – algo que está sobre ou dentro de alguma coisa – usamos o caractere 在 ZAI, e quando dizemos: “Tenho duas mãos”, ou “Em você há duas mãos”, usamos 有 ARI42. Na realidade, estamos dizendo: ”Há duas mãos”, ou “Em você há 42 Atualmente, não se usa mais o 漢字 KANJI 有 ARI, mas a transcrição no silabário 平仮名 HIRAGANA, あり ARI. Para uma melhor compreensão, no comentário foi mantido o caractere 有 ARI . (N.T.)

Page 145: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

145

duas mãos”. Uma parte do caractere 有 ARI significa “carne”, ou “pele”, o que mostra uma relação muito íntima entre a luz e a escuridão, como a relação que há entre minha pele e eu. Mas ao traduzir a frase em seu idioma: “Em meio à luz há escuridão”, soa mais dualista. Na sua língua vocês dizem: “Eu tenho uma pele”, ou “Eu tenho mãos”. Mas as mãos e a pele são uma parte de vocês, na realidade não é para ser algo dualista. A pele faz parte de cada um de nós. As mãos são suas mãos. Em sua língua vocês dizem: “Tenho duas mãos”. Mas para suas mãos, quando elas ouvem vocês dizerem isto soará um tanto extraordinário: “Oh! Somos uma parte de você e, sem embargo, você diz que tem duas mãos”, elas pensarão. “O que isso quer dizer? Que parte de você é que tem duas mãos?” Se fosse possível, creio que deveria haver outra maneira de expressar isso em sua língua.

Nesta linhas, 有 ARI significa que há uma relação muito íntima entre a luz e a escuridão. E na realidade a própria escuridão é luz. A escuridão ou a claridade se encontram na mente de cada um. Nela vocês têm um modelo ou medida do quão clara ou escura é esta sala. Se ela é excepcionalmente clara, vocês dirão que é clara; e se for excepcionalmente escura, dirão que é escura. Mas alguém poderá dizer: “Esta sala é clara”, e, ao mesmo tempo, outra pessoa afirmar: “Esta sala é muito escura”. Alguém que chegue de São Francisco à noite pode dizer: “Oh, Tassajara é muito escuro!” e, ao contrário, alguém que acabe de sair de uma caverna ira assegurar: “Tassajara está muito iluminada, parece uma capital”. A idéia de luz ou escuridão está em nossa própria mente. Como temos algum modelo disso, dizemos luz ou escuridão, mas na realidade a luz é escuridão e a escuridão é luz.

Ainda que digamos “escuridão”, não significa que haja nada. Quando há luz, vocês podem ver muitas coisas, como os caucasianos e os japoneses, os homens e as mulheres, as pedras e as árvores. Estas coisas aparecem na luz. Quando dizemos “escuridão” ou “mundo do absoluto”, que transcende nosso pensamento, talvez vocês acreditem que este mundo é

Page 146: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

146

muito distinto de nosso mundo humano, mas isso também é um erro. Se vocês compreenderem a escuridão desta maneira, não se tratará da escuridão a que se refere o poema.

Alguns de vocês estão preparando a comida para o casamento de Ed e Meg. Serão servidos vários pratos, que serão colocados em distintos lugares. Isto é a sopa, isto é a salada, isto é a sobremesa. A luz é isso. Mas quando vocês comerem, os diferentes pratos vão se misturar nas suas barrigas. Então não haverá mais sopa, nem pão, nem sobremesa. Naquele momento os alimentos estarão sendo assimilados juntos. Quando os diversos alimentos estão nos pratos, como ainda não estão sendo digeridos, na realidade ainda não são comidas, mas luz. E quando estão em suas barrigas, são escuridão; mas inclusive na escuridão, continua havendo alface, sopa e tudo mais. A comida é a mesma, mas só começa a ser assimilada quando muda de forma. Na maior escuridão as coisas ocorrem deste modo. Na luz vocês sentem bem isso, sentem como se tivessem um prato especial diante de si, mas a comida ainda não está desempenhando sua função.

Quando vocês não sabem o que estão fazendo, na realidade estão agindo plenamente, com toda a mente. Quando vocês estão pensando, ao contrário, ainda não estão agindo. Quando se inicia a ação, estão presentes tanto o lado escuro como o lado claro. Quando vocês praticarem plenamente a Via budista, existirá o lado claro e a escuridão, e a relação entre a luz e a escuridão é esta relação de 有 ARI, é como a relação que existe entre a pele e o corpo. É impossível dizer o que é a pele e o que é o corpo.

暗相をもって遇うことなかれ、AN SŌ O MOTTE AU KOTO NAKARE, “Mas não a veja só como escuridão”. (勿れ) なかれ NAKARE significa “não” e (以て) もって MOTTE, significa “com”. 暗相 AN SŌ, “lado escuro”, ou ponto de vista obscurecido”. O caractere 遇う AU43 significa “encontrar-se”, e 43 No original “O”. (N.T.)

Page 147: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

147

implica que se trata a pessoa com a qual se encontra como a um amigo. Encontrar-se ou reunir-se como as nuvens se encontram com a montanha Tassajara. Aqui está a montanha Tassajara, e ali, as nuvens, e as nuvens do oceano se encontram com a montanha. Esta classe de relação é 遇う AU. Vocês não devem se encontrar com alguém somente compreendendo a escuridão. Se vocês se encontrarem com um amigo sem abrir os olhos, ignorando sua idade ou se está receptivo, não estarão se encontrando de fato com ele. Seria como compreender apenas um lado, porque na escuridão há luz. Ainda que a relação que vocês mantenham com seu amigo seja muito íntima, ele segue sendo quem é e vocês seguem sendo quem são. Talvez a relação seja como a de um marido e sua esposa. O marido é o marido e a esposa é a esposa; isso é uma relação real. Não se encontrem com seu amigo sem compreender a luz ou a dualidade. Uma relação íntima é a escuridão porque, se a relação é muito íntima, você é um com a outra pessoa, ainda que você continue sendo você e seu amigo siga sendo quem é.

O terceiro e quarto versos são similares ao primeiro e segundo. Dizem o mesmo que o primeiro e o segundo, mas de uma forma distinta. 暗中に当って明あり、AN CHŪ NI ATATTE MEI ARI, “Em meio à escuridão há luz”, 明相をもって覩ることなかれ、MEI SŌ O MOTTE MIRU KOTO NAKARE, “Mas não a veja só como luz”. Na escuridão, ainda que mantenhamos uma relação íntima, continua havendo a dualidade de “homem” e “mulher”. Esta dualidade é a luz. Mas vocês não devem ver os demais apenas com os olhos da luz, porque o outro lado da luz é a escuridão. A escuridão e a luz são como as duas faces de uma moeda.

Tendemos a ficarmos aprisionados nas idéias preconcebidas. Se vocês têm uma experiência negativa com alguém podem pensar: ”Oh, é uma pessoa má, sempre se porta mal comigo!” Mas pode ser que não seja assim. Vocês a estão vendo apenas com os olhos da luz. Devem saber porque ela se porta mal com vocês. Como sua relação é tão próxima, tão íntima,

Page 148: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

148

é mais que uma relação entre duas pessoas. Vocês são um só. Ou seja, quando ela se enraivece, vocês também se enraivecem. Vocês precisam compreender o outro lado da luz, que é a escuridão. Neste caso, mesmo que se irritem com esta pessoa, não se sentirão mal. “Oh, ficou tão irritado comigo porque temos uma relação muito íntima”, pensarão. Mas quando vocês pensam que a pessoa é má, resulta difícil mudar a idéia que têm dela. Ou melhor, é certo que às vezes a pessoa é má, mas neste momento vocês não sabem se é boa ou é má. Precisam averiguar.

Não há que se apegar à idéia de escuridão ou luz, nem à de igualdade ou diferença. A maioria das pessoas, quando guarda rancor de alguém fica quase impossibilitada de mudar seus sentimentos. Mas se somos budistas temos de ser capazes de mudar nossa mente de mau para bom e de bom para mau. Se o conseguirem, “mau” deixará de significar mau e “bom” deixará de significar bom. Mas ao mesmo tempo, bom é bom e mau é mau. Compreendem? Assim é como temos que compreender a relação que mantemos entre nós. Há um poema que diz:

A mãe é a montanha azul

e as filhas são as nuvens brancas. Não se separam durante todo o dia e,

sem embargo, não sabem quem é a mãe e quem são as filhas.

A montanha é a montanha e as nuvens são as nuvens brancas flutuando ao redor da montanha como filhas, mas não sabem que são nuvens brancas ou montanhas azuis. E ainda que o ignorem, sabem-no muito bem, tão bem que não o sabem. Esta é a experiência que vocês terão em sua prática de 座禅 ZAZEN. Ouvirão o som dos insetos e do córrego. Enquanto estiverem sentados em 座禅 ZAZEN, o córrego flui e vocês o ouvem. Mas ainda que o ouçam, em suas mentes não surge qualquer idéia sobre o córrego nem sobre o 座禅 ZAZEN. Vocês

Page 149: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

149

estão simplesmente sentados sobre um 坐蒲 ZAFU negro. Estão aí como se fossem uma montanha azul rodeada de nuvens brancas. Este tipo de relação é explicada totalmente nestes quatro versos do 參同会 SANDŌKAI.

DIÁLOGO ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, qual tradução está utilizando? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Estamos utilizando várias. Uma

tradução não pode ser perfeita. É difícil, quase impossível, traduzir o poema porque inexistem alguns termos equivalentes exatos. 有 ARI pode aqui significar “nada”, já que “há” significa “não há”. “Luz” significa “escuridão”. Mas “luz” não significa nada se também significa “escuridão”. Por isso disse em outra preleção que as palavras do poema eram como uma espada com fio duplo. Luz? Escuridão? Qual das duas opções é a correta? Que significado têm? Mas de todo modo continua havendo tanto luz como escuridão.

Você não deveria ter qualquer pergunta sobre esta questão, mas se a tem, por favor, pode me fazê-la... se quiser levar uma varada! [risos]

ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, o que dizer sobre a

concentração? Você disse que as nuvens não sabem que são as filhas da montanha e vice-versa, mas quando rumamos para as refeições e descobrimos nossas tigelas de madeira e as dispomos sobre a mesa, concentramo-nos nisso sem escutar o córrego. É uma atividade distinta.

Page 150: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

150

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: É a mesma atividade. ESTUDANTE: Para mim é distinta. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Por isso você recebe as varadas.

[risos] Quando você realmente se concentra, a luz e escuridão são uma só coisa, mas quando você pensa nisso há dois lados. Neste momento você está me fazendo uma pergunta. E como quando a está fazendo está pensando, para mim fica difícil respondê-la. Talvez tenha de me irritar muito contigo. É a única maneira que você compreenderá. Se receber uma varada provavelmente deixará de pensar nisso.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, por que raspamos a cabeça? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSH: Para que suas mentes racionais

possam ser tão naturais e suaves como isto [coça a cabeça raspada com a mão]. Claro... escuro... muito natural. E também para nos desfazermos dos adornos. Não devemos conservar nada supérfluo.

ESTUDANTE: : O Sūtra do Diamante44 diz que nesta vida

sofremos desgraças por culpa dos pecados ou erros cometidos em vidas passadas e que, ao sofrê-las agora, remediamos esses erros ou os quitamos, expiando-os e preparando o terreno para a Iluminação. Parece uma carga muito pesada. Acrescente uma nova dimensão a este meu questionamento.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Vou ajudá-lo. O fato de que agora você esteja sofrendo não significa que alguém esteja 44 Em sânscrito, Vajracchedikā-prajñāpāramitā-sūtra. 金剛經 KONGŌ KYŌ em japonês. (N.T.)

Page 151: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

151

fazendo você sofrer, mas que você mesmo causou seu sofrimento. Se compreender isto, não se queixará. Mas ao mesmo tempo, se compreender sua vida apenas do ponto de vista do karma, da explicação dualista de porque sofremos, ficará aprisionado na idéia de karma. Não devemos ver as coisas a partir de um só lado. Ainda que no Budismo se fale de “karma”, o karma não existe. Mas se o karma não existe, você pode dizer: “Faça o que fizer, estará tudo bem!” o que significa que ficará aprisionado à idéia da escuridão. Outro dia, estivemos falando de porque matamos as saúvas. Vimo-nos obrigados a matá-las, mas isto não significa que seja correto fazê-lo. Não o é. Devemos compreender nossas ações levando em conta ambos os lados. Se você não se sente bem ao matá-las, deverá se esforçar mais, descobrir como proteger as verduras da horta sem prejudicar as saúvas. Mas sem perder demasiado tempo com isso, se não sua prática seria prejudicada. De qualquer maneira, você deverá seguir encontrando algumas boas idéias, uma após a outra.

ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, qual é a diferença entre

compreender as coisas e as atividades desde ambos os lados e não compreendê-las em absoluto?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Oh! Não é necessário falar de

não compreendê-las em absoluto! [risos] Se você tiver a oportunidade de escutar uma preleção ou de ler um livro, já terá compreendido algo.

A verdade é a verdade. Não há duas verdades, mas uma só. Quando você compreende a verdade só com a mente, pode acreditar que é a verdade. Mas comparada com sua atividade, sentimento ou vida reais, a verdade que você compreende com a mente não é a verdade autêntica. Como nossa própria vida não é tão fácil como nossos pensamentos, é fácil se convencer de que a idéia que temos é a perfeita verdade. Mas em nosso caso não é,

Page 152: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

152

porque esta classe de pensamento não coincide com nossa própria vida.

Existem duas formas de compreender a verdade. Uma é compreendê-la intelectualmente. “Compreendo-a”, dizemos, mas esta compreensão não é mais que uma compreensão intelectual. Compreendendo-a ou não, a verdade seguirá sendo a verdade, mesmo que o Buddha tenha aparecido ou não neste mundo. A outra forma de compreendê-la é saber que algo pode ser certo para um Buddha ou para uma pessoa iluminada, mas para nós não o ser. Como não podemos aceitar a verdade fundamental tal como ela é, para nós parece que ela não é certa. Esta é a verdade com a qual trabalhamos em nossa prática, a verdade não é sempre certa.

ESTUDANTE: Ainda que muitos praticantes da época de

Buddha tenham alcançado o Samādhi45 , Buddha não aceitava este Samādhi até que este se estabelecia acompanhado da equanimidade. É isso o que você acaba de dizer?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim. Nossa Via não é enfatizar

alguma concepção. Nós mantemos posturas intransigentes em nossa própria vida. Por isso temos de praticar. É certo que todos temos a natureza de Bhuddha, tendo Buddha dito isto ou não. Mas, por desgraça, a maioria de nós não se dá conta de que a temos. Não sei porque.

ESTUDANTE: Quando se chega a perceber a escuridão na

luz e a luz na escuridão, elas se convertem por fim no mesmo ou permanecem separadas como luz e escuridão?

45 Samādhi, 三昧 ZANMAI em japonês. Na designação budista, significa uma meditação profunda, um estado de consciência não dualista no qual sujeito e objeto se fazem um, ou a unidirecionalidade da mente. (N. ed. Esp.)

Page 153: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

153

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim, são o mesmo, mas nossa mente preguiçosa separa a escuridão da luz. Nossa Via consiste em submergirmos na luz, para encontrarmos a escuridão na luz, para encontrarmos a natureza de Buddha no perfeito 座禅 ZAZEN. Tendo sonhos ou não, sendo bons ou maus estudantes, vocês deverão se sentar em 座禅 ZAZEN. É a única forma para que a escuridão esteja presente em sua clara prática dualista.

Page 154: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

154

NONA PRELEÇÃO

Page 155: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

155

A NEVE NÃO PODE QUEBRAR O SALGUEIRO

Page 156: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

156

明暗各相對

Page 157: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

157

明暗おのおの相対して、 MEI AN ONO-ONO AITAI SHITE,

Luz e escuridão se opõem uma a outra,

比如前後歩

比するに前後の歩みのごとし、 HISU RUNI ZENGO NO AYUMI NO GOTOSHI,

Como o pé direito e o esquerdo ao caminhar.

Ainda estamos falando sobre a realidade desde o ponto de vista da independência. A dependência e a independência são na realidade as duas faces de uma moeda. As pessoas costumam dizer que os japoneses são muito duros. Mas isto não é mais que um lado da personalidade japonesa. O outro é a suavidade. Por causa de seu passado budista foram educados desse modo durante muito tempo, mas os japoneses são muito amáveis. Temos uma canção infantil que descreve um herói chamado桃太郎 MOMOTARŌ, o Menino Pêssego46 . Era uma vez um casal idoso que vivia junto à margem de um rio. Um dia a anciã viu um pêssego boiando na correnteza e o pegou. Ao regressar a

46 A história completa de 桃太郎 MOMOTARŌ e uma versão da letra da música se encontram no APÊNDICE 02, ao final do livro. (N.T.)

Page 158: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

158

sua casa saiu 桃太郎 MOMOTARŌ do pêssego. As crianças japonesas cantam uma canção sobre ele que diz: “É muito forte, mas muito amável e doce”. É o ideal do caráter japonês. Como se diz na sua língua? Vocês devem ter uma expressão para isso.

ESTUDANTE: Um herói popular? Sim, um herói popular. Sem uma mente doce, não se pode

ser realmente forte. Se 桃太郎 MOMOTARŌ não tivesse este aspecto em seu caráter, se não fosse muito compreensivo, não poderia ser forte de verdade. Uma pessoa que é forte só para si mesma na realidade não o é, mas uma pessoa forte e que além disso é amável ajudará os demais e será completamente um herói popular. Quando temos tanto um lado suave quanto um lado forte, podemos ser verdadeiramente fortes.

É mais fácil lutar e vencer do que suportar uma derrota sem chorar. Vocês deverão ser capazes de permitir que seus inimigos os vençam. Estamos de acordo? Mesmo que seja muito difícil. Mas enquanto vocês não sejam capazes de suportar a derrota, não poderão ser realmente fortes. A disposição para a debilidade pode ser um sinal de força. Nós dizemos: “A neve não pode quebrar o salgueiro”. O peso da neve talvez possa quebrar os ramos das árvores, mas não poderá quebrar os ramos de um salgueiro, mesmo que sejam dobrados e retorcidos, mesmo que caia tanta neve como caiu no ano passado. O bambu também se dobra facilmente. A uma simples vista parece débil, mas a neve não consegue quebrá-lo.

比するに前後の歩みのごとし、HISU RUNI ZENGO NO

AYUMI NO GOTOSHI, “Como o pé direito e o esquerdo ao caminhar”. A escuridão e a claridade – o absoluto e o relativo – são um par de opostos como o pé direito e o esquerdo ao caminhar. É uma forma muito boa de explicar a unidade ou a verdadeira função de um par de opostos. Expressa como utilizamos pares de opostos como a ilusão ou a iluminação, a

Page 159: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

159

realidade e a idéia, o bom e o mau, a debilidade e a força, em nossa prática diária. Para aqueles que acreditam serem muito fortes, talvez seja difícil serem débeis. E aqueles que acreditam que são débeis, talvez nunca tentem ser fortes. É algo que pode ocorrer. Mas algumas vezes temos que ser fortes e, outras, débeis. Se vocês sempre forem débeis ou sempre pretenderem serem fortes, não poderão sê-lo no verdadeiro sentido da palavra.

Quando vocês aprenderem algo, deverão ser capazes de ensinar o que aprenderam aos demais. Deverão se esforçar tanto em ensinar como para aprender. E se desejarem ensinar, deverão ser suficientemente humildes, como para aprender algo. Então poderão ensinar. Se pretenderem ensinar algo só porque sabem de algo, não poderão ensinar o que quer que seja. Quando vocês estiverem dispostos a aprender algo de alguém, então, se necessário, poderão ensinar algo aos demais no verdadeiro sentido da palavra. Aprender é ensinar e ensinar é aprender. Se vocês acreditam que serão sempre estudantes, nada poderão aprender. A razão pela qual vocês aprendem algo é para ensinar aos demais o que tiverem aprendido.

Não existem normas de conduta estabelecidas, mas vocês bem que descobrirão suas próprias normas quando tentarem ensinar algo aos demais. Antes que o Japão perdesse a guerra e se rendesse incondicionalmente, os japoneses acreditavam ter ensinamentos morais que eram totalmente corretos. Acreditavam que se só se observassem aquele código, não cometeriam erro algum. Mas desgraçadamente o código moral foi criado no principio da era 明治 MEIJI (1868-1912). Depois de perder a guerra deixaram de confiar em sua moralidade e não sabiam mais que tipo de conduta moral deveriam observar. Não sabiam o que deveriam fazer. Mas na realidade não deveria ser tão difícil encontrar um código moral. Naquela época eu disse a alguns japoneses: “Vocês têm filhos. A medida em que os forem criando irão conhecendo espontaneamente seu próprio código moral”. Quando vocês acreditam que o código moral é só para vocês mesmos, estão compreendendo só um lado, já que um código

Page 160: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

160

moral é para ajudar os demais. O código moral que vocês descobrirão quando desejarem ajudar os demais e serem bondosos com eles, será também bom para vocês.

Temos um dito que diz: “Afastar-se cem quilômetros para o leste é afastar-se cem quilômetros para o oeste”. Quando a lua esta no alto do céu, a lua estará na profundidade da água. Mas normalmente a gente observa a lua que há sobre a água sem vê-la nela. Que a lua esteja na profundidade da água significa que a lua esta no alto do céu. A lua que há no céu é independente e a lua que sobre a água, também o é, mas a lua sobre a água é ao mesmo tempo a lua que está dentro da água. Devemos compreender isto. Quando vocês são fortes, deverão ser fortes. Deverão ser muito duros. Mas esta dureza surge de sua doce amabilidade. E quando são amáveis deverão ser amáveis. Mas isso não significa que não sejam fortes.

Talvez as mulheres não sejam fisicamente tão fortes como os homens. Por isso costumam ser mais forte do que eles. Na realidade, não se sabe quem é mais forte. Quando possuímos por completo nossa própria natureza independente, nossa força é a mesma que os demais. Se vocês se dedicarem a comparar quem é mais forte, se vocês ou eu, não serão verdadeiramente fortes. Mas quando são totalmente independentes, quando são um com sua própria natureza, vocês são um poder absoluto em uma situação relativa. Quando distintas classes de pessoas competem entre si, significa que não são demasiado fortes. Mas quando se convertem todas nelas mesmas, então cada um tem um poder absoluto. Compreenderam?

A luz e a escuridão, ainda que sejam um par de opostos são idênticas, igual ao pé direito e o esquerdo ao caminhar. Quando vocês andam, o pé que se movimenta adiante se converte imediatamente no pé que fica para trás. É o passo dado com o pé direito que move o pé adiante ou que o deixa para trás? Qual deles é? Qual deles é luz e qual é a escuridão? É difícil de dizer.

Page 161: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

161

Quando vocês andam, não há um pé que está adiante nem outro que esteja atrás. Se pararem e refletirem sobre isso, às vezes o pé direito ficará adiante e o esquerdo, atrás. Mas quando os seus pés estão andando, quando vocês estão realmente praticando a Via, não há luz nem escuridão, nem um pé adiante ou um pé atrás. Se eu dissesse que vocês deveriam sentar-se simplesmente em 座禅 ZAZEN sem pensar, vocês poderiam acreditar que é para não ter pensamento algum. E então cairiam aprisionados na idéia que o pé direito esta adiante e o esquerdo, atrás. E não poderiam mais andar. Quando vocês andam, fazem-no sem hospedar nenhuma idéia sobre o pé esquerdo ou pé direito. Mas se tentarem se fixar no pé direito ou esquerdo, não poderão andar nem correr.

Como já disse em outra preleção, antes de mastigar a comida, há arroz, pepininhos em conserva e sopa. Mas quando vocês mastigarem não há mais arroz nem pepininhos nem sopa. Depois de mastigarem a comida em suas bocas ela será digerida dentro de sua barriga e cumprirá seu fim. Mas ainda que seja assim, temos que servir um prato após o outro e a sobremesa deverá ser oferecida no final. Há uma ordem. Mas apesar de haver uma ordem, vocês haverão de mastigar a comida e misturá-la, senão ela não cumprirá sua finalidade. É necessário pensar nela, e ter uma receita, mas também é necessário mastigá-la e misturá-la. Isto constitui uma interpretação muito boa da realidade e uma boa ilustração de como praticamos a Via e da classe de atividade que tem lugar em nossa vida cotidiana. Com estas linhas se completa a interpretação de石頭 SEKITŌ sobre a realidade à luz da “independency”.47

DIÁLOGO

47 Este trocadilho é intraduzível. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI sabe que em inglês “dependência” é “dependence” ou “dependency”, e que independência é, por sua vez, “independence”, mas decide inventar a palavra “independency”. (N.T. ed. Esp.)

Page 162: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

162

PRIMEIRO ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, em inglês há a

palavra “independent” e “independence” mas não existe a palavra “independency”.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Oh! Perdão! “independence”.

Ainda que o substantivo seja “independence”, para mim essa palavra não convém.

OUTRO ESTUDANTE: Em inglês temos o substantivo

“dependence”, então bem que poderíamos ter também “independency”.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Mas vocês têm a palavra

“independency”? PRIMEIRO ESTUDANTE: Agora sim temos “independency”.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: É que “independent” soa demasiado rotundo. Se vocês são independentes [golpeia a mesa com sua vara]. Isso é tudo! Já não importa mais nada. Mas no budismo não é assim. Quando alguém é independente, está numa situação muito vulnerável ou perigosa.

ESTUDANTE: A gente pensa que é independente. É uma

ilusão? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Quando você pensa “sou

independente”, não está certo. Cada um depende de tudo. ESTUDANTE: Não entendo como pode se conhecer a

diferença entre o que se supõe que uma mulher ou um homem devem ser. Se uma mulher compete com um homem, alguém

Page 163: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

163

poderia dizer que ela é fraca, mas para começar, como pode alguém saber o que uma mulher ou um homem deve ser?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Eu não estou dizendo que seja

fraca. Se um homem e uma mulher competem e são comparados entre si, ao estabelecer algum tipo de modelo ou de categoria, algumas vezes, o homem será mais forte e, outras, a mulher. Mas quando você se converte em si mesmo, totalmente numa mulher ou num homem, sempre terá um valor absoluto e será insubstituível.

ESTUDANTE:Tenho alguns problemas com esta importante

preleção. Gostaria que você me dissesse mais sobre ela, mas não sei exatamente o que. Não percebo onde vai dar. Mas quando você fala dos pares de opostos ou de coisas parecidas, compreendo.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Isto que estou dizendo é para

lhes oferecer outra compreensão da realidade. Vocês estão vendo as coisas desde um lado ou desde outro, e se apegam a uma compreensão que só leva em conta um lado. Por isso estou falando desse modo. É necessário.

Falando com propriedade, nós budistas não temos ensinamentos. Não temos Deus nem deidades. Nada temos. O único que temos é o nada, isso é tudo. Assim, como é possível para os budistas serem religiosos? Que classe de serenidade temos? Esta é a questão. A resposta não é que há que adquirir alguma idéia especial sobre Deus ou sobre uma deidade, mas compreender a realidade com a qual estamos sempre nos confrontando. Onde estamos? O que estamos fazendo? Quem é ele? Quem é ela? Ao observar assim as coisas, não necessitamos qualquer ensinamento especial sobre Deus, porque para nós tudo é Deus. A cada momento estamos vendo Deus.e cada um de nós é também Deus ou Buddha. Não necessitamos

Page 164: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

164

hospedar qualquer idéia especial sobre Ele. Pode ser que essa seja a questão.

ESTUDANTE: RŌSHI, para mim isto soa muito bem, mas

então por que fazemos os votos? Por exemplo, quando Ed e Meg se casaram, você disse que eles deveriam tomar refúgio nos Três Tesouros (Buddha, Dharma e Sangha) e observar os dez preceitos fundamentais.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Nós fazemos votos, observamos os preceitos e lemos os Sūtras. Mas ainda que vocês leiam as escrituras e observem os preceitos, se não compreenderem corretamente os preceitos, estes serão luz ou então escuridão, e quando vocês estiverem aprisionados desse modo ou dependendo demasiadamente dos preceitos ou das escrituras, estes deixam de ser preceitos os escrituras budistas.

ESTUDANTE: Suponhamos que eu me comprometa a

seguir o preceito de não falar mal dos outros. Se não sigo, parece como se não servisse para nada, e se eu o sigo, parece que ficaria aprisionado nele. Não entendo. Se os preceitos não são umas regras rígidas, é como se não servissem para nada, e se são, parecem estar em desacordo com o 參同会 SANDŌKAI.

Sempre me intrigou a parte do canto que cantamos na hora de comer que diz: “... para não fazer o mal e praticar o bem” 48. 48 Durante a invocação das refeições, temos o 擊鉢之偈 KEIHATSU NO GE:

上分三寶 、JŌBUN SANBŌ, A parte superior para os Três Tesouros,

Page 165: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

165

Em outra ocasião, perguntei-lhe o que isto queria dizer e você me respondeu que significava que deveríamos prestar atenção ao que estávamos fazendo. Se assim é, porque não o dizemos com essas palavras? Se assim é, por que não dizemos: “Prometo praticar 座 禅 ZAZEN em minha vida cotidiana sem ficar aprisionado nas regras”? Por que temos de recitar esta embromação sobre o “bem e o mal”? Soa tão falso!

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Não! Você está tentando argumentar comigo, isso é tudo [risos]. Você necessita dos preceitos, mas na realidade é impossível violá-los. Você não pode fazê-lo. Mas acredita que sim. Se assim acredita, deverá aceitar seus sentimentos, e se os aceita, então deverá dizer: “Perdão!” ou “Sinto muito”, ou algo parecido. Isso também é algo muito natural. “Não matar” é um preceito que segue funcionando,

中分四恩、CHŪBUN SHI ON,

A parte do meio para o Quatro Veneráveis,

下及六道、 GEKYŪ ROKU DŌ, A parte inferior para os Seis Mundos,

皆同供養。 KAI DŌ KUYŌ. Assim comemos com todos.

一口、為段斷一切惡 。IKKU I DAN ISSAI AKU,

Primeiro, para extinguir o mal.

二口、為修一切善。 NIKU I SHU ISSAI ZEN, Segundo, para praticar o bem.

三口、為度諸衆生。 SAN KU I DO SHO SHU JŌ,

Terceiro, para salvar todos os seres.

皆具共成佛道 KAI GU JŌ BUTSU DŌ. E nos tornarmos o Caminho de Buddha. (N.T.)

Page 166: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

166

não é nem o pé de trás nem o pé da frente. Compreende? Se você lê os preceitos e diz: “De acordo, vou cumpri-los” isso são os preceitos. E quando eventualmente violar algum deles, poderá dizer: “Oh, sinto muito!”. É algo muito natural.

ESTUDANTE: Alguns dos preceitos me parecem naturais,

como por exemplo, o de que não devemos dizer coisas cruéis sobre os outros. Mas o preceito de não tomar drogas nem bebidas alcoólicas não me parece natural. Para mim faria muito mais sentido se todos os preceitos fossem naturais, já que então desejaria segui-los de maneira natural.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Se esse é o seu sentimento, deveria também dizer: “Para mim é muito natural nascer e viver neste mundo”. Mas é natural? Você já supôs algo que não deveria ter suposto. Por que você veio a este mundo? Pode ser que isso já seja um grande erro. [risos]

ESTUDANTE: Quando eu vim aqui ninguém me falou nada

de preceitos. Só queriam saber se eu tinha os dois dólares e meio que tinha que pagar diariamente por estar aqui.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Pobrezinho! Mas pode ser que tudo não seja tão simples. De todo modo, você deveria dizer: “Oh, sinto muito!”, já que ao nascer não podia dizê-lo. Mas agora pode. Deveria dizer: “Lamento ser seu filho ou sua filha. Perdoe-me, tenho causado muitos problemas”. Isto é na realidade seguir os preceitos.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, às vezes ao escutar alguma de

suas preleções me sinto como quando uma vez estava caminhando e alguém se aproximou e me disse: “Você já se deu conta de que quando você está caminhando um pé está na frente

Page 167: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

167

e o outro está atrás?” Não me havia dado conta! Esta pergunta me assombrou durante muito tempo. Perguntava-me por que me haviam feito uma pergunta tão extraordinária e pensei muito nela. Para mim ela era muito curiosa e me chamou muito a atenção. Depois de muito tempo descobri que voltara a andar sem pensar demasiado nisso. Mas um dia, enquanto estava andando, aproximou-se outra pessoa e me disse: “Você já se deu conta de que quando andamos um pé esta na frente e o outro está atrás?” E neste momento voltei a me sentir igual. Continuo seguindo apesar de não entender, mas hei de enfrentar a situação de qualquer modo. Metade de mim diz: ”Que importância isso tem?”, porque já não me preocupa mais, e a outra metade diz: “Sim, mas continua acontecendo a cada passo que dou”.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Se você considera sua vida como uma prática pessoal, para você esta observação não terá demasiado sentido. Mas se estiver consciente do que os outros seres humanos estamos fazendo, verá que é exatamente assim que criamos nossos problemas. Pé direito ou pé esquerdo, 臨濟 RINZAI ou 曹洞 SŌTŌ, América ou União Soviética, paz ou guerra... Se você compreende as coisas deste modo, terá um grande problema. A forma de resolvê-lo é seguir seu caminho, seguir e seguir.

ESTUDANTE: Se não entendi mal, você está dizendo que o

problema reside em como ser consciente destas polaridades e preceitos sem ser consciente de o estar sendo? Esta espécie de presença mental de certo modo fixa as coisas e isso tampouco é o real. Fecha a corrente.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sim, e quando a corrente se

fecha, não pode se mover. Mas cada um de nós deve se mover.

Page 168: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

168

Como o tempo não espera por você49, você terá que avançar e continuar avançando seguindo a realidade. Se refletir sobre este ponto, já começará a andar. Mas se pensar senão naquilo, não funcionará nem estará na realidade avançando. Se você pensar: “O dia de hoje não voltará a se repetir e amanhã terei que ir para algum outro lugar”, já terá começado a andar. Você não pode pensar sempre sobre a mesma coisa, não pode sempre parar e refletir. Deve avançar e prosseguir avançando, tentando fazê-lo o melhor possível. E quando procurar fazê-lo o melhor possível, na realidade já estará andando. Algumas vezes pode ser que um pé esteja atrás e o outro, adiante. Outras vezes, pode ser que sentirá que estão fazendo algo bom ou algo mau. Mas você deverá aceitar que estará avançando incessantemente desse modo. Como haverá de aceitá-lo e viver cada momento, estará vivendo na realidade cada momento. E então terá de fazer algo. Os mestres 臨濟 RINZAI gritam: “Diga algo!, Diga algo agora!” [bate na mesa com sua vara]. O que você tem a dizer? Esta é a questão.

49 Em alguns 板 HAN (Placa de madeira retangular mantida na entrada do禅堂 ZENDŌ e que é percutida com um martelo, sinalizando o início ou o final das sessões de 座禅 ZAZEN), é escrito o seguinte poema chinês:

生死事大、 SHŌ SHI JI DAI, Vida e morte são assuntos de suprema importância,

光陰可惜、 KŌIN KA SEKI,

Cada momento deve ser bem utilizado,

無常迅速、 MUJŌ JIN SOKU, A impermanência tudo modifica,

時不待人。JI FUTAI JIN.

O tempo não espera por ninguém. (N,T.)

Page 169: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

169

Page 170: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

170

DÉCIMA PRELEÇÃO

Page 171: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

171

O SOFRIMENTO É VALIOSO

Page 172: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

172

Page 173: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

173

萬物自有功

万物おのずから功あり、 BANMOTSU ONOZUKARA KŌ ARI,

Cada um das miríades de fenômenos

tem seu próprio mérito,

當言用及處

当に用と処とを言うべし、 MASANI YŌ TO SHO TO O IU BESHI,

Expresso de acordo com sua função e lugar.

事存函蓋合

事存すれば函蓋合し、

Page 174: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

174

JI SON SUREBA KANGAI GASSHI,

Os fenômenos existem como uma caixa que se ajusta perfeitamente à sua tampa,

理應箭鋒哘

理応ずれば箭鋒さそう、 RI Ō ZUREBA SENPŌ SASŌ,

Igual a quando duas flechas se encontram em pleno

vôo, ponta com ponta.

Agora gostaria de falar sobre como vocês devem observar as coisas, como devem tratá-las e compreender seu valor. 万物おのずから功あり、BANMOTSU ONOZUKARA KŌ ARI, “Cada um das miríades de fenômenos tem seu próprio mérito”, 当に用と処とを言うべし、MASANI YŌ TO SHO TO O IU BESHI, “Expresso de acordo com sua função e lugar”. As miríades de fenômenos, 万物 BANMOTSU, incluem os seres humanos, as montanhas e os rios, as estrelas e os planetas. Cada um tem sua própria função, virtude ou valor. Quando dizemos “valor”, normalmente estamos nos referindo a um valor de intercâmbio. Mas aqui “valor” tem um significado mais amplo, refletido na palavra 功 KŌ. 功 KŌ não significa “função” ou “utilidade” no sentido habitual, mas se aplica melhor à virtude ou ao mérito: a alguém levando uma vida meritória ou fazendo algo para a

Page 175: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

175

sociedade ou a comunidade. Esta função terá uma virtude para nós. Mas quando dizemos “função” talvez nos perguntemos: “Uma função de que?” Aqui terei de usar alguns termos técnicos. Por exemplo, se vocês enxergarem algo, [neste momento o volume do equipamento de som aumenta repentinamente e 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI ouve sua própria voz pelos alto-falantes] Oh! [risos] Agora vocês estão escutando minha voz. Acreditam que a estão escutando. Pode ser que seja minha voz, mas na realidade o que estão escutando é a função de uma entidade universal chamada eletricidade que está presente no mundo todo, no universo inteiro. Esta é uma forma de compreender. A outra seria que estão escutando minha natureza e, ao mesmo tempo, a natureza da eletricidade. Quando vocês estão vendo ou escutando algo, o universo inteiro está presente. A esta forma de compreender as coisas chamamos de compreensão de 体 TAI. 体 TAI significa “corpo”. Mas é um corpo imenso, ontológico, que a tudo inclui. E no Budismo a natureza deste corpo se denomina 正 SHŌ, que não é o 処 SHO que aparece nestes versos do poema, mas o 正 SHŌ que significa “a natureza básica de tudo”. Quando captamos aquilo que está mais além das palavras, esta compreensão se chama 理 RI, ou verdade. 理 RI é algo mais além de nossas idéias de bom e de mau, de comprido e curto, de correto ou incorreto. No verso seguinte aparece 用 YŌ, que significa “utilidade” ou “uso”. 功 KŌ e 用 YŌ podem significar a mesma coisa, mas aqui – quando se usam como termos técnicos budistas - 功 KŌ se refere à função das coisas ou 事 JI, e por sua vez 用 YŌ se refere à função da verdade absoluta ou 理 RI. Nestes dois versos 石頭 SEKITŌ está falando da unidade existente entre 功 KŌ e 用 YŌ. 功 KŌ e 用 YŌ se aplicam a cada ocasião e a cada coisa. À medida que vocês forem enfrentando as situações da vida,

Page 176: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

176

deverão saber que naquele mesmo momento e lugar estão se revelando os verdadeiros ensinamentos. Vocês deverão conhecer este lugar. Às vezes 功 KŌ e 用 YŌ são usados juntos. 功用 KŌYŌ significa que compreendemos não só cada coisa tal como a vemos, mas além disso a origem de cada coisa, que é 理 RI. Temos que saber usar as coisas. Saber usá-las é conhecer os ensinamentos ou o funcionamento das coisas. Compreender as coisas significa compreender a origem; e compreender o valor das coisas significa compreender como devemos usá-las corretamente de acordo com o lugar e a natureza de cada uma. Isso é ver “as coisas tal como é”. Normalmente, mesmo que vocês digam: “Vejo as coisas tal como é”, não é bem assim. Somente estão vendo um lado da realidade, sem ver o outro. Não estão vendo a origem, que é 理 RI, mas apenas as coisas em termos de 事 JI, o aspecto fenomênico de cada acontecimento, e acreditam que cada uma delas somente existe deste modo, mas isso não é correto. Todas as coisas estão mudando continuamente e estão relacionadas umas às outras, e cada uma tem sua própria origem. Há uma razão pela qual estão aqui. Ver “as coisas tal como é” significa compreender que 事 JI e 理 RI são um, que a distinção e a igualdade são uma, e que a aplicação da verdade e o valor das coisas são um. Por exemplo, acreditamos que o universo existe apenas para os seres humanos. Na atualidade nossa mente é mais ampla e vemos as coisas com maior liberalidade, mas ainda assim, como a compreensão que temos das coisas se centra sobretudo nos seres humanos, não vemos ou apreciamos o verdadeiro valor das mesmas. Vocês têm muitas perguntas a me fazer, mas se compreenderem esta questão com clareza, quase nada necessitarão me perguntar. A maioria das perguntas e dos problemas surge de nossas idéias egoístas e egocêntricas. “O que é o nascimento e a morte?” é uma idéia muito egocêntrica. Como é natural, o nascimento e a morte são nossa virtude ou nosso mérito. Morrer é nossa virtude e vir a este mundo também

Page 177: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

177

o é. Vemos como as coisas funcionam, como tudo está aparecendo e desaparecendo sem cessar, envelhecendo ou crescendo dia a dia. Se tudo existe desse modo, por que nós seres humanos deveríamos ter um tratamento especial? Ao falar “do nascimento e da morte” se costuma compreender como o nascimento e a morte dos seres humanos, mas quando vocês o compreenderem como o nascimento e a morte de tudo o quanto existe – das plantas, dos animais e das árvores – isso já deixa de ser um problema, constitui-se num problema para todos, incluindo nós mesmos. E um problema para todos deixa de ser um problema. Quase todas estas perguntas surgem da compreensão das coisas com uma mentalidade estreita. Há que ter uma compreensão mais ampla e clara. Talvez vocês acreditem que falar sobre estas coisas não os ajudará em nada, mas não é fácil ajudar a um ser humano egoísta. O Budismo não trata os seres humanos como se fosse parte de uma categoria especial. Acreditar que os seres humanos somos uma categoria especial é uma visão ilusória e egoísta. E, sem embargo, é normal para nós humanos sermos vistos assim: não refletir a verdade que há em nosso interior e buscá-la fora. Quando vocês a buscam no exterior, significa que não se conhecem os suficiente, necessitando confiar mais em si próprios.

O 參同会 SANDŌKAI diz nestes versos que todos os seres têm sua própria virtude ou mérito. Como seres humanos, temos nossa própria natureza. No fundo, só seguimos a verdade quando vivemos como seres humanos que têm uma natureza humana egoísta, porque então estamos levando em conta nossa natureza. Temos que viver neste mundo como seres humanos, em vez de tentar viver como gatos e cães, que são mais livres e menos egoístas do que nós. Os seres humanos devem ser metidos numa jaula, numa imensa jaula invisível como a religião ou a moralidade. Os cães e os gatos não têm esta jaula especial. Não necessitam qualquer ensinamento ou religião. Mas nós, seres humanos, necessitamos da religião. Nós devemos dizer: “Sinto muito”, mas os gatos e os cães não. Os seres humanos

Page 178: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

178

temos que nos comportar da forma que corresponde aos humanos, e os cães e os gatos deverão se comportar da forma que lhes corresponde. Assim é como a verdade se aplica a tudo quanto existe.

Se nos comportamos da forma que corresponde aos humanos e os cães e os gatos se comportam da forma que corresponde a deles, parece como se os seres humanos e os animais tivessem naturezas distintas. Mas ainda que sejam naturezas distintas, sua origem é a mesma. Como o lugar onde vivemos e nossa forma de agir é distinta da dos animais, a verdade haverá de se aplicar de modo distinto. É como o uso que se dá a eletricidade. Algumas vezes a usamos para iluminar e outras, para acionar um alto-falante. Os seres humanos têm sua própria natureza e os animais, também. Mas mesmo que nós a expressemos de uma forma distinta da deles, a natureza dos seres humanos e a natureza dos animais têm a mesma base. Assim é como se aplica a verdade. Na realidade, 石頭 SEKITŌ está falando disso. Não devemos nos apegar aos distintos usos, porque estamos utilizando a mesma natureza verdadeira ou natureza de Buddha. Mas dependendo da situação, usaremos a natureza de Buddha de maneiras distintas. É assim que encontraremos na vida cotidiana a verdadeira natureza em nosso interior.

Os dois versos seguintes, 事存すれば函蓋合し、JI SON SUREBA KANGAI GASSHI, “Os fenômenos existem como uma caixa que se ajusta perfeitamente à sua tampa”, 理応ずれば箭鋒さそう、RI Ō ZUREBA SENPŌ SASŌ, “Igual a quando duas flechas se encontram em pleno vôo, ponta com ponta”. O relativo, 事 JI se encaixa à perfeição no absoluto, 理 RI, como uma caixa se ajusta à sua tampa. O absoluto e o relativo são como duas flechas que se encontram em pleno vôo. Como já disse antes, 事 JI significa diversas coisas e eventos, incluindo as coisas sobre as quais vocês pensam. 理 RI em contrapartida está mais além do pensamento, mais além de nossa compreensão ou

Page 179: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

179

percepção. O relativo e o absoluto são o mesmo, mas temos de compreendê-los de duas formas.

Onde houver 事 JI, haverá 理 RI. É como uma caixa e sua tampa, encaixam-se à perfeição. E que eu esteja aqui significa que a verdadeira natureza de Buddha está aqui. Não sou só eu, mas algo mais, mas estou expressando a verdadeira natureza da minha própria maneira. Que eu esteja aqui significa que o universo inteiro está aqui, da mesma forma que onde há uma lâmpada de querosene haverá óleo.

A forma na qual 理 RI coincide com 事 JI é a mesma de quando duas flechas se encontram em pleno vôo. Há uma antiga historia sobre isso. Na China, durante o período dos Estados Beligerantes (战国时代 Zhànguó Shídài, 430 a.C.-221 d.C.), havia um famoso mestre da arte da espada chamado HIEI (em chinês, Feiwei). Seu discípulo KISHO (em chinês, Jichang), um excelente arqueiro, tornou-se ambicioso e quis competir com HIEI. Um dia, esperou a chegada de HIEI com seu arco e flechas. Este, ao ver que KISHO se aproximava, pegou seu arco e disparou uma flecha. Tentou dispará-la antes que KISHO percebesse, mas os dois eram tão bons e tão rápidos que o fizeram simultaneamente e as flechas se encontraram em pleno ar: Sssssssst! Depois deste incidente tornaram-se inseparáveis.

Há uma razão, por exemplo, para que eu seja um ancião. Sem uma razão, neste momento eu não o seria. E sem uma razão eu tampouco teria sido jovem. Como por alguma razão envelheci, não posso me queixar. A origem de meu envelhecimento é a mesma de eu ter crescido como uma linda criança. [risos] Há uma origem que tem me sustentado e que seguirá me sustentando mesmo depois que eu morra. Esta é a compreensão budista.

Aceitar “as coisas tal como é” parece muito difícil, mas é muito fácil. Se não lhes parece fácil, pensem porque lhes parece difícil. “Talvez”, vocês podem dizer, “seja por culpa da estreita e egoísta compreensão que tenho de mim mesmo”. E então vocês

Page 180: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

180

poderão se perguntar: “Por que compreendo as coisas de uma forma egoísta?” Mas compreender as coisas de uma forma egoísta também é necessário. Como somos egoístas, trabalhamos duramente. Se não compreendêssemos as coisas se uma forma egoísta não poderíamos trabalhar. Sempre necessitamos receber alguma guloseima, e uma compreensão egoísta é uma espécie de guloseima. Não é algo que vocês devam rechaçar, mas algo que os ajuda. Vocês deverão se sentir agradecidos pela maneira egoísta que têm de compreender as coisas, pois ela propõe a vocês muitas perguntas. Mas estas não são mais que perguntas e não significam grande coisa. Vocês podem desfrutar de suas perguntas e respostas e fazer todo o tipo de julgamentos com elas; não têm por que levá-las a sério. É assim que o Caminho do Meio50 compreende.

O Caminho do Meio pode ser compreendido como 理 RI, Vacuidade, e como 事 JI, algo. As duas formas de compreender são necessárias. Como somos seres humanos e nosso destino é viver provavelmente oitenta ou noventa anos, temos que viver a vida de maneira egoísta. E ao vivê-la de maneira egoísta, teremos uma serie de dificuldades que deveremos aceitar. E quando as aceitamos, isso em si é o Caminho do Meio. Sem rechaçar sua forma egoísta de viver, vocês deverão aceitá-la, mas sem se apegar a ela! Limitem-se a aproveitar suas vidas humanas enquanto as vivem. Isso é o Caminho do Meio, é compreender 理 RI e 事 JI. Onde haja 理 RI, haverá 事 JI. Compreender as dificuldades desta forma é aproveitar a vida sem rechaçar os problemas nem o sofrimento.

Descobri algo muito importante que nunca havia enfatizado tanto: o sofrimento é valioso. Eu o compreendi hoje, enquanto falava com alguém. Nossa prática poderia ser a prática do

50 中道 CHŪDŌ em japonês, madhyama-pratipad em sânscrito. Doutrina budista que evita os extremos do eternalismo e do nihilismo. Na literatura budista mais antiga refere-se ao Caminho que evita os extremos da auto-indulgência e do ascetismo. (N.T.)

Page 181: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

181

sofrimento e consistir em como sofremos. De grande ajuda nos seria. Eu acredito que a maioria de vocês conheceu o sofrimento, porque suas pernas doem ao sentarem em 座禅 ZAZEN. Além disso, na vida cotidiana vocês também sofrem. Quando o abade 山田 YAMADA51 dirigiu alguns 攝心 SESSHIN no Centro 禅 ZEN, fez questão do UNSHU, uma prática que 白隠禅師 HAKUIN ZENJI52 . 白隠 HAKUIN em sua juventude contraiu tuberculose e conseguiu superar esta enfermidade com a prática de UNSHU, que significa pôr a ênfase respiratória na exalação: “Mmmmmm”. Como vocês chamam este som?

ESTUDANTE: Gemer? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Gemer? Quando alguém sofre e

faz “mmmmmmm”, como se chama este som? ESTUDANTE: Suspirar? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Não, não é suspirar. ESTUDANTE: Lamuriar-se?

51

霊 林 山 田 REIRIN YAMADA (1889-1979), foi um abade do 曹洞 禅 SŌTŌ ZEN nos Estados Unidos de 1960 a 1965. (N. ed. Esp.) 52 白隠 慧鶴 HAKUIN EKAKU (1689-1769) foi um importante mestre 禅 ZEN japonês que revitalizou e sistematizou a escola 臨濟 RINZAI. Suas práticas respiratórias são descritas no ensaio autobiográfico 夜船閑話 YASENKANNA, reimpresso na obra de Trevor Legget “The Tiger’s Cave” – Rider and Company, London, 1964 pag. 142-156. (N. ed. Esp.)

Page 182: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

182

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Não, não é lamuriar-se. É mais forte que isso, é como a dor de um tigre.

ESTUDANTE: Grunhir? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Grunhir? [risos] Eu falava que

temos que respirar como quando se sofre. Temos que utilizar a parte inferior do abdômen e alargar a expiração. Temos que praticar o som “mmmmmm” em silêncio, do contrário não será o UNSHU. Quando vocês repetirem este UNSHU como se estivessem sofrendo por algum problema físico ou mental, e dirigirem a prática apenas para o sofrimento que estiverem sentindo, então será uma boa prática. Não é distinta de 只管打座 SHIKANTAZA53 .

Em contrapartida, quando seu sofrimento lhe aflige o peito e a respiração é superficial, isso é sofrer de forma angustiante. Para sofrer por completo é preciso sofrer desde a parte inferior do abdômen. “Mmm-mmm.” Ao fazê-lo, vocês se sentirão bem. É muito melhor que nada dizer ou deixar-se ficar na cama.

O abade 山田 YAMADA teve dificuldades até pouco tempo. Agora se encontra, talvez, “acima das nuvens” 54. Mas quando vivia em Los Angeles, sofreu muito. Naquela época eu não tinha tanta experiência com enfermidades e não podia compreendê-lo. Não podia aceitar sua prática de UNSHU como uma pessoa enferma poderia ter feito. “Mmmm-mmmm, que prática é esta?”, pensei. Mas acabei descobrindo porquê o fazia e vi que era de grande ajuda. Naturalmente, ele havia compreendido o que era o sofrimento. Ninguém gosta de sofrer, mas nosso destino humano é sofrer. A questão é como sofremos. Devemos saber aceitar o

53 只管打座 SHIKANTAZA significa “simplesmente sentar-se”. (N. ed. Esp.) 54 Ou seja, acima do sofrimento. (N. ed. Esp.)

Page 183: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

183

sofrimento humano, mas sem nos deixar aprisionar nele. Em suma, a prática do abade 山田 YAMADA se fundamenta nisto.

Nossa prática consiste em encontrar a unidade de 理 RI e 事 JI, a unidade da alegria e do sofrimento, a unidade da alegria da Iluminação nas dificuldades. O chamado Caminho do Meio é isto. Compreenderam? Onde haja sofrimento, haverá a alegria do sofrimento ou o Nirvāna. Nem sequer o Nirvāna poderá livrá-los do sofrimento. Dizemos que o Nirvāna é a completa extinção dos desejos, mas o que isso na realidade significa é que temos de obter esta completa compreensão e vivermos de acordo com ela. Isso é 座禅 ZAZEN. Estar sentado com a espinha alinhada . Sem inclinar-se para o lado do Nirvāna nem para o lado contrário do sofrimento. Manter-se justamente no meio. Qualquer um pode se sentar com a espinha alinhada e praticar 座禅 ZAZEN.

Estou seguindo o poema de 石頭 SEKITŌ verso por verso, mas na realidade deve-se lê-lo de cabo a rabo, já que se é explicado linha por linha não tem muito sentido. 石頭 SEKITŌ é muito rigoroso na conclusão. Vocês não poderão escapar dele. Não poderão dizer o que quer que seja, do contrário sentirão o golpe de seu grande bastão. Como em sua época o mundo do 禅 ZEN era muito ruidoso, ele ficava muito bravo: “Cale-se!”, é o que na realidade ele dizia. Ou seja, que eu não deveria falar tanto. Talvez até tenha falado demais. Sinto muito!

Page 184: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

184

Page 185: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

185

BREVE PRELEÇÃO DURANTE UMA SESSÃO DE 座禅 ZAZEN

ESTA PRELEÇÃO FOI DADA DURANTE UMA SESSÃO DE 座禅 ZAZEN NA MANHÃ DE 28 DE JUNHO DE 1970, ENTRE A

DÉCIMA E A DÉCIMA PRIMEIRA PRELEÇÕES.

Vocês devem se sentar com todo o corpo: com a coluna, a boca, os dedões do pé e o Mudrā55 . Enquanto estiverem fazendo 座禅 ZAZEN deverão conferir sua postura. Cada parte de seu corpo deverá praticar 座 禅 ZAZEN independentemente ou separadamente: os dedões do pé deverão praticar 座禅 ZAZEN de forma independente, seu Mudrā deverá praticar 座禅 ZAZEN de forma independente e a coluna e a boca deverão praticar 座禅 ZAZEN de maneira independente. Vocês deverão sentir que cada parte de seu corpo está fazendo 座 禅 ZAZEN independentemente. Cada parte do corpo deverá participar por completo no 座禅 ZAZEN. Confiram que cada parte do corpo está fazendo 座禅 ZAZEN de maneira independente, o que também se conhece como 只管打座 SHIKANTAZA. Pensar: “Eu estou fazendo 座禅 ZAZEN” ou “meu corpo está fazendo 座禅 ZAZEN” é uma compreensão equivocada, já que constitui uma idéia egocêntrica.

O Mudrā é especialmente importante. Vocês não devem sentir que para sua comodidade o Mudrā descansa sobre a sola do pé. O Mudrā deve adotar sua própria posição.

55 No 座禅 ZAZEN, o Mudrā (印相 INSŌ em japonês) se refere à posição das mãos, que formam uma elipse chamada Mudrā Cósmico. (Dhyani Mudrā, em sânscrito). (N.ed. Esp.)

Page 186: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

186

Não movam as pernas para ficarem mais confortáveis. As pernas praticam seu próprio 座 禅 ZAZEN de maneira independente e estão completamente entregues à sua própria dor. Estão fazendo 座禅 ZAZEN através da dor. Vocês devem deixá-las praticar seu próprio 座禅 ZAZEN. Se pensarem que estão praticando 座禅 ZAZEN, estarão envoltos numa idéia egoísta e de afirmação da própria personalidade.

Se vocês acreditarem estar tendo alguma dificuldade em alguma parte do corpo, o resto do corpo deverá ajudar a parte que está tendo dificuldade. Não são vocês que estão tendo problemas com uma parte de seu corpo, mas esta parte do corpo que está tendo. Por exemplo, se seu Mudrā está tendo dificuldade, é o corpo inteiro que deverá ajudar seu Mudrā a fazer座禅 ZAZEN.

O universo inteiro está fazendo 座禅 ZAZEN da mesma forma que seu corpo está fazendo. Quando todas as partes do corpo estão praticando 座禅 ZAZEN, o universo inteiro está praticando 座禅 ZAZEN. Cada montanha se eleva e cada rio flui independentemente. Todas as partes do universo estão participando de sua prática. A montanha pratica de maneira independente. O rio pratica de maneira independente. E assim é como o universo inteiro pratica de maneira independente.

Quando vocês vêem algo, talvez acreditem estar contemplando algo fora de vocês mesmos, mas na realidade estão contemplando seu Mudrā ou o dedão do seu pé. Por isso o 座禅 ZAZEN representa o universo inteiro. Temos que praticar 座禅 ZAZEN com esta sensação. Vocês não devem dizer: “Eu pratico 座禅 ZAZEN com meu corpo”, por que não é assim.

道元禅師 DŌGEN ZENJI disse; “Não é a água que flui, é a ponte”. Vocês podem dizer que sua mente está praticando 座禅 ZAZEN e estar ignorando a prática de seu corpo. Às vezes quando vocês acreditam estar fazendo 座禅 ZAZEN com uma mente imperturbável estão ignorando o corpo. Mas vocês

Page 187: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

187

também devem compreender isso da forma contrária ao mesmo tempo: seu corpo está praticando 座 禅 ZAZEN de forma imperturbável enquanto a mente está se movendo. Suas pernas estão praticando 座禅 ZAZEN com a dor. A água está praticando座 禅 ZAZEN com o movimento, entretanto, enquanto flui permanece quieta porque o fluir é sua quietude ou sua natureza. A ponte está fazendo 座禅 ZAZEN sem se mover.

Deixem que a água flua, já que esta é a prática da água. Deixem que a ponte permaneça e se encastele aí, já que esta é a prática da ponte. A ponte está praticando 座禅 ZAZEN, o imperturbável 座禅 ZAZEN está praticando 座禅 ZAZEN. Isto é a nossa prática.

Page 188: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

188

Page 189: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

189

DÉCIMA PRIMEIRA PRELEÇÃO

NÃO DEVEMOS NOS APEGAR ÀS PALAVRAS

OU ÀS REGRAS

Page 190: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

190

Page 191: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

191

承言須會宗

言を承てはすべからく宗を会すべし、 KOTO O UKETE WA SUBE KARAKU SHŪ O ESU BESHI,

Ao ouvir estas palavras,

você deve compreender seu significado

勿自立規矩

みずから規矩を立することなかれ、 MIZUKARA KIKU O RISSURU KOTO NAKARE,

Não estabeleça suas próprias regras.

觸目不會道

触目道を会せずんば、 SOKU MOKU DŌ O ESSE ZUNBA,

Se não for capaz de compreender

a Via que tem diante de si,

Page 192: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

192

運足焉知路

足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、 ASHI O HAKOBU MO IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN,

Como poderá reconhecê-la ao caminhar por ela?

言を承てはすべからく宗を会すべし、KOTO O UKETE WA SUBE KARAKU SHŪ O ESU BESHI, “Ao ouvir estas palavras, você deve compreender seu significado”. 言 KOTO significa “palavras”. 言 KOTO também inclui tudo: as palavras, as coisas e as idéias que vemos ou ouvimos. 承て UKETE significa “receber” ou “escutar”. 宗 SHŪ é “a fonte do ensinamento”, que está mais além das palavras. Quando vocês escutarem as palavras deverão compreender a fonte dos ensinamentos. Como costumamos nos apegar às palavras, é difícil ver o verdadeiro significado dos ensinamentos. Mas nós dizemos que as palavras ou os ensinamentos são o dedo apontado para a lua. As palavras apenas sugerem o verdadeiro significado da verdade. Se vocês se apegarem ao dedo que aponta para a lua, não verão a lua. Não devemos nos apegar às palavras, mas conhecer seu verdadeiro significado. Na época de 石頭 SEKITŌ cada mestre tinha sua própria forma de apresentar o verdadeiro ensinamento a seus discípulos. À medida que os discípulos foram se apegando às palavras ou à forma particular que um mestre tinha de expressar a verdade, o 禅 ZEN começou a se dividir em numerosas escolas e então ficou difícil para os discípulos saber em qual delas estava a autêntica Via. Na realidade perguntar-se qual delas era a autêntica Via já era um equivoco, posto que cada mestre estava sugerindo, à sua

Page 193: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

193

própria maneira, o verdadeiro ensinamento, da mesma fonte da qual Buddha nos transmitiu. Apegar-se às palavras sem conhecer a fonte do ensinamento é um erro, e isso era o que muitos mestres e discípulos da época de 石頭 SEKITŌ estavam fazendo. Por isso 石頭 SEKITŌ diz aqui: “Se vocês receberem as palavras, deverão compreender a fonte dos ensinamentos transmitidos por Buddha, que está mais além da forma particular de cada mestre expressar ou sugerir a verdade”. O verso seguinte diz: みずから規矩を立することなかれ、MIZUKARA KIKU O RISSURU KOTO NAKARE, “Não estabeleça suas próprias normas”. Vocês não devem estabelecer qualquer regra, nem devem se apegar ou se atar a alguma. A maioria das pessoas o faz. Quando dizem: “Isto é o correto!” ou “Isto é incorreto!”, estão estabelecendo algumas regras. E ao dizê-lo, apegam-se e atam-se naturalmente a elas. Por isso o zen se dividiu em tantas escolas ou vias distintas: 曹洞 SŌTŌ, 臨濟 RINZAI, 法眼 HŌGEN, 雲門 UNMON e 潙仰 IGYŌ56. A princípio havia um só ensinamento, mas mais tarde cada mestre ou seus discípulos estabeleceram uma escola e se apegaram à Via de sua “família” e a ela se ataram. Compreenderam os ensinamentos de Buddha à sua própria maneira e logo se apegaram a sua forma pessoal de compreendê-los e acreditaram que eram os ensinamentos de Bhuddha. Ou seja, apegaram-se ao dedo apontado para a lua. Se três mestres estivessem apontando para a lua, cada um o faria com seu próprio dedo, ou seja, já haveria três escolas. Mas somente há uma lua. Por isso 石頭 SEKITŌ disse que não devemos nos fixar em regras. Isto é muito importante para nossa prática. Tendemos a estabelecer nossas próprias regras. Vocês podem dizer: “Esta é a regra de Tassajara”. Mas as regras não são mais que dedos apontando como fazer uma boa prática em Tassajara, segundo determinadas circunstâncias. As regras são importantes, mas vocês não devem pensar: “É a única forma de fazê-lo”, ou 56 Veja nota nº 11. (N.T.)

Page 194: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

194

“Nossas regras são os verdadeiros ensinamentos permanentes”, ou “Suas regras não são apropriadas”. Vocês não deverão se apegar à sua própria forma de compreender as coisas. Algo que é bom para uma pessoa não significa que também o seja para outra. Vocês não devem estabelecer regras para todo mundo. As regras são importantes, mas não se apeguem a elas nem as imponham aos demais. Quando entrarem num monastério vocês não deverão dizer: “Eu tenho a minha própria maneira de me comportar”. Se vierem para Tassajara, deverão obedecer as regras de Tassajara. Não deverão estabelecer suas próprias regras. Ver a verdadeira lua através das regras de Tassajara é a forma de praticar em Tassajara. O mais importante não são as regras, mas o ensinamento que as regras captam. Ao observar as regras vocês compreenderão espontaneamente os verdadeiros ensinamentos. Pode ser que não levemos em conta esta questão desde o princípio. A maioria das pessoas começa a estudar o 禅 ZEN para saber do que se trata, e esta atitude já é em si um erro, porque com ela estamos sempre tentando adquirir alguma compreensão do 禅 ZEN ou ditar alguma regra. A forma de estudar o 禅 ZEN deve ser como o modo pelo qual um peixe consegue alimento. Um peixe não deseja ir atrás de uma presa, apenas se dedica a nadar na água. E se algo apetitoso lhe passa pela frente, zás! Ainda que faça muito calor, vocês observam as regras de Tassajara e comem no calorento 禅堂 ZENDŌ como um peixe nadando na água, e quando algo apetitoso lhes passa pela frente, zás! E enquanto assim o fazem, obtém algo. Não sei se vocês já se deram conta ou não, mas enquanto estiverem seguindo as regras, obterão algo. Mesmo que nada tenham nem estudem o que quer que seja, na realidade estarão estudando, serão como um peixe que não parece estar se alimentando. Isso é tudo. Vocês deverão estudar o 禅 ZEN desse modo. Compreender algo não significa compreendê-lo com a cabeça.

Page 195: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

195

Se vocês perguntassem a 石頭 SEKITŌ “O que é bom para um estudante 禅 ZEN?”, ele poderia responder-lhes: “Algo que vocês devem fazer é bom e algo que vocês não devem fazer é mau”. Isso é tudo. Nós não cismamos demais sobre o bem ou o mal.

道元 禅師 DŌGEN ZENJI disse: “O poder do ‘não se deve’ é bom.” É algo intuitivo, nossa função mais importante, nossa natureza inata. Nossa natureza inata tem sua própria função, antes que vocês digam “bom” ou “mau”. Algumas vezes algo parece ser bom e outras, mau. É assim que nós compreendemos. Mas nossa natureza inata está mais além da idéia do bem e do mal. Perguntar-se por que praticamos 座禅 ZAZEN se faz tanto calor provoca confusão. Temos de ser como um peixe, sempre nadando pelo rio. Um estudante 禅 ZEN age assim. 道元 禅師 DŌGEN ZENJI disse: “O pássaro não necessita conhecer os limites do céu antes de voar por ele.“ Os pássaros se limitam a voar pelo grande céu. É assim que praticamos 座禅 ZAZEN.

Vocês não devem tentar se atar a qualquer regra. Já sei que são palavras muito rigorosas. Talvez vocês acreditem que não significam grande coisa, mas na realidade quando 石頭 禅師 SEKITŌ ZENJI as diz ele está esperando vocês com um grande bastão. E se vocês disserem algo a ele, ele responderá: “Não se engesse em regras! Não tente compreender as coisas com a cabeça.” Estará esperando-os assim [鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI levanta a vara e se prepara para ministrar um golpe]. Ou seja, não podemos dizer nada. Só: “Ai”! Sim, isso é tudo. E vocês nem sequer precisam dizer “ai!” Vocês devem fazer as coisas como se fossem mulas ou burros.

Talvez vocês acreditem que isto é uma entrega absoluta, mas não é. É a única forma de compreender a fonte do ensinamento. Nós tendemos a nos perguntar o que é a fonte. Não é algo que se possa compreender através de palavras, mas algo que vocês têm quando fazem as coisas com naturalidade e

Page 196: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

196

de forma intuitiva sem dizer “bom” ou “mau”. O tempo avança sem cessar e nós não temos tempo de dizer “bom” ou “mau”. Temos que prosseguir a cada momento no passo do tempo. Devemos avançar com ele. Quando vocês se cansarem de fazer algo, para matar o tempo, pode ser que falem sobre esta ou aquela forma de agir. Mas quando virem que as verduras da horta estão a ponto de murchar por culpa do calor, não terão muito tempo para discutir sobre o que é adequado fazer hoje. Enquanto estiverem discutindo sobre isso, irão ficar cada vez mais irritados. Mas os que trabalham na cozinha haverão de voltar a ela para começar a preparar a comida. Isto é o mais importante.

O que não significa que pensar sobre as coisas seja perda de tempo. É bom falar sobre elas, mas não devemos nos apegar às palavras nem às regras. É uma questão muito delicada. Sem ignorar as regras e sem nos apegarmos a elas, devemos seguir a prática que fazemos em Tassajara. Isto é o que 石頭 SEKITŌ está nos sugerindo.

E em seguida ele diz: 触目道を会せずんば、SOKU MOKU DŌ O ESSE ZUNBA, “Se não for capaz de compreender a Via que tem diante de si”, 足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、ASHI O HAKOBU MO IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN, ” Como poderá reconhecê-la ao caminhar por ela?” A única forma de fazê-lo é usar os cinco órgãos dos sentidos onde quer que você vá, compreendendo ao mesmo tempo a fonte dos ensinamentos. Se não o fizer, mesmo que mova os pés ou pratique, não poderá reconhecer o verdadeiro Caminho. O mais importante não são as regras, mas irem encontrando com seus olhos e ouvidos a verdadeira fonte do ensinamento onde quer que vocês estejam. É a única forma direta para conhecer a fonte do ensinamento, sem pretender estabelecer um caminho especial para vocês. Se vocês se aferrarem às palavras, se não virem o verdadeiro caminho com seus próprios olhos, ouvidos, nariz e língua, se ficarem apegados às regras e ignorarem a direta

Page 197: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

197

experiência da vida cotidiana, mesmo que praticarem 座禅 ZAZEN de nada lhes servirá. O mais importante é ter alguma experiência direta da vida cotidiana sem pensar “臨濟 RINZAI “ ou “曹洞 SŌTŌ”, “esta Via” ou “aquela outra”. É assim como se compreende a verdadeira fonte do ensinamento transmitido pó Buddha. A verdadeira Via poderia ser uma vara. A Via original de Buddha poderia ser uma pedra. Como disse o mestre 雲門 UNMON, poderia ser papel higiênico. Qual é a verdadeira Via? O que é Buddha? Buddha é algo que está mais além de nossa compreensão. Buddha pode ser qualquer coisa. Em vez da palavra “Buddha”, poderíamos dizer “Papel Higiênico” ou “Três libras de cânhamo 57 ”, como disse 洞山 TŌZAN. Se alguém pergunta a vocês: “Quem é Buddha?”, podem responder: “Você também é Buddha.” Se alguém perguntar: “O que é a montanha?”, podem responder: “A montanha também é Buddha.” Em japonês dizemos も又 (も亦) MO MATA: também. Vocês não devem responder apenas: “Isto é Buddha”, porque esta frase pode criar um mal entendido. Mas se disserem: “Isto também é Buddha”, tudo bem. Se alguém perguntar: “Onde está Buddha?”, podem responder: “Buddha também está aqui.” A palavra “também” deixa outras opções. Buddha também pode estar em outro lugar. O segredo de uma perfeita sentença 禅 ZEN é “Nem sempre é assim”. Enquanto vocês estiverem em Tassajara, será nossa norma, mas nem sempre é assim. Não se esqueçam deste ponto. Também é a regra de Buddha. Se a levarem em consideração, não correrão perigo algum nem propiciarão a ocorrência de qualquer mal entendido. É assim que vocês conseguirão se libertar de uma prática egoísta. Mesmo que acreditem estar praticando a Via de Buddha, tenderão a se enredar numa prática 57 Alusão à resposta que 洞山 TŌZAN deu a pergunta “O que é Buddha”, feita por um monge: 麻 三 斤 MASAGIN “Três libras de cânhamo”. Caso nº 18 do 無門關 MUMONKAN de 無門慧開 MUMON EKAI (1183-1260). (N.T.)

Page 198: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

198

egoísta quando disserem: “Deve ser praticado assim”. Sem dúvida vocês têm que dizer: “Esta é a forma de praticar em Tassajara”, mas também devem estar dispostos a aceitar outras formas de praticar. Confiar de uma maneira rigorosa e firme em sua prática e ser suficientemente flexível para aceitar outras formas de praticar não é fácil. Talvez vocês acreditem que estar disposto a aceitar os ensinamentos do outro não é ser rigoroso. Mas enquanto vocês não estiverem dispostos a aceitar a prática do outro, não poderão ser rigorosos o bastante com a vossa. O rigor pode se converter em intransigência. Apenas quando vocês estiverem dispostos a aceitar a opinião dos outros poderão dizer: “Deveria fazê-lo assim!” Quando chegam outras pessoas a Tassajara, podemos observar sua forma de praticar. Do contrário, vocês não poderão ser tão rigorosos consigo mesmos. Normalmente o rigor significa ser rígido, ser cativo da própria compreensão e não deixar espaço para os demais. Se alguém perguntava a meu mestre que opinião ele tinha sobre algum tema, ele sempre respondia: “Se você pede a minha opinião, penso isto” [鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI golpeia a mesa com a vara]. Quando o dizia, respondia rotundamente. E podia ser assim tão rotundo porque dizia: “Se você pede minha opinião...” Ser você mesmo é estar disposto a aceitar também a opinião de outra pessoa. A cada momento vocês devem saber intuitivamente o que é que devem fazer, mas isto não significa que devem rechaçar a opinião dos demais. Na vida cotidiana existe o 道 Tao, o Caminho, e se vocês não o praticarem em meio à atividade cotidiana, não poderão acessar o verdadeiro Caminho. É isso que 石頭 SEKITŌ quer dizer. Não se apeguem às palavras. Não estabeleçam regras para si próprios nem as imponham aos demais, porque cada pessoa tem e deve ter sua própria forma de praticar.

Page 199: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

199

DÉCIMA SEGUNDA PRELEÇÃO

NÃO PASSEM OS DIAS E AS NOITES EM VÃO!

Page 200: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

200

Page 201: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

201

進歩非近遠

歩をすすむれば近遠にあらず、 AYUMI O SUSU MUREBA GON NON NI ARAZU,

A prática nada tem a ver com longe ou perto,

迷隔山河固

迷て山河の固をへだつ、 MAYŌTE SEN GA NO KO O HEDATSU,

Mas se você se confundir, montanhas e rios

obstruirão o seu caminho.

Page 202: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

202

謹白參玄人

謹んで参玄さの人にもうす、 TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU,

Vocês que estudam o mistério, respeitosamente e

com urgência eu os exorto:

光陰莫虚度

光陰虚しく度ることなかれ。 KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE.

Não passem os dias e as noites em vão!

歩をすすむれば近遠にあらず、AYUMI O SUSU MUREBA GON NON NI ARAZU, “A prática nada tem a ver com longe ou perto”. Isto é muito importante. Quando vocês se envolvem numa prática egoísta, fazem-no com a idéia de alcançar algo. Quando se esforçam para alcançar um objetivo ou a Iluminação, abrigam sem dúvida a idéia de: “Estou longe de meu objetivo”, ou “Estou quase o alcançando”. Mas se estiverem realmente praticando a Via, a Iluminação se encontra no lugar em que vocês estão, ainda que talvez isto resulte difícil de ser aceito. Quando vocês praticam 座禅 ZAZEN sem uma idéia de alcançar algo, a Iluminação estará presente.

Page 203: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

203

道元 禅師 DŌGEN ZENJI explicava que numa prática egocêntrica, há Iluminação e há prática: a prática e a Iluminação são eventos que encontraremos em nossa vida. Mas quando compreendemos que a prática e a Iluminação são eventos que aparecem no reino do grande mundo do Dharma, então a Iluminação é um evento que expressa o mundo do Dharma e a prática também é um evento que expressa o mundo do Dharma. Se ambas expressam o grande mundo do Dharma, então neste caso não temos por que nos desanimar se não alcançamos a Iluminação. Nem tampouco temos de nos sentir extremamente felizes se a alcançamos, porque não há diferença alguma entre uma coisa e a outra. A prática e a Iluminação têm o mesmo valor.

Se a Iluminação é importante, a prática também é. Quando compreendemos isto em cada passo que damos a Iluminação está presente. Mas não há por que se excitar com isso. Passo a passo seguimos levando a cabo nossa interminável prática, apreciando o gozo do mundo do Dharma. A prática baseada na Iluminação, a prática mais além de nossa experiência do bom e do mau, mais além da prática egocêntrica, consiste nisto.

Em minha última preleção falei sobre os versos de 石頭 SEKITŌ: 触目道を会せずんば、SOKU MOKU DŌ O ESSE ZUNBA, “Se não for capaz de compreender a Via que tem diante de si”, 足を運ぶもいずくんぞ路を知らん、ASHI O HAKOBU MO IZU KUN ZO MICHI O SHIRAN, ” Como poderá reconhecê-la ao caminhar por ela?” O que quer que vocês vejam, é o 道 Tao. Mesmo que vocês pratiquem, vossa prática não funcionará. Agora 石頭 SEKITŌ diz que se praticarem a Via em seu verdadeiro sentido, não haverá problema algum sobre estar longe da meta ou do ponto de chegada. A prática de um principiante e a de um grande mestre 禅 ZEN não são distintas. Mas se vocês se estabelecerem numa prática egocêntrica, isso é viver num estado de ilusão.

No verso seguinte 石頭 SEKITŌ disse que se praticarem a Via com uma sensação dualista a respeito da prática e da

Page 204: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

204

Iluminação, os obstáculos que se interporão em vosso caminho os afastarão do 道 Tao e serão tão enormes como se vocês tivessem que transpor montanhas e cruzar rios.

Em seguida, 石頭 SEKITŌ diz: 謹んで参玄さの人にもうす、TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU, “Vocês que estudam o mistério, respeitosamente e com urgência eu os exorto:” 光陰虚しく度ることなかれ。KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE. “Não passem os dias e as noites em vão!” 光 KŌ significa neste contexto “raio de sol” e 陰 IN significa “sombra”; 光陰 KŌIN significa portanto “dia e noite” ou “tempo”. 度る WATARU significa “dedicar”ou “passar”. なかれ NAKARE significa “não” e 虚しく MUNASHIKU significa “em vão”. “Não passem os dias e as noites em vão” quer dizer “Não vagabundeiem”.

Ainda que às vezes vocês trabalhem duramente, podem estar desperdiçando seu valioso tempo sem fazer realmente algo. Se vocês não sabem o que estão fazendo, um mestre 禅 ZEN poderia lhes dizer:”Oh, vocês estão desperdiçando o tempo!” E vocês poderiam responder: “Não é verdade, estou me esforçando para acumular dez mil dólares na minha caderneta de poupança”, mas para um mestre 禅 ZEN talvez esta atividade careça de sentido. Mesmo que vocês trabalhem arduamente em Tassajara durante o período de trabalho, nem sempre significa que estejam fazendo o adequado. Se vagabundearem estarão perdendo tempo, e mesmo que estiverem trabalhando arduamente, pode ser que também o estejam desperdiçando. Isto é para vocês uma espécie de 公案 KŌAN.

“Cada dia é um bom dia.”58 Este famoso 公案 KŌAN não significa que vocês não devem se queixar se tiverem algum problema, mas que “Não deixem que o tempo passe em vão”. Eu 58 日 日 是 好 日 NICHI NICHI KORE KOJITSU, caso nº 6 do 碧巖錄 HEKIGANROKU. (N.T.)

Page 205: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

205

acredito que a maioria das pessoas está deixando o tempo passar em vão . Alguém poderia dizer: “Não é bem assim, pois estou sempre me ocupando com algo”, mas esta resposta é sem dúvida um sinal de que a pessoa está desperdiçando o tempo. A maioria das pessoas age com algum propósito, como se soubesse o que está fazendo. Mas mesmo que seja assim, não creio que compreendam adequadamente a atividade a que se dedicam.

Quando vocês realizam algo com um propósito baseado em alguma avaliação daquilo que é útil ou inútil, bom ou mau, mais ou menos valioso, não estão compreendendo perfeitamente nossa atividade. Mas quando realizam as coisas que necessitam fazer sem se importarem se os resultados serão bons ou maus, se serão bem sucedidos ou fracassarão, essa é uma verdadeira prática. Se fizerem as coisas não pelo Buddha, nem pela verdade, nem por vocês mesmos, nem pelos demais, mas pelo simples fato de fazê-las, isso constitui a verdadeira Via. Não posso explicá-lo muito bem. Talvez seja até melhor não falar tanto. Vocês não devem fazer as coisas porque se sentem bem ao fazê-las nem deixar de fazê-las porque ao fazê-las sintam-se mal. Tanto se sentindo bem como mal, há algo que vocês devem fazer. Se vocês não tiverem esta sensação ao fazer algo, não terão começado a seguir a Via no verdadeiro sentido da palavra. Ignoro por que estou em Tassajara: não estou aqui por vocês, nem por mim e nem sequer por Buddha ou pelo Budismo. Simplesmente estou aqui. Mas quando penso que vou embora de Tassajara daqui a três semanas, não me sinto bem. Não sei porque. Não creio que seja só por ter que deixá-los, vocês que são meus alunos. Não há uma pessoa em especial a qual eu estime muito. Não sei porque tenho de estar aqui. E não é porque me sinta apegado a Tassajara. Para o futuro não tenho expectativas sobre se Tassajara se transformará num grande monastério ou sobre o que será do Budismo. Mas não quero

Page 206: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

206

passar minha vida no ar. Quero estar aqui mesmo. Ir com meus próprios pés. A única forma de ir com meus pés quando estou em Tassajara é sentar-me em 座禅 ZAZEN. Por isso estou aqui. Para mim, ir com meus pés e me sentar em meu坐蒲 ZAFU negro é o mais importante. Apenas confio em meus pés e em meu 坐蒲 ZAFU negro. São meus amigos, sempre. Meus pés são sempre meus amigos. Quando estou na cama, a cama é minha amiga; não há Buddha, nem Budismo, nem 座禅 ZAZEN. Se me perguntarem: “O que é o 座 禅 ZAZEN para você?”, eu responderia: “Sentar-me sobre meu 坐蒲 ZAFU negro” ou “Andar com meus pés”. Meu 座禅 ZAZEN é estar neste momento neste lugar. Para mim não há outro 座禅 ZAZEN. Quando realmente vou com meus próprios pés não estou perdido. Para mim o Nirvāna é isto. Não é necessário viajar nem cruzar montanhas ou rios. Como estou aqui mesmo, no mundo do Dharma, não tenho de cruzar montanhas nem rios. É dessa forma que desperdiçamos o tempo. Temos de viver cada momento, sem sacrificar este momento pensando no futuro. Na China, na época de 石頭 SEKITŌ, o Budismo 禅 ZEN era muito polêmico. Sempre havia alguma controvérsia relacionada com os ensinamentos. Havia muitas escolas do 禅 ZEN e elas freqüentemente costumavam se engalfinhar em disputas. E como davam morada à idéias sobre o ensinamento correto e o incorreto, ou sobre o ensinamento tradicional e o herético, esqueciam-se do mais importante: da prática. Por isso 石頭 SEKITŌ disse: “Não passem o tempo em vão.” Não sacrifiquem a prática real por uma prática idealista, almejando alcançar algum tipo de perfeição ou de adquirir a compreensão tradicional ensinada pelo Sexto Patriarca. Os discípulos do Sexto Patriarca compilaram o Sūtra da Plataforma do Sexto Patriarca em distintas versões e cada uma delas asseverava: “Esta versão é a Via do Sexto Patriarca. Os

Page 207: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

207

que não têm esta obra não são descendentes do Sexto Patriarca.” Naquela época prevalecia esta compreensão do 禅 ZEN. Por esta razão 石 頭 SEKITŌ disse: 謹んで参玄さの人にもうす、TSUTSUSHIN DE SANGEN NO HITO NI MŌSU, “Vocês que estudam o mistério, respeitosamente e com urgência eu os exorto:” 光陰虚しく度ることなかれ。KŌ IN MUNA SHIKU WATARU KOTO NAKARE. “Não passem os dias e as noites em vão!” Não cair aprisionado em alguma idéia, em alguma compreensão egoísta da prática ou dos ensinamentos é seguir a prática corretamente. Às vezes isto se chama “A prática de polir telhas”. Normalmente são os espelhos que devem ser polidos. Mas quando alguém se põe a polir uma telha talvez vocês sintam que a pessoa está caçoando de vocês. Mas uma telha ao ser polida brilha. Alguém poderia dizer: “Oh, não é mais que uma telha. Nunca será um espelho!” Esta é a prática dos que se rendem facilmente pensando: “Como não consigo ser um bom estudante 禅 ZEN, deixarei de me sentar em 座禅 ZAZEN”. Não se dão conta que uma telha é valiosa, às vezes até mais valiosa que um espelho. As telhas são muito boas para se construir telhados, da mesma forma que um espelho é importante para podermos nos contemplar nele. A prática de polir telhas é isto. Como vocês já devem saber há uma famosa história sobre 南 嶽 NANGAKU, um discípulo do Sexto Patriarca, e seu discípulo 馬祖 BASO. Um dia, enquanto 馬祖 BASO estava praticando 座禅 ZAZEN, 南嶽 NANGAKU passou por ali e perguntou-lhe: “O que você está fazendo?” “Estou praticando 座禅 ZAZEN.” “E por que o está fazendo?” “Para me converter num Buddha.” “Ah! Muito bom que você deseje se converter num Buddha”, disse 南嶽 NANGAKU, que em seguida pegou uma telha e começou a poli-la, raspando-a contra uma pedra.

Page 208: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

208

Movido pela curiosidade, 馬祖 BASO perguntou: “O que você está fazendo?” “Estou polindo a telha, pois quero fazer dela um espelho.” 馬 祖 BASO perguntou-lhe se isso era possível e 南嶽 NANGAKU respondeu: “Você disse que está praticando 座禅 ZAZEN para se converter num Buddha, mas um Buddha nem sempre é alguém que alcança a Iluminação. Todo mundo é um Buddha, tenha alcançado ou não a Iluminação.” 馬祖 BASO então lhe disse: “Quero me converter num Buddha através da prática de se sentar”. 南嶽 NANGAKU lhe respondeu: “Você fala da prática de se sentar, mas sentar-se nem sempre é praticar 座 禅 ZAZEN. Faça o que fizer, será 座禅 ZAZEN.” 馬祖 BASO sentiu-se confuso: “Qual é então a prática adequada?” 南嶽 NANGAKU respondeu: “Se uma charrete não anda, qual é a melhor maneira de fazê-la avançar, segurar a charrete ou o cavalo?” 馬祖 BASO não soube o que responder porque ainda seguia praticando com a idéia de obter algo. 南嶽 NANGAKU continuou com sua explicação. Não posso me estender aos detalhes, mas em resumo foi isto o que disse: “Pretender averiguar o que é o mais adequado – segurar o cavalo ou a charrete – é um erro, porque a charrete e o cavalo não são duas coisas distintas, mas uma só.” A prática e a Iluminação são uma só coisa, da mesma forma que o cavalo e a charrete. Na realidade se vocês fizerem uma verdadeira prática física, ela também é a Iluminação. Em nossa tradição a prática baseada na Iluminação chama-se “a prática real sem fim” e a Iluminação que se inicia com a prática e é uma

Page 209: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

209

com ela se denomina “a Iluminação sem início”. Se alguém começa a praticar, a Iluminação está presente, e onde haja Iluminação haverá também a prática. Sem prática não há Iluminação. Se no lugar onde agora vocês estão vocês não estiverem conscientes de sua postura, não estarão praticando a Via. Se vocês sacrificarem esta prática presente por alguma recompensa futura, estarão perdendo tempo. Não será a verdadeira prática. 石頭 SEKITŌ foi também um discípulo direto do Sexto Patriarca e conhecia muito bem a prática deste. Quando 荷澤 神會 KATAKU JINNE e seus discípulos começaram a criticar a Escola do Norte de 神秀 JINSHŪ, 石頭 SEKITŌ não gostou que se apegassem à uma idéia sem compreender na realidade o que era a prática. Cinco séculos mais tarde, 道元 禅師 DŌGEN ZENJI continuaria difundindo a compreensão de 石頭 SEKITŌ no Japão. Não só a desenvolveu de maneira lógica, mas além disso o fez de uma forma mais ampla e poética, e com mais sentimento, com sua tenaz mente racional. Há quem diga que o 參同会 SANDŌKAI não é um bom poema porque é filosófico demais. Talvez seja assim quando não se compreende as entrelinhas dos ensinamentos de 石頭 SEKITŌ ou quando sua mente não penetra em suas palavras. Na nossa tradição dizemos que: “Devemos ler o reverso do papel”, não só os caracteres impressos, mas o outro lado da página. É importante compreender o 參同会 SANDŌKAI de 石頭 SEKITŌ deste modo.

Page 210: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

210

DIÁLOGO

ESTUDANTE: Tendo em vista o que foi dito, não consigo

compreender os votos. Se não existem seres, por que prometemos salvá-los59 ? Parece uma grande zombaria.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Parece uma zombaria para você

porque sua prática está sempre confinada no reino do: “Por que praticamos 座禅 ZAZEN? Que significado isso tem?” Na realidade, sua prática é muito boa. E por que é tão boa? Não consigo entender. [risos]

ESTUDANTE: Para mim não me parece tão boa. 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: De todo o modo, você a está

fazendo bem. Minha preleção pode ser que sirva como um incentivo [risos]. Talvez seja melhor para você não escutar minhas preleções e limitar-se a praticar 座禅 ZAZEN.

ESTUDANTE: Fazer 座禅 ZAZEN não me incomoda, mas

não gosto de prometer coisas que não entendo.

59 No Budismo japonês, os três votos fundamentais, 戒 KAI, estão limitados a três: 1. 攝 律儀 戒 SHŌ RITSUGI KAI (samvara-shīla, em sânscrito), o preceito que recomenda evitar as más ações; 2. 攝 善法 戒 SHŌ ZENHŌ KAI (kushala-dharma-samgrāhaka-shīla): praticar as boas ações; 3. 攝 衆生 戒 SHŌ SHUJŌ KAI (sattvârtha-kriyā-shīla): ajudar todos os seres. (N.T.)

Page 211: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

211

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Se existem inumeráveis seres ou se os desejos são infinitos, você não pode dizer: “Faço o voto de salvá-los”, porque nossa promessa seria muito estúpida. Não teria sentido algum. Estou de acordo contigo. Mas de qualquer forma, continuamos fazendo este voto. Por que? Porque se não trabalharmos pelos demais, não nos sentiríamos bem. Mesmo que façamos os quatro votos 60 , na realidade eles significam muito mais que isso. Fazemos quatro porque fica mais prático. Mas eu me sinto realmente afortunado que existam infinitos desejos e inumeráveis seres para serem salvos, e também que seja quase impossível salvar cada um deles no sentido de dizer: “Eu te salvo”. Ninguém pode ser salvo desta maneira. A questão não é se é possível salvá-los ou não, ou se é um budista, um Bodhisattva, o Hīnayāna ou o Mahāyanā aquele que vai fazê-lo, mas sim que o nosso voto é: “Vou fazê-lo de qualquer forma”.

ESTUDANTE: Quando prometo algo, isso tem de ter algum

significado. Se não tem não posso prometer.

60 Trata-se do 四弘 誓願 文 SHIGU SEIGAN MON, Os Quatro Votos:

衆 生 無 邊 誓 願 度、 SHU JŌ MU HEN SEI GAN DO,

Seres são inumeráveis. Faço o voto de salvá-los;

煩悩無儘誓願斷、 BONNŌ MU JIN SEI GAN DAN,

Desejos são inexauríveis. Faço o voto de extingui-los;

法門無量誓願學、 HŌ MON MU RYŌ SEI GAN GAKU,

Portais do Dharma são ilimitados. Faço o voto de apreendê-los;

佛道無上誓願成。 BUTSU DŌ MU JŌ SEI GAN JŌ.

O Caminho de Buddha é o mais elevado. Faço o voto de realizá-lo. (N.T.)

Page 212: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

212

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Não pode por culpa de sua arrogância.

ESTUDANTE: Não sei, talvez você tenha razão, mas... 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Agora você está chorando. Mas

mesmo que esteja chorando, este pranto não tem sentido, porque o esforço que você está fazendo continua se baseando numa prática egoísta. Não se separe de você mesmo. Você deve sofrer e lutar mais consigo. Na realidade não há alguém com quem lutar nem algo a ser enfrentado. Lute com sua prática egoísta até abandoná-la. Para um verdadeiro estudante isto é o mais importante. Um verdadeiro estudante não se engana. Não deseja se enganar com os ensinamentos, com o 座禅 ZAZEN, nem com qualquer outra coisa. É assim que deve ser. Não se engane com o que quer que seja.

ESTUDANTE: E o que eu vou fazer no final das preleções,

quando cantarmos os Quatro Votos? Todos os cantarão e eu seguirei sem acreditar neles.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Você não deve acreditar neles

ao pé da letra. Como vários mestres e numerosos discípulos os recitam, você também deve fazê-lo. Se eles estão se enganando, você também deve se enganar, deve se enganar junto com todos os seres. Que não possa fazê-lo significa que você quer ser especial. E isso é bom. É o espírito que deve nos animar, mas a Via não é isso. Minha resposta é muito fria. Não posso ser complacente com sua prática. Talvez algum grande mestre te dê uma guloseima. Caso seja isso o que você deseja, vá buscá-la.

Page 213: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

213

ESTUDANTE: Não é isso, 老師 RŌSHI. Talvez seja em parte, mas continuo sem entender. Não me sinto bem ao recitar os votos. Mesmo que o mundo inteiro esteja se enganando, se há algo que não entendo ou em que não acredito...

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Você não entende. Vê várias

cores, mas quantas cores você pode ver com seus olhos? Quantas coisas você pode compreender com sua pequena mente? Você tem que conhecer os limites de sua mente racional. Sua mente racional só funciona de uma forma dualista. E esta classe de realidade não pode ser explicada com palavras. Mas quando você se apega às minhas palavras, ou às escrituras, você acredita que as escrituras deveriam ser não só perfeitas, mas convincentes. Você acredita dessa forma, mas tenho que confessar a você que o que eu digo nem sempre é correto, nem sempre é certo. Estou sugerindo algo mais que isto. Não só Buddha, mas Confúcio também disse: “Se alguém quiser enganá-los, vocês devem se deixar enganar”. Isto é muito importante.

ESTUDANTE: Ainda que a prática seja muito mais que as

palavras, no pequeno mundo das palavras não me sinto forte o bastante para ser incoerente. Se eu lhe digo: “Não estou vendo esta lâmpada, 老師 RŌSHI”, sinto algo extraordinário em meu interior e às vezes, ao recitar os Votos tenho a mesma sensação. Penso: “De acordo, prometo salvar todos os seres”, mas então sinto uma dúvida em meu interior...

鈴 木 老 師 SUZUKI RŌSHI: Sim, compreendo. Nós,

sacerdotes 禅 ZEN, quando encontramos outro sacerdote sempre unimos as palmas das mãos e nos saudamos com uma reverência. Em Tassajara, quantas vezes você uniu as palmas das mãos? Quando eu era jovem, não gostava de fazê-lo. Sentia como se estivesse fingindo e não gostava. Mas como tinha que

Page 214: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

214

fazê-lo, eu o fazia, isso é tudo. Mas agora eu compreendo o estúpido que sou. Já não tenho a mesma energia como antes. A verdade é a verdade, e agora não posso estar de acordo contigo. Na verdade, se eu tivesse a mesma idade que você pensaria igual e poderíamos ser grandes amigos, mas agora eu não sou seu amigo.

ESTUDANTE: 老師 RŌSHI, você acredita que temos alguma

escolha? Por exemplo, estou em Tassajara porque escolhi estar aqui ou apenas estou em Tassajara e só?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Sua natureza de Buddha levou-o

a Tassajara. Não acredito que tenha podido escolher por completo vir aqui. Talvez o tenha feito em vinte ou trinta por cento. Mas a razão principal pela qual você está aqui está mais além de sua própria escolha. Se agora estamos ouvindo os ensinamentos de Buddha é porque no passado já os havíamos estudado. A sabedoria busca a sabedoria e agora estamos escutando os ensinamentos que escutamos de mestres em nossas existências passadas. 道元 DŌGEN já o dizia. Mesmo que você sinta que todo o seu corpo está lhe dizendo: “Acredito que tenha escolhido com cem por cento de certeza”, esta parte que agora parece responder por todo o seu ser é tão somente uma pequena, uma pequeníssima parte de você. Na verdade, não deveria explicá-lo a você da maneira tradicional.

ESTUDANTE: Então, se hei de me converter num Buddha,

até que ponto posso influir nisso? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Em primeiro lugar, trate de se

esquecer de você mesmo e confie em sua verdadeira voz, em sua voz silenciosa, em sua voz não verbal. Em nossa tradição dizemos: “Escute o ensinamento mudo”, não escute minhas palavras. Pense nisso.

Page 215: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

215

ESTUDANTE: De quem é a voz que escutamos? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: É a sua voz e a voz de Buddha.

É isso que o 參同会 SANDŌKAI está falando. Às vezes você acredita que é a sua voz, mas é a voz de Buddha. Acredita que vem de um sentimento que só leva em conta um lado da realidade. Acredita estar aqui, ser Joe ou Mary, mas na realidade não é assim, em absoluto. Eu creio ser 鈴木 SUZUKI, mas se alguém me chama pelo meu nome, eu me sinto esquisito. “Oh, este é 鈴木 SUZUKI?” Minha primeira reação seria dizer: “Não, não sou 鈴木 SUZUKI.

ESTUDANTE: 老 師 RŌSHI, posso unir as mãos em

合掌 GASSHŌ e alguém ao ver meu gesto dizer: “Oh, isso é um bom 合掌 GASSHŌ!”, mas na verdade eu o estou fazendo com um coração frio.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: A questão não é fazê-lo com um

coração frio ou um coração caloroso. ESTUDANTE: Mesmo assim continuaria a ser um bom

合掌 GASSHŌ? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Seria perfeito!

Page 216: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

216

Page 217: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

217

PRELEÇÃO OFERECIDA

A UM GRUPO DE VISITANTES

Não somos mais que uma diminuta partícula do grande Ser. Preleção adicional sobre o espírito geral do 參同会 SANDŌKAI oferecida aos estudantes de Tassajara e a um grupo de visitantes composto de estudantes de filosofia. O objetivo do estudo do Budismo é obter uma perfeita compreensão das coisas, compreender a nós mesmos e o que estamos fazendo em nossa vida cotidiana. Também é necessário compreender por que sofremos e por que temos tantos conflitos com nossa família, com a sociedade e com nós mesmos, ou seja, compreender o que está ocorrendo no reino objetivo e no reino subjetivo. Quando vemos “as coisas tal como é”, se somos conscientes do que estamos fazendo e temos uma boa compreensão delas, sabemos o que é que temos de fazer. O estudo intelectual do Budismo - que inclui tanto o estudo dualista como o não dualista - fundamenta-se nisto. Também é necessário ter alguma experiência real da Via Budista. O estudo

Page 218: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

218

e a prática são distintos um do outro; ainda que vocês tenham uma boa compreensão, se não a colocarem em prática, ela não lhes servirá para o que quer que seja.

Agora estamos estudando o poema 參同会 SANDŌKAI – uma espécie de escritura – composto por um grande mestre chinês do 禅 ZEN. Numa de minhas preleções anteriores, expliquei-lhes o significado de escuridão e luz. A escuridão significa algo que não podemos ver ou sobre o que não podemos pensar, algo mais além de nossa compreensão intelectual. Na maior escuridão ignoramos o que está ocorrendo. Quando vocês se encontram num lugar escuro, podem ter medo. Esta sala agora está bastante escura, mas vocês ainda podem distinguir as coisas. Se não houvesse luz, nada veriam, mas isto não significa que nela nada houvesse. Continuaria havendo muitas coisas, apenas vocês não poderiam vê-las, isso é tudo. A “escuridão” significa portanto algo que está além de nossa compreensão. E a “claridade” significa algo que se pode compreender em termos de bom e de mau, de quadrado ou redondo, de vermelho ou branco. A “claridade” significa os múltiplos fenômenos e a “escuridão”, o único Ser no qual os múltiplos fenômenos existem. Ainda que existam muitos fenômenos, incluindo a lua e as estrelas, tudo é tão imenso que não somos mais que uma diminuta partícula do grande Ser.

A “escuridão” significa algo que contém tudo. Vocês não podem sair dela. Onde quer que vocês se dirijam, a escuridão abarcará este lugar. A maior escuridão é um Ser imenso, descomunal, onde cada fenômeno pode ser reconhecido, porque comparado com este grande Ser tudo o mais é sumamente pequeno. Isto não significa que nada exista, mas que os múltiplos fenômenos existem em um único e grande Ser. Entretanto, qualquer estudo que levemos a cabo sempre tem lugar no reino da claridade. Diferenciamos as coisas dizendo “isto é bom ou mau, agradável ou desagradável, correto ou incorreto, grande ou pequeno, redondo ou quadrado”. Qualquer coisa que vocês relacionem aparece na claridade do mundo dualista. Mas para

Page 219: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

219

nós é necessário conhecer a escuridão, onde nada há para se ver, nada há para se pensar. E a única maneira de experimentá-la é com a prática de 座禅 ZAZEN. Enquanto escutamos as preleções ou refletimos sobre elas, ou enquanto falamos sobre os ensinamentos, não podemos estudar o que a escuridão é realmente. Eu não posso falar dela, mas posso falar de algo que possamos compreender, de algo que possa animá-los a praticar 座禅 ZAZEN e os leve a experimentar a escuridão.

A escuridão às vezes é chamada de “nada” ou “vacuidade”, em contraposição a “algo”. Em nossa tradição às vezes dizemos “não-mente”61. Quando vocês estão na maior escuridão, em nada pensam.

Creio que acabei indo longe demais [risos], é melhor que volte para algum lugar, uma sala iluminada. Aqui é escuro demais para ver o rosto de cada um de vocês e o tipo de problema que cada um tem. Creio que devo retornar a nossos problemas cotidianos.

Ainda há pouco estava falando com um estudante sobre a relação que mantenho com minha mulher. Ainda que me queixe freqüentemente, não creio que pudesse viver sem ela. Se posso ser sincero, isso é o que na verdade sinto. Aqui em Tassajara aprendi uma expressão muito interessante: “Um marido dominado por sua mulher”. Este tipo de marido não pode nem sequer levanta a cabeça, porque sua mulher sempre está lhe fazendo baixar a crista. Mesmo assim, ele precisa dela. Algumas vezes sente que é impossível viver com ela e seria melhor se divorciar. Mas outras vezes pensa “Oh! Mas eu não posso viver sem ela. O que devo fazer?”

É um problema que temos no mundo da claridade. Quando a lâmpada está acesa posso ver-me e à minha mulher, e quando não há lâmpada alguma não há problema algum. Mas nós não pensamos sobre a escuridão. Sempre estamos sofrendo por causa da vida que podemos ver com os olhos e ouvir com os

61 無心 MUSHIN, em japonês. (N. T.)

Page 220: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

220

ouvidos. Isso é o que fazemos. No mundo da claridade é difícil viver sem os demais e também o é viver com eles. Este é o problema que temos. O que devemos fazer? Mas se vocês tiverem a mais ligeira compreensão da escuridão, que é a outra face da claridade, descobrirão como viver na claridade do mundo.

Na claridade vocês verão algo bom ou mau, ou correto e incorreto. Neste mundo da diferenciação, as coisas existem com formas distintas e cores, e, ao mesmo tempo, podemos perceber a igualdade de tudo. A única oportunidade que temos para sermos iguais é sermos conscientes do mundo da forma e da cor e respeitá-lo. Apenas quando vocês se respeitarem como as pessoas cultas ou ignorantes que são, é que descobrirão a autêntica igualdade.

Acreditamos que a igualdade significa compartilhar algo eqüitativamente com todo o mundo. Mas isso é impossível. Não é mais que um sonho. Por exemplo, se compartilhamos eqüitativamente nossa comida com os demais, alguns ficariam satisfeitos e outros, não; é impossível compartilhar as coisas eqüitativamente. Da mesma forma, nem todo mundo tem a mesma responsabilidade, o mesmo saber ou o mesmo compromisso. Somente quando compreendemos e respeitamos nossa própria capacidade, nossa própria força física, nossa natureza como homem ou como mulher e nosso próprio caráter ou natureza, é que podemos ser cada um de nós igual aos demais.

Esta igualdade se diferencia um pouco do que se costuma compreender por igualdade. Aqui há uma taça com água. A água e a taça não são iguais: a água é água e a taça é uma taça. Mesmo que a água queira ser uma taça, não o pode , e o mesmo se passa com a taça. A taça deve ser uma taça e a água deve ser água. Quando a água está numa taça ela cumpre sua finalidade e a taça, também. Uma taça sem água ou a água sem uma taça não têm sentido algum para nós. Quando a água é água e a taça, é taça, e a taça e a água mantém uma relação, tornam-se interdependentes; a água terá seu próprio valor e a

Page 221: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

221

taça, também. É neste sentido que dizemos que a taça e a água são iguais.

Se vocês acreditam que a liberdade é ignorar as regras e agir como lhes aprouver, não será mais que um sonho, uma ilusão. Na realidade a liberdade não existe deste modo e não devemos nos esforçar inutilmente tentando agarrar uma nuvem. A forma de resolver uma dificuldade é compreendermos bem a nós mesmos. Temos que saber o que estamos fazendo, o que é possível e o que não o é. E além disso, temos que ser muito realistas, pois se não, nada do que fizermos funcionará. Já o fato de que vocês gostem de sonhar acordados é outra coisa muito distinta. Às vezes é bom pensar em algo impossível, sonhar com algo maravilhoso. O importante é aproveitar como se fosse um filme. Vocês se sentem como se fossem estrelas do cinema. Isso é bom, mas não pode ser nossa última meta na vida. Temos de reconhecer o que é uma ilusão e o que é a realidade. Quando estamos fazendo sinceramente uma boa prática, não temos que sonhar com algo impossível, mas trabalhar por algo que se possa alcançar.

A outra face da diferenciação é a igualdade. Como as coisas são diferentes, existe a igualdade. Quando vocês compreendem a igualdade dos homens e mulheres no verdadeiro sentido da palavra, já não terão mais problemas. Poderão dizer “Não posso viver sem ela”. Quando se sentirem desta forma, não saberão quem é ela nem quem são vocês. Mas quando compreenderem que ela é importante porque ela é quem é, estarão compreendendo sua natureza. Se um marido é mais idealista que realista e pensa fazer algo que parece impossível ignorando o que pode vir a lhe ocorrer, sua mulher pode lhe dizer “Oh! Não faça isso! É cedo demais. Espera, espera um pouco” [risos]. Se ela diz isto, ele pode pensar “Oh! Tenho que fazê-lo agora mesmo!” E então se queixará dizendo “Não posso viver com ela” [risos]. Mas esta é a natureza de sua mulher. Um homem precipitado e despreocupado pode se beneficiar muito tendo uma mulher cuidadosa e mais conservadora. Às vezes pode ser que

Page 222: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

222

ela fique brava com ele, mas essa é também sua natureza. Quando ele disse “Não posso viver com ela”, há algo que ele não está compreendendo completamente.

Outro dia disse que o caractere chinês “humano” se compunha de dois traços apoiando-se entre si (人). Um homem e uma mulher, ou o mestre e o discípulo, são assim. Sem um mestre, não há discípulo, e sem um discípulo, não há mestre. Quando o mestre e o discípulo existem como os dois traços deste caractere, apoiando-se entre si, há um monastério. Tudo existe desse modo. “Eu não posso existir sem ela ou sem ele” é o correto. Quando vocês não compreendem a outra face de cada evento ou coisa isto lhes cria muitas dificuldades. A outra face do mau será o bom; esta é a realidade.

A outra cara da escuridão é a claridade. Vocês podem dizer que esta sala está escura, mas nela há mais luz do que no sótão. E inclusive no sótão há mais luz do que numa gruta da montanha. Na realidade não se pode dizer que a sala está iluminada ou escura. A luz ou a escuridão somente estão em suas mentes, de fato não há luz nem escuridão. No entanto, como precisamos de modelos, de regras ou de meios para nos comunicar, dizemos que algo é bom ou mau, agradável ou desagradável. Mas não são mais que palavras. Não devemos cair prisioneiros delas. Quando suas namoradas lhes dizem “Você não me quer”, vocês podem tomar estas palavras ao pé da letra. Mas na verdade ela está dizendo o contrário. Como ela os quer tanto, às vezes pensa “Eu te odeio”, mas na verdade, não é assim. Se vocês se aferrarem às palavras sem observar as coisas de ambos os lados, não saberão o que deverão fazer.

Temos somente os olhos abertos para o exterior e não podemos ver nosso interior. Por isso, tendemos a nos interessar pela prática ou pela vida de outra pessoa e a sermos muito críticos com relação a ela. Ainda que pensemos na prática que deveríamos realizar, não podemos encontrar nosso próprio caminho porque nossos olhos apenas percebem o exterior. Quando vocês dizem “Qual o caminho que eu devo tomar?”, o

Page 223: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

223

“eu” está aqui e o “caminho” está ali, e além disso, vocês não compreendem a natureza desse seu “eu”. E como não conhecem esse “eu”, são uns desconhecidos para vocês mesmos. Assim é que criticam a vocês mesmos e aos demais. E isso é terrível! Vocês não podem existir neste mundo por culpa de suas duras críticas. Criticar os demais é muito fácil. Criticar-se já custa um pouco mais, por que ao fazê-lo a pessoa se sente mal, mas de todos os modos vocês o continuam fazendo e sofrem por isso. Estamos o fazendo diariamente. Vocês sofrem porque não compreendem de todo o que estão fazendo.

Segundo a compreensão budista, as coisas que parecem existir fora, na realidade existem dentro de nós. Quando vocês pensam “Ele não é bom”, de fato estão criticando algo de seu interior. “Ele” é uma imagem de vocês mesmos. Esta é a compreensão da grande Mente que a tudo inclui. As coisas apenas estão acontecendo em seu interior, são atividades da vida que estão dentro de vocês, são como seus estômagos digerindo as coisas. Sua mente pode pensar “Aqui está meu coração e aqui, minha barriga”, sem ser consciente da relação que existe entre ambos. Talvez vocês acreditem que com uma operação se pode abrir a barriga sem se afetar o coração. Mas na realidade não é assim. O coração e a barriga estão intimamente relacionados e, se a barriga se fortalece, o coração pode melhorar. Nem sempre é necessário se proceder a uma importante cirurgia cardíaca. Quando vocês compreenderem que as coisas estão intimamente ligadas, já não será necessário dizer “barriga” ou “coração”. O fato de se gozar de boa saúde não significa necessariamente que vocês sabem o que está acontecendo com seu corpo físico. Do mesmo modo, quando sua vida é saudável e boa, não é necessário falar sobre ele, sobre ela, ou sobre si mesmo.

Este tipo de harmoniosa vida interior se obtém através da prática. Falar sobre as coisas é como dispor a comida num prato. A cada manhã nossos estudantes colocam maravilhosamente a comida em cada prato. Mas por sorte ou por desgraça, quando

Page 224: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

224

eu mastigo a comida ela se mistura na minha boca e apenas sinto o seu sabor, já não há cor, nem beleza, nem sal de gergelim ou arroz integral. E quando ela chega a barriga, fica ainda mais misturada. Já nem sequer a reconheceria. Quando as coisas estão em plena atividade, não há qualquer idéia de bom ou mau, de isto ou aquilo. É bom ver a comida colocada em vários pratos. É bom pensar sobre a comida, a vida, ou a natureza do homem e da mulher. Mas, ainda que vocês pensem nessas coisas, se não as provarem em suas vidas, não significará muito. Se não as mastigarem, misturarem e engolirem-nas, suas vidas não terão grande sentido.

Estudamos o Budismo desta maneira, da mesma forma que colocamos a comida em diversos pratos e apreciamos suas formas e cores. Mas no final temos de comê-las e então não haverá ensinamento algum. Quando realmente a comemos, não há mestre nem discípulo, não há Buddha nem Cristo.

Nossa prática consiste em como comer. Somos afortunados, por que ainda que mastiguemos as coisas e as misturemos, também sabemos analisá-las de varias formas e sabemos o que estamos fazendo. Analisar sua psicologia ou sua prática é importante, mas isso não é mais que a sombra de sua prática e não a prática em si mesma.

Temos que seguir praticando desse modo, colocando os distintos elementos cuidadosamente no prato, misturando-os, mastigando-os e analisando-os para vermos o que está ocorrendo. “O que estou fazendo?” Assim, ao analisarmos na claridade e ao misturarmos tudo numa sala às escuras, uma e outra vez, iremos realizando nossa prática, interminavelmente. No final do 參同会 SANDŌKAI, 石頭 SEKITŌ diz que se avançarmos desta forma, passo a passo, não se tratará mais de uma questão de se estamos empreendendo uma viagem de um ou de mil quilômetros. Neste caso, não há Iluminação nem há ignorância, porque avançamos, e avançamos e seguimos avançando, seguindo sempre o Caminho de Buddha. Mas se vocês deixarem de trabalhar e se apegarem à idéia de bom ou de

Page 225: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

225

mau, terão problemas, será como ter de cruzar um grande rio ou uma elevada montanha. E serão vocês que criarão o rio e a montanha, já que na realidade estes não existem. Quando vocês se analisarem, quando se criticarem, estarão hospedando alguma idéia em especial sobre vocês mesmos e com relação a se são bons ou maus e então acreditarão ser aquilo. Na realidade isso não é certo, mas é assim que vocês criam os problemas. Estamos fazendo isso continuamente.

DIÁLOGO ESTUDANTE: Você disse que o 座禅 ZAZEN pertence à

escuridão e escutar uma preleção, à claridade. Se alguém escuta uma preleção com uma boa compreensão, estará então fazendo座禅 ZAZEN, não está certo?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: O 參同会 SANDŌKAI diz que

ainda que alguém reconheça a verdade, isso não é a Iluminação. Mas as preleções infundirão em vocês alento e saberão então por que praticar 座禅 ZAZEN. Vocês colocam as coisas de acordo com a minha receita budista e estão cozinhando algo em Tassajara. Como estão sentados frente a seus pratos devem comer aquilo que cozinharam. O “como comem” é a prática do 座禅 ZAZEN. Como esta comida foi preparada por praticantes do座禅 ZAZEN, quando for ingerida irá ajudá-los em sua prática.

ESTUDANTE: Você disse que o 座禅 ZAZEN pertence à

escuridão e as preleções, à claridade, e também que 理 RI é o escuro e 事 JI, o claro, mas gostaria de saber se realmente eles podem ser separados assim.

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: É uma boa pergunta. A propósito,

estamos separando coisas que são inseparáveis. São como as

Page 226: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

226

duas faces de uma moeda: esta face é a claridade e a outra, a escuridão. Eu estou falando da parte clara e vocês enxergarão através de sua prática a outra face. Então poderão fazer uma idéia completa do 參同会 SANDŌKAI; isso é a realidade. Pensar que através da vossa prática poderão compreender algo que é totalmente distinto desta parte clara é um grande erro.

ESTUDANTE: Eu me pergunto por que falar de uma face ou

da outra. Por acaso é impossível falar das duas faces ao mesmo tempo?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: É impossível falar das duas

faces ao mesmo tempo porque sempre que alguém falar de algo, estará falando da face clara. Não é possível falar da outra face. Mas como tenho alguma experiência ou compreensão da outra face, posso falar sobre a parte clara. Se não tivesse experiência alguma da outra face, o que eu estou dizendo a vocês não teria sentido algum. Por mais bela que fosse minha descrição, esta parte clara não seria mais que um veneno para vocês. Esta face é muito distinta da outra e é impossível misturá-las ou uni-las. Mas algo que não esteja de acordo com a outra face é pernicioso. Um ensinamento pode parecer muito bonito, mas se não está de acordo com a outra face, se a ignora, será como o ópio.

ESTUDANTE: antes das preleções entoamos “Um Dharma

insuperável, penetrante e perfeito... ” 62. Eu me pergunto como uma preleção pode penetrar na escuridão. Como uma preleção

62 Antes da leitura ou do ensinamento formal do Dharma, entoa-se o seguinte: “O Dharma, incomparavelmente profundo e infinitamente sutil, raramente é revelado, mesmo em centenas de milhões de anos. Agora podemos vê-lo, ouvi-lo, compreendê-lo. Que possamos completamente clarificar o verdadeiro significado dos ensinamentos do Tathāgata”. (N.T.)

Page 227: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

227

nos ensina? Como pode ser algo separado da claridade? Como pode ser 座禅 ZAZEN e o que é um 提唱 TEISHŌ?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Um 提唱 TEISHŌ infunde alento

a vocês, não é só para falar de algo, mas para lhes fazer algumas sugestões e para ajudá-los a ter uma boa compreensão de vossa prática. As palavras de um 提唱 TEISHŌ devem proceder de uma experiência verdadeira... – não deveria me atrever a dizê-lo – de uma verdadeira experiência da Iluminação. São palavras maiores. A verdadeira experiência da realidade é um 提唱 TEISHŌ. As palavras de um 提唱 TEISHŌ não devem estar mortas, não devem ser algo que estudamos ou lemos num livro. Esta é a diferença que há entre um 提唱 TEISHŌ e uma simples preleção. Falando com propriedade, as preleções oferecem um certo conhecimento sobre algo, em contrapartida, um 提唱 TEISHŌ ajuda vocês na prática verdadeira e Iluminação. Um 提唱 TEISHŌ impele vocês a realizar uma verdadeira prática. “Aqui há algo que vocês devem ter como budistas. Contemplem-no!”. Isto é um 提唱 TEISHŌ. Nele deve haver algo real para ser dito. Ler este livro [eleva um livro sobre a cabeça], inclusive memorizá-lo, não é um 提唱 TEISHŌ. Um 提唱 TEISHŌ é algo que surge do interior, do fundo do coração. Como devo usar palavras, devo seguir a lógica e usar alguns termos filosóficos técnicos e especiais. Mas às vezes se pode falar sobre a realidade diretamente, ignorando estes termos. E às vezes pode-se inclusive falar dela sem palavras [dá um golpe na mesa]. Isto é um 提唱 TEISHŌ. Falar de algo sobre o que é impossível se falar é um 提唱 TEISHŌ. Perdoe-me. Não posso explicá-lo muito bem.

ESTUDANTE: Você disse que suas preleções sobre o

參 同 会 SANDŌKAI nos darão alguma compreensão. Mas também disse que é impossível compreender a face clara a não ser que se compreenda a face escura, a não ser que pratiquemos

Page 228: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

228

um bom 座禅 ZAZEN. Suas preleções não são mais que meios hábeis?

鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: como sei que vocês vão se

apegar às minhas palavras, depois da palestra eu as esqueço. Não são mais do que algo intelectual. Vocês devem se esquecer do que eu disse e captar o verdadeiro significado das minhas palavras.

ESTUDANTE: As preleções dadas aos estudantes são um

meio hábil de Buddha? 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI: Assim deveria ser, sejamos

budistas ou não. Mas nós budistas sabemos que se nos apegarmos às palavras estas nos escravizarão e apenas compreenderemos uma pequena parte do que foi falado. Quando vocês ficam interessados por algo que eu tenha apontado com este dedo, seria melhor eu cortá-lo fora para vocês deixarem de se apegar a ele. Nós [os mestres] explicamos como cozinhar num livro de receitas, mas na realidade o que fazemos é cortar as verduras, salgá-las e fervê-las. Enquanto vocês estiverem dependentes do que está escrito no livro de receitas, pode ser que seja necessário muito tempo antes que consigam realmente cozinhar! Vocês apenas serão bons cozinheiros quando puderem se esquecer do livro de receitas. É sempre melhor estudar vendo como alguém cozinha. É a melhor maneira.

Um 提唱 TEISHŌ é dar algo diretamente. Normalmente vocês escutam um 提唱 TEISHŌ com a atitude de pensar se é bom ou mau. Perguntam-se “Do que é que ele está falando? Se for bom eu o aceitarei e se for mau não o farei”. Mas este pensamento é supérfluo. Vocês não devem ser tão meticulosos. Se vocês se limitarem apenas a escutá-lo, nem sequer necessitarão compreendê-lo. Se não o compreenderem, tudo bem; e se o compreenderem, melhor ainda, isso é tudo. Não

Page 229: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

229

deve haver qualquer intenção especial ao escutá-lo. Um 提唱 TEISHŌ se recebe simplesmente escutando. É diferente de estudar algo.

Como vossa mente funciona logicamente, devo ser lógico. Se vocês não fossem assim tão lógicos, poderia dizer o que quisesse. Poderia inclusive cantar uma canção para vocês.

參同会

SANDŌKAI

Page 230: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

230

Page 231: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

231

A UNIDADE DO UNO E DO MÚLTIPLO

A mente do grande sábio da Índia,

foi intimamente transmitida de Oeste para Leste. Ainda que as pessoas distingam o tolo do inteligente,

No fundo não há Patriarcas do Norte nem Patriarcas do Sul. A verdadeira fonte é pura e imaculada,

Os afluentes fluem na escuridão. Aferrar-se aos fenômenos é uma ilusão.

Reconhecer a verdade nem sempre é a Iluminação. As cinco portas dos sentidos e os cinco objetos sensoriais

são interdependentes e ao mesmo tempo absolutamente independentes;

ainda que estejam se relacionando sem cessar, cada fenômeno se mantém em seu próprio lugar.

Os fenômenos têm diversas naturezas, diversas formas. Os sabores, sons e sensações podem ser

prazerosos ou desagradáveis. O superior e o inferior não se diferenciam na escuridão, A dualidade do puro e do impuro é aparente sob a luz.

Os quatro elementos reassumem sua natureza da mesma fora que uma criança vai ter com sua mãe.

Compilação procedente das preleções e de conversas privadas mantidas com 鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI.

Page 232: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

232

O fogo aquece, o vento sopra, a água molha, a terra é sólida.

Para os olhos há cores e formas, para os ouvidos, sons, para o nariz há odores, para a língua, sabores.

Todos os seres surgem da mesma raiz, são como os ramos e folhas de um mesmo tronco. Mas tanto a raiz como a copa deverão regressar

à sua natureza original.

As palavras que usamos são diferentes – boas e más – mas através delas temos que compreender

o Ser absoluto ou fonte do ensinamento.

Na claridade há na realidade a maior escuridão, mas não devemos nos encontrar com alguém só na escuridão. Na escuridão há claridade, mas não devemos ver aos demais

somente com os olhos da claridade. A escuridão e a claridade se relacionam mutuamente,

como o pé da frente e o pé de trás ao caminhar. Tudo – todos os seres – têm sua própria virtude.

Devemos saber como aplicar esta verdade. Os fenômenos e a vacuidade

são como um recipiente e sua tampa: ajustam-se perfeitamente, como quando duas flechas se

encontram em pleno vôo, ponta com ponta. Ao escutar estas palavras,

vocês devem compreender a fonte dos ensinamentos. Não estabeleçam regras próprias.

Se não praticarem na vida cotidiana, enquanto avançarem, como poderão reconhecer o Caminho? A meta não está longe nem perto.

Se vocês se apegarem à idéia do bom e do mau, elevadas montanhas e grandes rios

vão se interpor no seu caminho.

Page 233: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

233

Buscadores da Verdade: Não passem o tempo em vão!

TABELA DAS LINHAS DE TRANSMISSÃO DOS MESTRES CITADOS NO TEXTO

Shākyamuni Buddha

釋迦牟尼 仏 SHAKAMUNI BUTSU

(566-486 a.C.) I

(27 gerações) I

Primeiro Patriarca Chinês Bodhidharma 菩提達摩

BODAIDARUMA (Putidamo)

(470-543 d.C.) I

(3 gerações) I

Quinto Patriarca Chinês 大満弘忍

DAIMAN KŌNIN (Daman Hongren)

(601-674)

Page 234: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

234

--------------------------I--------------------------- I I I I

Sexto Patriarca Chinês 大鑑慧能 大通神秀 DAIKAN ENŌ DAITSŪ JINSHŪ (Dajian Huineng) (Datong Shenxiu) (638-713) (605-706)

I I I I

Sexto Patriarca Chinês 大鑑慧能

DAIKAN ENŌ (Dajian Huineng)

(638-713) I

------------------------------------------------------------------ I I I

青原行思 荷澤神會 南嶽懷讓 SEIGEN GYŌSHI KATAKU JINNE NANGAKU EJŌ (Quingyuan Xingsi) (Heze Shenhui) (Nanwe Shenxiu) (660-740) (670-762) (605-706) I I I I 石頭希遷 馬祖道一 SEKITŌ KISEN BASO DŌITSU (Shitou Xiqian) (Mazu Daoyi) (700-790) (709-788) I I I ------------------------------ I I I I 藥山惟儼 天皇道悟 I

Page 235: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

235

YAKUSAN IGEN TENNŌ DŌGO (2 gerações) (Yueshan Weiyan) (Tian Huang Daowu) I (745-828) (748-827) I I I I I 雲巖曇晟 臨濟義玄 UNGAN DONJŌ RINZAI GIGEN (Yunyan Tansheng) (Linji Yixuan) (781-841) ( ? -866) I I

I I

雲巖曇晟 UNGAN DONJŌ

(Yunyan Tansheng) (781-841)

I I

洞山良价 TŌZAN RYŌKAI

(Dongshan Liangjie) (807-869)

I I I

13 gerações I I

永平道元 EIHEI DŌGEN

道元禅師 (DŌGEN ZENJI)

(1200-1253)

Page 236: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

236

I I

38 gerações I I

俊隆 鈴木 SHUNRYŪ SUZUKI

(鈴木 老師 SUZUKI RŌSHI) (1904-1971)

Page 237: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

237

APÊNDICES

Page 238: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

238

Page 239: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

239

APÊNDICE 01

FAC-SÍMILE DA EDIÇÃO DIGITALIZADA DO 大正 新脩 大蔵経 TAISHŌ SHINSHŪ DAIZŌKYŌ

COREESPONDENTE AO 參同会 SANDŌKAI

T48n2006_p0327a14(00) ║ 石 頭 參 同 契 ( 雪 竇 著 語 新 添 )

T48n2006_p0327a15(00) ║ 竺土大仙心 (誰是能舉 ) 東西密相付 (惜取眉毛 )

T48n2006_p0327a16(00) ║ 人 根 有 利 鈍 ( 作 麼 生 ) 道 無 南 北 祖 ( 且 款 款 )

T48n2006_p0327a17(00) ║ 靈源明皎潔 (撫掌呵呵 ) 枝派暗流注 (亦未相許 )

T48n2006_p0327a18(00) ║ 執事元是迷 (展開兩手 ) 契理亦非悟 (拈卻了也 )

T48n2006_p0327a19(00) ║ 門門一切境 (捨短從長 ) 迴互不迴互 (以頭換尾 )

T48n2006_p0327a20(00)║ 迴而更相涉(者箇是拄杖子) 不爾依位住(莫錯認定盤星)

T48n2006_p0327a21(00) ║ 色本殊質像 (豈便開眸 ) 聲元異樂苦 (還同掩耳 )

T48n2006_p0327a22(00) ║ 闇合上中言 (心不負人 ) 明明清濁句 (口宜掛壁 )

T48n2006_p0327a23(00) ║ 四 大 性 自 復 ( 隨 所 依 ) 如 子 得 其 母 ( 可 知 也 )

T48n2006_p0327a24(00) ║ 火熱風動搖 (春冰自消 ) 水濕地堅固 (從旦至暮 )

T48n2006_p0327a25(00) ║ 眼色耳音聲 (海晏河清 ) 鼻香舌鹹醋 (可憑可據 )

T48n2006_p0327a26(00) ║ 然 於 一 一 法 ( 重 報 君 ) 依 根 葉 分 布 ( 好 明 取 )

T48n2006_p0327a27(00) ║ 本末須歸宗 (唯我能知 ) 尊卑用其語 (不犯之令 )

T48n2006_p0327a28(00) ║ 當明中有暗 (暗必可明 ) 勿以暗相遇 (明還非睹 )

T48n2006_p0327a29(00) ║ 當 暗 中 有 明 ( 一 見 三 ) 勿 以 明 相 睹 ( 無 異 說 )

Page 240: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

240

T48n2006_p0327b01(00) ║ 明 暗 各 相 對 ( 若 為 分 ) 比 如 前 後 步 ( 不 如 此 )

T48n2006_p0327b02(00) ║ 萬物自有功 (旨爾寧止 ) 當言用及處 (縱橫十字 )

T48n2006_p0327b03(00) ║ 事 存 函 蓋 合 ( 仔 細 看 ) 理 應 箭 鋒 拄 ( 莫 教 錯 )

T48n2006_p0327b04(00) ║ 承言須會宗 (未兆非明 ) 勿自立規矩 (突出難辯 )

T48n2006_p0327b05(00) ║ 觸 目 不 會 道 ( 又 何 妨 ) 運 足 焉 知 路 ( 出 不 惡 )

T48n2006_p0327b06(00) ║ 進 步 非 近 遠 ( 唱 彌 高 ) 迷 隔 山 河 故 ( 和 彌 寡 )

T48n2006_p0327b07(00)║ 謹白參玄人(聞必同歸) 光陰莫虛度(誠哉是言也)

Page 241: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

241

APÊNCICE 02

A HISTÓRIA DE 桃太郎 MOMOTARŌ

Há muito tempo atrás, numa cidade remota, vivia um casal de velhinhos... Eles nunca haviam tido filhos e isso deixava um grande vazio em seus corações... Todos os dias o homem juntava lenha nas montanhas e sua esposa lavava roupas na correnteza do rio...

Um dia, a mulher lavando roupas, viu um pêssego enorme boiando no rio... Então pegou aquela fruta que parecia muito saborosa e levou para casa para servir ao marido assim que ele voltasse das montanhas.

Ao final do dia, o marido chegou e ficou muito contente ao ver aquele pêssego apetitoso. Ela pegou um facão para o cortar e ouviu seu marido, já com água na boca, dizer: Hum, deve estar suculento e saboroso!!!

Ao partirem o pêssego ficaram assustados com o que encontraram: Um menino muito forte, porém doce e meigo. Achando ser um presente dos céus, o casal decidiu adotar o lindo garoto e seu nome seria: 桃太郎 MOMOTARŌ (Menino Pêssego).

桃 太 郎 MOMOTARŌ cresceu forte e poderoso e era considerado o mais forte na aldeia em que vivia.

Page 242: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

242

Um dia, 桃太郎 MOMOTARŌ ouviu falar sobre os monstros de 鬼が島 ONIGASHIMA (Ilha do Demônio) que espalhavam medo entre a população e roubavam tudo que tinham. Então pediu autorização aos pais para que pudesse ir a 鬼が島 ONIGASHIMA e afastar os monstros. A princípio seus pais ficaram assustados e não permitiram, mas de tanto 桃太郎 MOMOTARŌ insistir, os pais acabaram cedendo. Seus pais então fizeram uma trouxinha e colocaram deliciosos きびだんご KIBIDANGO (bolinhos) para que ele pudesse comer na viagem. E 桃 太 郎 MOMOTARŌ partiu em busca dos monstros...

Na margem da aldeia, ele encontrou um cãozinho, que lhe perguntou: Para onde você está indo 桃太郎 MOMOTARŌ? O que você carrega nesse saco? Eu estou indo para 鬼が島 ONIGASHIMA! E aqui nessa trouxinha tem deliciosos きびだんご KIBIDANGO... Os melhores da região! Olha, se você me ajudar a afastar os monstros da ilha, eu te dou um, que tal? O cãozinho estava com muita fome, aceitou a oferta e acompanhou桃太郎 MOMOTARŌ... Mais à frente, encontraram um papagaio que também aceitou acompanhar 桃太郎 MOMOTARŌ em troca de um きびだんご KIBIDANGO. Em seguida, encontraram um macaco que também aceitou unir-se a 桃太郎 MOMOTARŌ em troca do melhor きびだんご KIBIDANGO da região.

桃太郎 MOMOTARŌ, o cachorro, o macaco e o papagaio pegaram um barco para ir à 鬼が島 ONIGASHIMA...

Mas eles não conseguiam avistar a ilha, foi então que o papagaio voou até o céu e indicou a direção. Quando finalmente chegaram a 鬼が島 ONIGASHIMA, encontraram um castelo enorme, protegido por um grande portão... Só que estava trancado, bloqueando o caminho... O macaco então, deu um salto, pulou para seu interior e abriu o portão. Eles entraram e foram caminhando... Encontraram os monstros festejando, suas fisionomias eram estranhas e estavam todos bêbados.

Page 243: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

243

桃 太 郎 MOMOTARŌ aproximou-se e disse: Eu sou 桃太郎 MOMOTARŌ e nós estamos aqui para punir vocês por amedrontar a população de nossa cidade! Os monstros então, achando graça, partiram para a luta...

桃太郎 MOMOTARŌ lutava com sua espada, o papagaio bicava os monstros por toda a parte, o macaco pulava em cima e o cãozinho mordia suas pernas e braços. Como haviam comido o melhor きびだんご KIBIDANGO do Japão, os animais tiveram suas forças multiplicadas e apesar de serem apenas quatro, lutaram por mil. Finalmente, os monstros se renderam e o líder, sentindo-se derrotado, caiu de joelhos diante de 桃太郎 MOMOTARŌ...

Chorando e com a cabeça baixa, o monstro falou: Eu prometo que nunca mais iremos amedrontar a população e vamos devolver tudo que roubamos, mas por favor... eu imploro: Não nos Matem! 桃太郎 MOMOTARŌ decidiu poupar a vida dos monstros. Carregou todos os pertences da população até o barco e voltaram para casa festejando, devolvendo assim, a Paz as pessoas da aldeia!

Page 244: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

244

桃太郎さんの歌 MOMOTARŌ-SAN NO UTA

A CANÇÃO DE 桃太郎 MOMOTARŌ

桃太郎さん、桃太郎さん MOMOTARŌ-SAN, MOMOTARŌ-SAN

Momotarō, Momotarō,

お腰につけたきびだんご OKOSHINI TSUKETA KIBIDANGO

Estes bolinhos que você trás aí..

一つ私に下さいな! HITOTSU WATASHI NI KUDASAI NA!

Você não quer me dar um?

あげましょう、あげましょう AGEMASHŌ, AGEMASHŌ

Eu te dou, eu te dou.

今から鬼の征伐に

Page 245: SANDOKAI SUZUKI TEXTO INTEGRAL

245

IMA KARA ONI NO SEIBATSU NI Estou indo derrotar os demônios,

ついてくるならあげましょう

TSUITE KURU NARA AGEMASHŌ se você vier comigo, eu te um...