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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Cornwell, Bernard, 1944-C835c

A canção da espada / Bernard Cornwell

Tradução de Ivanir Alves Calado.

Tradução de: Sword song

ISBN 978-85-01-08149-0

1. Uhtred (Personagem fictício) — Ficção. 2.Grã-Bretanha — História — Alfred, 871 -899— Ficção.

3. Londres (Inglaterra) — História — Até1500 —

Ficção. 4. Ficção inglesa. I. Alves-Calado,Ivanir, 1953-. II. Título.

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CDD – 823 08-1468CDU-821. 111-3

Título original inglês: SWORD SONG

Capa: Laboratório Secreto

Impresso no Brasil

ISBN 978-85-01-08149-0

A canção da espada é voor Aukje Mit liefde: Erwas eens...

Nota de Tradução

Foi respeitada ao longo deste livro a grafiaoriginal de diversas palavras. O autor, pordiversas vezes, as usa intencionalmente comum sentido arcaico, a exemplo de Yule,correspondente às festas natali-nas atuais, masque, originalmente, indicava um ritual pagão.Outro exemplo é a utilização de svear, tribo

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proveniente do norte da Europa.

Além disso, foram mantidas algumasdenominações sociais, como earl (atualmentetraduzido como “conde”, mas que o autorespecifica como um título dinamarquês, que sómais tarde seria e-quiparado ao de conde, usadona Europa continental), thegn, reeve, e outrosque são explicados ao longo do livro.

Por outro lado, optou-se por traduzir lordsempre como

“senhor”, jamais como “lorde”, cujo sentidoremete à monarquia inglesa posterior, e não àestrutura medieval. Britain foi traduzido comoBritânia (opção igualmente aceita, mas poucocorrente), para não confundir com Bretanha, nonorte da França (Brittany), mesmo recursousado na tradução da série As Crônicas deArtur, do mesmo autor.

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SUMÁRIO

MAPA

TOPÔNIMOS

PRÓLOGO

PRIMEIRA PARTE

A noiva

SEGUNDA PARTE

A cidade

TERCEIRA PARTE

A limpeza

NOTA HISTÓRICA

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TOPÔNIMOS

A GRAFIA DOS TOPÔNIMOS na Inglaterraanglo-saxã era incerta, sem qualquerconsistência ou concordância, nem mesmoquanto ao nome em si. Assim, Londres eragrafa-do como Lundonia, Lundenberg,Lundenne, Lundene, Lundenwic, Lundenceastere Lundres. Sem dúvida alguns leitorespreferirão outras versões dos nomes listados aseguir, mas em geral empreguei a grafia citadano Oxford ou no Cambridge Dictionary ofEnglish Place-Names referente aos anos maispróximos ou contidos no reino de Alfredo,entre 871 e 899 d. C, mas nem mesmo essassoluções são infalíveis. A ilha de Hayling, em956, era grafada tanto como Heilincigae quantocomo Haeglingaiggae. E eu próprio não fuiconsistente; preferi a grafia moderna England(Inglaterra) a Englaland e, em vez deNordhymbralond, usei Nortúmbria, para evitar

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a sugestão de que as fronteiras do antigo reinocoincidiam com as do distrito moder-no. Demodo que a lista, como as grafias em si, éresulta-do de um capricho.

A ESCENGUM Eashing,

Surrey

ARWAN

Rio Orwell, Suffolk

BEAMFLEOT Benfleet,

Essex

BEBBANBURG Castelo

de

Bamburgh,

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Northumberland

BERROCSCIRE Berkshire

CAIR LIGUALID Carlisle,

Cumbria

CANINGA

Ilha Canvey, Essex

CENT Kent

CIPPANHAMM Chippenham,

Wiltshire

CIRRENCEASTRE Cirencester,

Gloucestershire

CISSECEASTRE Chichester,

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Sussex

COCCHAM Cookham,

Berkshire

COLAUN, RIO Rio

Colne,

Essex

CONTWARABURG Canterbury,

Kent

CORNWALUM Cornualha

CRACGELAD Cricklade,

Wiltshire

DUNASTOPOL Dunstable

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(nome

romano,

Durocobrivis),

Bedfordshire

DUNHOLM

Durham, condado de Durham

DYFLIN Dublin,

Eire

EOFERWIC York,

Yorkshire

ETHANDUN Edington,

Wiltshire

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EXANCEASTER Exeter,

Devon

FLEOT Rio

Fleet,

Londres

FRANKIA Alemanha

FUGHELNESS

Ilha de Foulness, Essex

GRANTACEASTER Cambridge,

Cambridgeshire

GYRUUM

Jarrow, condado de Durham

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HASTENGAS Hastings,

Sussex

HORSEG Ilha

de

Horsey,

Essex

HOTHLEGE

Rio Hadleigh, Essex

HROFECEASTRE Rochester,

Kent

HWEALF

Rio Crouch, Essex

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LUNDENE Londres

MAEIDES STANA Maidstonke,

Kent

MEDWAEG

Rio Medway, Kient

OXNAFORDA Oxford,

Oxfordshire

PADINTUNE

Paddington, Grande Londres

PANT Rio

Blackwater,

Essex

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SCAEPEGE

Ilha Sheppey, Kent

SCEAFTES EYE

Ilha Sashes (em Coccham)

SCEOBYRIG Shoebury,

Essex

SCERHNESSE Sheerness,

Kent

STURE Rio

Stour,

Essex

SUTHERGE Surrey

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SUTHRIGANAWEORC

Southwark, Grande Londres

SWEALWE Rio

Swale,

Kent

TEMES Rio

Tâmisa

THUNRESLEAM Thundersley,

Essex

WAECED Watchet,

Somerset

WAECLINGASTRAET Watling

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Street

WERHAM Wareham,

Dorset

WILTUNSCIR Wiltshire

WINTANCEASTER Winchester,

Hampshire

WOCCA’s Dun

South Ockenden, Essex

WODENES EYE

Ilha de Odney (em Coccham)

PRÓLOGO

Escuridão. Inverno. Noite de geada e sem lua.

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Flutuávamos no rio Temes, e para além da proaalta do barco eu podia ver as estrelas refletidasna água reluzente. O rio estava cheio,alimentado pela neve dos morros incontáveis.Os regatos temporários fluíam das terras altas,de calcário, em Wessex. No verão aquelesriachos estariam secos, mas agora espumavamdescendo pelos morros compridos e verdes,enchiam o rio e fluíam para o mar distante.

Nosso barco, que não tinha nome, estava pertoda margem no lado de Wessex. Ao norte, dooutro lado do rio, ficava a Mércia. Nossa proaapontava rio acima. Estávamos escondidosentre os galhos dobrados e sem folhas de trêssalgueiros, mantidos ali contra a corrente poruma corda de couro amarrada a um dos galhos.

Éramos 38 naquele barco sem nome, um naviomercante que costumava atuar nas partes maisaltas do Temes. O comandante do navio se

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chamava Ralla e estava a meu lado com a mãono remo-leme. Eu mal podia vê-lo no escuro,mas sabia que ele estava usando gibão de couroe tinha uma espada à cintura. O restante de nósusava couro e cota de malha, tínhamos elmos elevávamos escudos, machados, espadas oulanças. Esta noite iríamos matar.

Sihtric, meu servo, agachou-se a meu lado epassou uma pedra de amolar na lâmina de suaespada curta.

— Ela diz que me ama — argumentou.

— Claro que diz — respondi.

Ele parou, e quando falou de novo sua voz haviase animado, como se tivesse ganhado coragemcom minhas palavras.

— E já devo ter 19 anos, senhor! Talvez até 20,quem sabe?

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— Dezoito? — sugeri.

— Eu já poderia estar casado há quatro anos,senhor!

Falávamos quase aos sussurros. A noite erarepleta de sons. A água ondulava, os galhos nusestalavam ao vento, uma criatura da noitechapinhou no rio, uma raposa uivou como umaalma agonizante, e em algum lugar uma corujapiou. O barco rangia. A pedra de Sihtric sibilavae raspava o aço. Um escudo bateu num bancode remador.

Eu não ousava falar mais alto, apesar dos ruídosda noite, porque o navio inimigo estava rioacima e os homens que haviam desembarcadoteriam deixado sentinelas a bordo.

Essas sentinelas poderiam ter nos vistoenquanto deslizávamos rio abaixo junto àmargem mércia, mas agora certamente deviam

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pensar que tínhamos seguido há muito nadireção de Lundene.

— Mas por que se casar com uma puta? —perguntei a Sihtric.

— Ela é...

— Ela é velha — rosnei. — Deve ter uns 30anos.

E é meio doida. Ealhswith só precisa ver umhomem para abrir as coxas! Se vocêenfileirasse cada homem que mon-tou naquelaputa, teria um exército suficiente paraconquistar toda a Britânia. — A meu lado, Ralladeu um risinho. — Você estaria nesse exército,Ralla? — perguntei.

— Mais de vinte vezes, senhor — respondeu ocomandante do navio.

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— Ela me ama — insistiu Sihtric, carrancudo.

— Ela ama sua prata — disse eu —, e, alémdisso, por que colocar uma espada nova numabainha velha?

É estranho o que os homens falam antes dabatalha. Qualquer coisa, menos sobre o que osespera. Já estive numa parede de escudos,olhando para um inimigo luminoso de espadase sombrio de ameaças, e ouvi dois de meushomens discutindo furiosamente sobre quetaverna fazia a melhor cerveja. O medo paira noar como uma nuvem e falamos de nada, parafingir que as nuvens não se encontram ali.

— Procure alguma coisa madura e nova —aconse-lhei Sihtric. — A filha daquele oleiroestá pronta para casar. Deve ter 13 anos.

— Ela é idiota — questionou Sihtric.

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— E o que você é, então? Eu lhe dou prata evocê

derrama no buraco aberto mais próximo! Daúltima vez em que vi, ela estava usando umbracelete que dei a você.

Sihtric fungou e não disse nada. Seu pai eraKjartan, o Cruel, um dinamarquês que o haviagerado em uma de suas escravas saxãs. Noentanto, Sihtric era um bom garoto, ainda quena verdade não fosse mais garoto. Era umhomem que havia estado numa parede deescudos. Um homem que havia matado. Umhomem que mataria de novo esta noite.

— Vou lhe arranjar uma mulher — prometi.

Foi então que ouvimos os gritos. Eram fracosporque vinham de muito longe, um mero ruídoraspando a escuridão, falando de dor e morte asul de nós. Eram gri-

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tos e choros. Mulheres gritavam e sem dúvidahomens estavam morrendo.

— Desgraçados — disse Ralla com amargura.

— Esse é nosso trabalho — respondi, curto egrosso.

— Deveríamos... — começou Ralla, maspensou melhor e parou. Eu sabia o que ele iriadizer, que deveríamos ter ido ao povoado paraprotegê-lo, mas sabia o que eu teriarespondido.

Teria dito que não sabíamos que povoado osdinamarqueses iriam atacar, e mesmo sesoubesse não o teria protegido. Poderíamosabrigar o local se soubéssemos para onde osatacantes iriam. Eu poderia ter posto todas asminhas tropas nas pequenas casas e, nomomento em que os saqueadores chegassem,poderíamos irromper na rua com espadas,

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machados e lanças, e teríamos matado algunsdeles, mas na escuridão muitos outros teriamescapado e eu não queria que nenhumescapasse. Queria cada dinamarquês, cadanorueguês, cada atacante, morto. Todos eles,menos um, e esse eu mandaria para o leste,contar aos acampamentos vikings nas margensdo Temes que Uhtred de Bebbanburg esperavapor eles.

— Pobres coitados — murmurou Ralla. Ao sul,através do emaranhado de galhos pretos, davapara ver um brilho vermelho que indicava palhade teto queimando. O

brilho se espalhou e ficou mais forte,iluminando o céu de inverno para além de umafileira de árvores. O brilho se refletia noselmos de meus homens, dando ao metal umtom de vermelho, e eu mandei tirarem oselmos para que as sentinelas inimigas no navio

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grande à frente não vissem o brilho refletido.

Tirei meu elmo com sua crista de lobo feita deprata.

Sou Uhtred, senhor de Bebbanburg, e naquelesdias era um senhor da guerra. Fiquei ali parado,vestido com cota de malha e couro, capa earmas, jovem e forte. Tinha metade de minhastropas no navio de Ralla, enquanto a outrametade se encontrava em algum lugar a oeste,montada a cavalo e sob o comando de Finan.

Ou eu pelo menos esperava que estivessemaguar-dando no oeste amortalhado pela noite.Nós, no navio, havíamos ficado com a tarefamais fácil, porque tínhamos deslizado pelo rioescuro para encontrar o inimigo, ao passo queFinan fora obrigado a guiar seus homens peloterreno negro da noite. Mas eu confiava emFinan. Ele estaria lá, remexendo-se, fazendocareta, esperando para soltar a espada.

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Esta não era nossa primeira tentativa de fazeruma emboscada no Temes naquele invernolongo e molhado, mas era a primeira queprometia sucesso. Por duas vezes, antes,haviam me dito que vikings tinham passado pelaabertura na ponte quebrada de Lundene paraatacar os povoados frouxos e gordos deWessex, e nas duas vezes tínhamos vindo rioabaixo sem encontrar nada. Mas dessa vezhavíamos posto os lobos numa armadilha.Toquei o punho de Bafo de Serpente, minhaespada, e em seguida o amuleto do martelo deTor, pendurado no pescoço.

Mate todos eles, rezei a Tor, mate todos,menos um.

Devia fazer frio naquela noite longa. O geloformava uma fina camada nas partes fundas doscampos inundados pelo Temes, mas não melembro do frio. Lembro-me da ansiedade.

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Toquei Bafo de Serpente de novo e me pareceuque ela teve um tremor. Algumas vezes euachava que a espada cantava. Era um canto fino,apenas entreou-vido, um som penetrante, acanção da espada que desejava sangue; a cançãoda espada.

Esperamos e, depois, quando tudo acabou,Ralla me disse que em nenhum momento euhavia parado de sorrir.

Achei que nossa emboscada iria fracassar,porque os atacantes só retornaram para o navioquando o amanhecer lançou luz sobre o leste.Suas sentinelas, pensei, certamente iriam nosver, mas não viram. Os galhos curvados dosalgueiro serviam como uma tela frágil, outalvez o sol nascente de inverno os ofuscasse,porque ninguém nos viu.

Nós os vimos. Vimos os homens com cota demalha arrebanhando uma multidão de mulheres

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e crianças por uma pastagem inundada pelachuva. Achei que seriam cinqüenta atacantes eteriam uma quantidade equivalente de cativos.As mulheres seriam as mais jovens da aldeiaqueimada, e haviam sido levadas para o prazerdos atacantes. As crianças iriam para omercado de escravos em Lundene e de láseriam mandadas à Frankia, do outro lado domar, ou mesmo mais além. As mulheres,depois de usadas, também seriam vendidas.Não estávamos tão perto a ponto de ouvir osprisioneiros soluçando, mas imaginei isso. Aosul, onde morros baixos e verdes erguiam-se daplanície do rio, uma grande mancha de fumaçasujava o céu claro de inverno, marcando ondeos atacantes haviam queimado o povoado.

Ralla se mexeu.

— Espera — murmurei, e Ralla ficou parado.Era um homem grisalho, dez anos mais velho

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do que eu, com olhos reduzidos a fendas emrazão dos longos anos olhando por cima dosmares que refletiam o céu. Era um comandantede navio, soldado e amigo. — Ainda não —falei baixinho, toquei Bafo de Serpente e sentio tremor no aço.

As vozes dos homens eram altas, relaxadas eriso-nhas. Eles gritavam enquanto empurravamos prisioneiros para o navio. Forçaram-nos a seagachar no bojo frio e inundado de modo que aembarcação sobrecarregada ficasse estávelpara a viagem através das partes rasas rioabaixo, onde o Temes corria sobre lajes depedra e só os melhores e mais corajososcomandantes conheciam o canal. Então osguerreiros subiram a bordo. Levavam seusaque: espetos, caldeirões, lâminas de enxadas,facas e qualquer outra coisa que pudesse servendida, derretida ou usada. As gargalhadaseram ásperas. Eram homens que haviam

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trucidado, que ficariam ricos com seusprisioneiros e estavam num clima alegre,despreocupado.

E Bafo de Serpente cantava em sua bainha.

Ouvi o barulho vindo do outro navio quando osremos foram encaixados. Uma voz gritou umaordem:

— Empurrem!

O grande bico do navio inimigo, coroado comuma cabeça de monstro pintada, virou-se para orio. Homens pressionaram as pás dos remoscontra a margem, empurrando o barco maisainda. O navio já estava se movendo, levado nanossa direção pela corrente impulsionada pelacheia. Ralla olhou para mim.

— Agora. Corte a corda! — gritei, e Cerdic,em nossa proa, cortou a corda de couro que nos

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prendia ao salgueiro. Só estávamos usando 12remos, que agora mor-deram o rio enquanto euavançava por entre as fileiras de bancos dosremadores. — Vamos matar todos! — gritei.

— Vamos matar todos!

— Puxem! — rugiu Ralla, e os 12 homensfizeram força com os remos para lutar contra aforça do rio.

— Vamos matar absolutamente todos osdesgraçados! — gritei enquanto subia napequena plataforma da proa, onde meu escudoesperava. — Matem todos! Matem todos! —Pus o elmo, depois passei o antebraçoesquerdo pelas alças do escudo, levantei amadeira pesada e tirei Bafo de Serpente de suabainha forrada de pele. Agora ela não cantou.Gritou.

— Matem! — berrei. — Matem, matem,

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matem! —

E os remos batiam no ritmo dos meus gritos. Ànossa frente o navio inimigo balançou no rioenquanto os homens em pânico erravam asremadas. Estavam gritando, procurandoescudos, subindo depressa nos bancos em quealguns homens ainda tentavam remar. Mulheresgritavam e homens tropeçavam uns nos outros.

— Puxem! — gritou Ralla. Nosso navio semnome entrou na corrente enquanto o inimigoera varrido em nossa direção. Sua cabeça demonstro tinha uma língua pintada de vermelho,olhos brancos, dentes como adagas.

— Agora! — gritei para Cerdic e ele atirou oarpéu com a corrente, de modo que seprendesse na proa do navio inimigo. Cerdicpuxou a corrente fazendo os dentes do arpéuafundarem na madeira do navio, trazendo-omais para perto.

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— Agora matem! — gritei, e pulei sobre oespaço entre os dois cascos. Ah, a alegria deser jovem. De ter 28

anos, de ser forte, de ser um senhor da guerra.Agora tudo se foi, só resta lembrança, e aslembranças se desbotam.

Mas a alegria se aninha na memória.

O primeiro golpe de Bafo de Serpente foi dafrente para trás. Dei-o enquanto pousava naplataforma da proa do inimigo, onde umhomem tentava soltar o arpéu. Bafo deSerpente pegou-o na garganta com um cortetão rápido que quase decepou a cabeça. Todo ocrânio tombou para trás enquanto o sangueiluminava o dia de inverno. Sangue espirrou nomeu rosto. Eu era a morte vinda da manhã, amorte suja de sangue, vestida de malha, capapreta e um elmo com crista de lobo.

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Agora estou velho. Velho demais. Minha vistase esvai, meus músculos são fracos, meu mijosai em gotas, meus ossos doem, sento-me aosol, caio no sono e acordo cansado. Mas melembro daquelas lutas, daquelas velhas lutas.Minha mais nova esposa, uma mulher estúpidae devota que vive gemendo, encolhe-se quandoconto as histórias, mas o que mais os velhostêm, além de histórias?

Uma vez ela protestou, dizendo que não queriasaber de cabeças tombando para trás em meioao sangue espirran-do brilhante, mas de quemodo vamos preparar nossos jovens para asguerras que devem travar? Lutei durante toda avida. Esse foi meu destino, o destino de todosnós.

Alfredo queria paz, mas a paz fugiu dele, osdinamarqueses vieram e os norueguesesvieram, e ele não teve opção além de lutar. E

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quando Alfredo morreu e seu reino erapoderoso, mais dinamarqueses vieram, e maisnoruegueses, os britões vieram de Gales e osescoceses chegaram uivando do norte, e o queum homem pode fazer, senão lutar por suaterra, sua família, sua casa e seu país? Olhopara meus filhos, para os filhos deles e para osfilhos dos filhos, e sei que terão de lutar, e queenquanto houver uma família chamada Uhtred,e enquanto houver um reino nesta ilha varridapelo vento, haverá guerra. Portanto não po-

demos nos encolher para longe da guerra. Nãopodemos nos esconder de sua crueldade, de seusangue, do fedor, da malignidade ou do júbilo,porque a guerra virá para nós, desejemos ounão. Guerra é destino, e wyrd bid ful ãraed.

O destino é inexorável.

Assim conto essas histórias para que os filhosdos meus filhos saibam de seu destino. Minha

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mulher geme, mas eu a obrigo a escutar. Contocomo nosso navio se chocou contra o flancodo inimigo e como o impacto impulsionou aproa do outro navio em direção à margem sul.

Era isso que eu queria, e Ralla haviaconseguido com perfeição. Agora ele raspouseu navio ao longo do casco inimigo, nossoímpeto partindo os remos do dinamarquêsenquanto meus homens pulavam a bordo,espadas e machados cantando. Eu haviacambaleado depois daquele primeiro golpe,mas o morto tinha caído da plataformaimpedindo que outros dois tentassem mealcançar, e gritei um desafio enquanto saltavapara encará-los. Bafo de Serpente era mortal.Era, é, uma lâmina maravilhosa, forjada nonorte por um ferreiro saxão que conhecia seutrabalho.

Ele havia escolhido sete hastes, quatro de ferro

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e três de aço, aquecido-as e depois marteladoaté formar uma lâmina comprida, de doisgumes, com ponta em forma de folha. Asquatro hastes de ferro mais macio haviam sidotorcidas no fogo, e essas torções sobreviveramna lâmina como fiapos fantasmagóricos de umpadrão que parecia o hálito de um dragão, comchamas enroladas, e foi assim que Bafo deSerpente ganhou seu nome.

Um homem de barba eriçada girou em minhadire-

ção um machado, que enfrentei com o escudo,e enfiei os fiapos de dragão em sua barriga.Torci ferozmente com a mão direita, de modoque sua carne e as entranhas agoni-

zantes não prendessem a lâmina, depois apuxei, fazendo jorrar mais sangue, e trouxe oescudo empalado com o machado para perto docorpo, aparando um golpe de espada. Sihtric

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estava a meu lado, cravando sua espada curta navirilha de meu mais recente atacante. O homemgritou.

Acho que eu estava gritando. Mais e mais demeus homens estavam a bordo agora, espadas emachados brilhando. Crianças choravam,mulheres gemiam, saqueadores morriam.

A proa do navio inimigo bateu na lama damargem enquanto a popa começava a girar parafora, dominada pelo rio. Alguns saqueadores,sentindo a morte caso ficassem a bordo,pularam em terra e isso provocou um pânico.

Mais e mais saltavam em direção à margem, efoi então que Finan veio do oeste. Havia umapequena névoa na campina junto ao rio, apenasuma madeixa perolada pairando sobre as poçascom crostas de gelo, e por ela vieram osbrilhantes cavaleiros de Finan. Chegaram emsuas fileiras, espadas erguidas como se fossem

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lanças, e Finan, meu irlandês mortal, conheciaseu trabalho. Fez a primeira fileira passargalopando pelos homens que escapavam, paracortar sua retirada, e deixou a segunda sechocar contra o inimigo, antes de se virar ecomandar seus homens de volta à matança.

— Matem todos! — gritei para ele. — Matematé o último!

Sua resposta foi uma onda de espadasavermelhadas de sangue. Vi Clapa, meu grandedinamarquês, cravando a lança num inimigo naágua rasa do rio. Rypere estava girando aespada sobre um homem abaixado de medo. Amão de Sihtric estava vermelha segurando aespada. Cerdic girava um machado, gritandoincompreensivelmente enquanto a lâminaesmagava e cortava o elmo de um dinamarquêsderramando sangue e miolos nos prisioneirosaterrorizados. Acho que matei mais dois,

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porém minha memória não tem certeza.Lembro-me de ter empurrado um homem parao convés e, enquanto ele girava para meencarar, de ter cravado Bafo de Serpente emsua goela, olhado seu rosto se contorcer e alíngua se projetar do poço de sangue quebrotava passando pelos dentes ene-grecidos.Apoiei-me na espada enquanto o homemmorria e fiquei olhando os homens de Finangirarem os cavalos para retornar ao inimigocercado. Os cavaleiros golpeavam e retalhavam,vikings gritavam e alguns tentavam se render.Um rapaz se ajoelhou num banco de remador,tendo descartado o machado e o escudo, eestendeu as mãos para mim, suplicando.

— Pegue o machado — falei para ele emdinamarquês.

— Senhor... — começou ele.

— Pegue! — interrompi. — E espere por mim

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no castelo dos cadáveres. — Esperei até eleestar armado, então deixei Bafo de Serpentetirar sua vida. Fiz isso depressa, demonstrandomisericórdia ao cortar sua garganta com umgolpe rápido. Olhei seus olhos enquanto omatava, vi sua alma voar, depois pisei no corpoque se retorcia e escorregou do banco deremador, despencando sangrento no colo deuma jovem que começou a berrar histerica-mente. — Quieta! — gritei para ela. Fiz umacareta para todas as outras mulheres e criançasque gritavam ou choravam encolhidas no casco.Pus Bafo de Serpente na mão que prendia oescudo, segurei a gola da cota de malha dohomem agonizante e puxei-o de volta para obanco.

Uma criança não estava chorando. Era ummenino de 9 ou 10 anos e só estava meencarando, boquiaberto, e me lembrei de mim,naquela idade. O que aquele garoto viu? Viu um

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homem de metal, porque eu lutava com asplacas faciais do meu elmo fechadas. Você vêmenos com as placas sobre as bochechas, masa aparência é mais ame-drontadora. Aquelegaroto viu um homem alto, coberto com cotade malha, espada sangrenta, rosto de aço,enchendo um barco de morte. Tirei o elmo ebalancei a cabeça para soltar os cabelos, depoisjoguei para ele o metal com crista de lobo.

— Cuide dele, garoto — falei, depois dei Bafode Serpente à garota que estivera chorando. —Lave a espada na água do rio — ordenei — eseque na capa de algum morto. — Dei o escudoa Sihtric, depois estiquei os bra-

ços abertos e levantei o rosto para o sol damanhã.

Haviam sido 54 saqueadores e 16 ainda viviam.Eram prisioneiros. Nenhum havia escapadopassando pelos homens de Finan.

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Desembainhei Ferrão de Vespa, minha espadacurta que era tão letal lutando numa parede deescudos, quando os homens ficamcomprimidos como amantes.

— Qualquer uma de vocês que queira matar ohomem que a estuprou — olhei para asmulheres — faça isso agora!

Duas mulheres quiseram vingança e eu deixeique usassem Ferrão de Vespa. As duastrucidaram suas vítimas.

Uma cravou a lâmina repetidamente, a outraretalhou, e os dois homens morreram devagar.Dos 14 que restavam, um não usava malha. Erao comandante do navio inimigo.

Era grisalho, com barba rala e olhos castanhosque me espiavam com beligerância.

— De onde vocês vieram? — perguntei-lhe.

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Ele pensou em não responder, depoisreavaliou.

— Beamfleot — respondeu.

— E Lundene? — perguntei. — A velha cidadecontinua em mãos dinamarquesas?

— Sim.

— Sim, senhor — corrigi.

— Sim, senhor — admitiu ele.

— Então você irá a Lundene, depois aBeamfleot, e depois aonde quiser, e contaráaos noruegueses que Uhtred de Bebbanburgguarda o rio Temes. E dirá a eles que são bem-vindos aqui quando quiserem.

Aquele homem viveu. Decepei sua mão direitaantes de soltá-lo. Fiz isso para que ele nunca

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mais segurasse uma espada. Nesse pontohavíamos acendido uma fogueira e enfiei seucotoco sangrento nas brasas para lacrar oferimento. Ele era um homem corajoso.Encolheu-se enquanto cauterizávamos ocotoco, mas não gritou quando seu sangueborbulhou e a carne chiou. Enrolei seu braçoencurtado num pedaço da camisa de um morto.

— Vá — ordenei, apontando rio abaixo. —Simplesmente vá. — Ele caminhou para oleste. Se tivesse sorte, sobreviveria à jornadapara espalhar a notícia de minha selvageria.

Matamos os outros. Todos.

— Por que os matou? — perguntou uma vezminha nova esposa, com repulsa evidente navoz por minha meticulosidade.

— Para que aprendessem a temer, claro.

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— Homens mortos não temem. Tento serpaciente com ela.

— Um navio partiu de Beamfleot e jamaisretornou

— expliquei. — E outros homens quedesejavam atacar Wessex ouviram falar dodestino daquele navio. E esses homensdecidiram levar suas espadas a outros lugares.

Matei a tripulação daquele navio para não terde matar centenas de outros dinamarqueses.

— O senhor Jesus teria desejado que vocêmostrasse misericórdia — disse ela,arregalada.

É uma idiota.

Finan levou alguns aldeãos de volta às casasqueimadas, onde cavaram sepulturas para seus

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mortos enquanto meus homens penduravam oscorpos dos inimigos em árvores junto ao rio.Tiramos suas cotas de malha, as armas e osbraceletes. Cortamos seus cabelos compridos,porque eu gostava de calafetar as tábuas demeus navios com o cabelo de inimigos mortos,e depois os pendura-mos, e seus corpos nus epálidos balançavam ao vento fraco enquanto oscorvos vinham arrancar os olhos mortos.

Cinqüenta e três corpos foram penduradosjunto ao rio. Um alerta aos que poderiam virdepois. Cinqüenta e três sinais de que outrossaqueadores estariam se arriscan-do à morte seremassem subindo o Temes.

Então fomos para casa, levando o navioinimigo.

E Bafo de Serpente dormiu em sua bainha.

PRIMEIRA PARTE

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A noiva

UM

— O morto fala — disse-me A Ethelwold. Paravariar, estava sóbrio. Sóbrio, espantado e sério.O vento da noite batia na casa e as velas feitasde junco e sebo tremeluziam vermelhas nascorrentes de ar de inverno que chicoteavampelo buraco de fumaça do teto, pelas portas eos postigos.

— O morto fala? — perguntei.

— Um cadáver se ergue da sepultura e fala. —A Ethelwold me encarou arregalado, depoisassentiu como se quisesse enfatizar que dizia averdade. Estava inclinado em minha direção, asmãos fechadas se remexendo entre os joelhos.— Eu vi.

— Um cadáver fala?

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— Ele se levanta! — A Ethelwold ergueu amão, mostrando o que queria dizer.

— Ele?

— O morto. Ele se levanta e fala. — AEthelwold continuava me encarando, comexpressão indignada. — É

verdade — acrescentou numa voz sugerindoque sabia que eu não acreditava.

Puxei meu banco mais para perto do fogo.Eram dez dias depois de eu ter matado ossaqueadores e pendu-

rado seus corpos junto ao rio, e agora umachuva gelada batucava na palha do teto egolpeava os postigos fechados.

Dois de meus cães estavam na frente do fogo, eum me lançou um olhar ressentido quando fiz

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barulho com o banco, depois pousou a cabeçade novo. A casa fora construída pelos romanos,o que significava que o piso era de ladrilhos eas paredes, feitas de pedra, mas eu mesmohavia preparado o teto de palha. A chuva passavapelo buraco da fumaça.

— O que o morto diz? — perguntou Gisela. Eraminha mulher e mãe de meus dois filhos.

A Ethelwold não respondeu imediatamente,talvez porque acreditasse que uma mulher nãodeveria participar de uma conversa séria, masmeu silêncio lhe disse que Gisela podia falarem sua própria casa e ele estava nervosodemais para insistir que eu a mandasse embora.

— Ele diz que eu deveria ser o rei — admitiubaixinho, depois me olhou, temendo minhareação.

— Rei de quê? — perguntei em tom chapado.

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— De Wessex, claro.

— Ah, de Wessex — repeti, como se nuncativesse ouvido falar desse local.

— E eu deveria ser o rei! — protestou AEthelwold.

— Meu pai era o rei!

— E agora o irmão de seu pai é o rei — disseeu —e, os homens dizem que ele é um bom rei.

— Você diz isso? — desafiou ele.

Não respondi. Era bem sabido que eu nãogostava de Alfredo e que Alfredo não gostavade mim, mas isso não significava que osobrinho de Alfredo, A Ethelwold, seria um reimelhor. A Ethelwold, como eu, tinha quase 30

anos, e havia ganhado reputação de bêbado e

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idiota libidi-

noso. No entanto, realmente tinha o direito dereivindicar o trono de Wessex. Seu pai havia defato sido rei, e se Alfredo tivesse um mínimode bom senso mandaria cortar a garganta de seusobrinho até o osso. Em vez disso, confiava nasede de A Ethelwold por cerveja para impedi-lode causar problema.

— Onde você viu esse cadáver vivo? —perguntei, em vez de responder à sua pergunta.

Ele balançou em direção ao lado norte da casa.

— Do outro lado da estrada. Logo do outrolado.

— Da Waeclingastraet? — perguntei, e eleassentiu.

Então ele estava falando com os

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dinamarqueses, e não só com o morto. AWaeclingastraet é uma estrada que parte deLundene em direção ao noroeste. Inclina-seatravessando a Britânia e terminando no mar daIrlanda, logo ao norte de Gales, e tudo ao sul daestrada era supostamente terra saxã, e tudo aonorte ficava na mão dos dinamarqueses. Essaera a paz que tínhamos naquele ano de 885, masera uma paz com uma cobertura espumante deescaramuças e ódio.

A Ethelwold assentiu.

— O nome dele é Bjorn — disse. — Era umskald na corte de Guthrum e se recusou a virarcristão, por isso Guthrum o matou. Ele podeser invocado da sepultura.

Eu vi.

Olhei para Gisela. Ela era dinamarquesa, e afeitiçaria descrita por A Ethelwold não se

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parecia com nada que eu conhecera entre meuscolegas saxões. Gisela deu de ombros,sugerindo que a magia era igualmente estranhapara ela.

— Quem invoca o morto? — perguntou.

— Um cadáver recente — disse A Ethelwold.

— Um cadáver recente? — perguntei.

— Alguém deve ser mandado ao mundo dosmortos — explicou ele, como se fosse óbvio— para encontrar Bjorn e trazê-lo de volta.

— Então eles matam alguém? — perguntouGisela.

— De que outro modo podem mandar ummensageiro aos mortos? — perguntou AEthelwold em tom belicoso.

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— E esse tal de Bjorn fala inglês? — perguntei.Fiz a pergunta porque sabia que A Ethelwoldfalava pouco ou nenhum dinamarquês.

— Ele fala inglês — respondeu A Ethelwold,carrancudo. Não gostava de ser questionado.

— Quem o levou até ele?

— Uns dinamarqueses — disse ele vagamente.Dei um risinho de desprezo.

— Então uns dinamarqueses vieram e lhedisseram que um poeta morto queria falar comvocê, e você humildemente viajou para a terrade Guthrum?

— Eles me pagaram com ouro — respondeu AEthelwold defensivamente. Ele vivia comdívidas.

— E por que você veio falar conosco?

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A Ethelwold não respondeu. Ficou seremexendo e olhou para Gisela, que estavafiando lã em sua roca.

— Você vai à terra de Guthrum — insisti —,fala com um morto e depois vem me procurar.Por quê?

— Porque Bjorn disse que você também serárei.

— A Ethelwold não havia falado alto, masmesmo assim estendi a mão para silenciá-lo eolhei ansioso na direção da porta, como seesperasse ver um espião ouvindo na escuridãodo cômodo ao lado. Eu não tinha dúvida de queAlfredo possuía espiões em minha casa, eachava que sa-

bia quem eram, mas não estava totalmentecerto de ter identificado todos, motivo peloqual me certificava de que todos os serviçais

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estivessem bem longe do cômodo em que AEthelwold e eu conversávamos. Mesmo assimnão era sensato dizer essas coisas em voz alta.

Gisela havia parado de fiar a lã e estava olhandoA Ethelwold. Eu também.

— Ele disse o quê? — perguntei.

— Disse que você, Uhtred — continuou AEthelwold mais rapidamente —, será coroadorei da Mércia.

— Você andou bebendo?

— Não. Só cerveja. — Ele se inclinou paramim.

— Bjorn, o morto, deseja falar com vocêtambém, para contar-lhe seu destino. Você eeu, Uhtred, seremos reis e vizinhos. Os deusesquerem isso e mandaram um morto me dizer.

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— A Ethelwold estava tremendo ligeiramente esuando, mas não estava bebendo. Alguma coisao havia amedrontado para ficar sóbrio, e issome convenceu de que ele falava a verdade. —Eles querem saber se está disposto a seencontrar com o morto, e se estiver, mandarãochamar você.

Olhei para Gisela, que meramente me olhou devolta, com o rosto inexpressivo. Encarei-a, nãoesperando resposta, mas porque ela era linda,linda demais. Minha dinamarquesa morena,minha linda Gisela, minha jovem esposa, meuamor. Ela devia saber o que eu estava pensando,porque seu rosto comprido e sério foitransformado por um sorriso lento.

— Uhtred será rei? — perguntou ela,rompendo o silêncio e olhando para AEthelwold.

— É o que diz o morto — respondeu A

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Ethelwold em tom de desafio. — E Bjorn ouviuisso das três irmãs.

— Ele queria dizer as Fiandeiras, as Norns, astrês irmãs que tecem nosso destino.

— Uhtred será rei da Mércia? — perguntouGisela, em dúvida.

— E você será a rainha — disse A Ethelwold.

Gisela me olhou de novo. Tinha uma expressãointerrogativa, mas não tentei responder ao quesabia que ela estava pensando. Em vez disso,estava refletindo que não havia rei na Mércia. Oantigo, um vira-lata saxão com co-leiradinamarquesa, havia morrido e não existiasucessor, enquanto o reino propriamente ditoestava dividido entre dinamarqueses e saxões.O irmão da minha mãe fora ealdorman naMércia antes de ser morto pelos galeses, porisso eu tinha sangue mércio. E não havia rei na

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Mércia.

— Acho que é melhor você ouvir o que omorto diz — observou Gisela seriamente.

— Se eles mandarem me chamar — prometi—, irei. — E iria mesmo, porque um mortoestava falando e queria que eu fosse rei.

Alfredo chegou uma semana depois. Era umbelo dia com céu azul pálido no qual o sol domeio-dia pairava baixo sobre uma terra gélida.O gelo bordejava os canais preguiçosos onde orio Temes fluía ao redor da Sceaftes Eye e daWodenes Eye. Galeirões, galinholas emergulhões chapinhavam na beira do gelo,enquanto na lama que ia descongelando naSceaftes Eye um bando de tordos e melroscaçava minhocas e caramujos.

Isso era o lar. Este era meu lar havia dois anos.Meu lar era Coccham, na borda de Wessex,

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onde o Temes fluía em direção a Lundene e aomar. Eu, Uhtred, um senhor da Nortúmbria,exilado e guerreiro, havia me tornadoconstrutor, comerciante e pai. Servia a Alfredo,rei de Wessex, não porque desejasse, masporque lhe havia feito um juramento.

E Alfredo me dera uma tarefa: construir seunovo buhr em Coccham. Um burh era umacidade transforma-da em fortaleza, e Alfredoestava enchendo seu reino de Wessex comlugares assim. Em todas as fronteiras deWessex, no mar, as muralhas iam sendoconstruídas. Um exército dinamarquês poderiainvadir entre as fortalezas, mas descobririamais fortificações ainda no coração das terrasde Alfredo, e cada burh tinha uma guarnição.Alfredo, num raro momento de empolgaçãoselvagem, havia descrito os burhs a mim comovespeiros dos quais homens podiam saltar emenxames para ferroar os atacantes

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dinamarqueses. Estavam sendo feitos burhs emExanceaster e Werham, em Cisseceastre eHastengas, em Aescen-gum e Oxnaforda, emCracgelad e Waeced, e em dezenas de lugaresno meio. Suas muralhas e paliçadas eramprotegidas por lanças e escudos. Wessex estavase tornando uma terra de fortalezas, e minhatarefa era transformar a pequena cidade deCoccham num burh.

O trabalho era feito por cada saxão ocidentaldo sexo masculino com mais de 12 anos.Metade deles trabalhava enquanto a outrametade cuidava dos campos. Em Coccham eudeveria ter quinhentos homens servindo aqualquer hora do dia, mas em geral havia menosde trezentos. Eles cavavam, socavam terra,cortavam madeira para as muralhas, e assimhavíamos erguido uma fortifica-

ção nas margens do Temes. Na verdade, eram

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duas fortificações, uma na margem sul do rio ea outra na Sceaftes Eye, que era uma ilhapartindo o rio em dois canais. Naquele janeirode 885 o trabalho estava quase pronto e ago-

ra nenhum navio dinamarquês podia remar rioacima para atacar as fazendas e as aldeias aolongo da margem do rio.

Podiam tentar, mas deviam passar por minhasnovas fortificações e saberiam que minhastropas iriam segui-los, encurralá-los em terra ematá-los.

Um comerciante dinamarquês chamado Ulfhavia chegado naquela manhã, atracando seubarco no cais da Sceaftes Eye, onde um demeus oficiais examinou a carga para avaliar oimposto. O próprio Ulf, rindo sem dentes,subiu para me cumprimentar. Deu-me umpedaço de âmbar enrolado em pelica.

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— Para a senhora Gisela, senhor — disse ele.—

Ela está bem?

— Está — respondi, tocando o martelo de Torpendurado no pescoço.

— E ouvi dizer que o senhor tem um segundofilho.

— Uma menina. E onde você ouviu falar disso?

— Em Beamfleot — respondeu ele, o que faziasentido. Ulf era do norte, mas nenhum navioestava fazendo a viagem da Nortúmbria aWessex nas profundezas deste inverno frio. Eledevia ter passado a estação no sul da ÂngliaOriental, nas longas e intricadas planícieslamacentas do estuário do Temes. — Não égrande coisa —disse ele, indicando a carga. —Comprei algumas peles e lâminas de machados

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em Grantaceaster, e pensei em vir rio acima,ver se vocês, saxões, ainda têm algum dinheiro.

— Você veio rio acima para ver se terminamosa fortaleza — disse eu, — Você é espião, Ulf,e acho que vou enforcá-lo numa árvore.

— Não vai, não — disse ele, sem se aba-larcom minhas palavras.

— Estou entediado — respondi, pondo o âmbarem minha bolsa. — E olhar um dinamarquês seretorcer numa corda seria divertido, não?

— Então o senhor deve ter gargalhado aopendurar a tripulação de Jarrel.

— Era esse o nome? — perguntei. — Jarrel?Não perguntei.

— Eu vi trinta corpos — disse Ulf, balançandoa cabeça rio abaixo. — Talvez mais, não? Todos

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pendurados em árvores, e pensei: isso pareceobra do senhor Uhtred.

— Só trinta? Eram 53. Eu deveria acrescentarseu cadáver miserável, Ulf, para ajudar acompensar os números.

— O senhor não me quer — disse Ulf,animado.

— Quer um jovem, porque os jovens seretorcem muito mais do que nós, velhos. —Ele espiou seu barco e cuspiu na direção de umgaroto ruivo que estava olhando distraí-do parao rio. — O senhor poderia enforcar aqueledesgraçadozinho. É o filho mais velho da minhamulher, e não passa de um cocô de sapo. Elevai se retorcer.

— Então quem está em Lundene esses dias?

— O earl Haesten vem e vai. Mais vem do que

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vai.

Fiquei surpreso com isso. Eu conheciaHaesten.

Era um jovem dinamarquês que já fora jurado amim, mas havia quebrado o juramento e agoraaspirava a ser um senhor guerreiro. Dizia-seearl, o que me divertia, mas fiquei surpreso aosaber que fora para Lundene. Sabia que elefizera um acampamento murado no litoral daÂnglia Oriental, mas agora havia se movidopara muito mais perto de Wessex, o quesugeria que estava procurando encrenca.

— E o que ele está fazendo? — perguntei comescárnio. — Roubando os patos dos vizinhos?

Ulf respirou fundo e balançou a cabeça.

— Ele tem aliados, senhor.

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Algo em seu tom de voz me deixou cauteloso.

— Aliados?

— Os irmãos Thurgilson — disse Ulf, e tocouseu amuleto do martelo. O nome nãosignificava nada para mim, na época.

— Thurgilson?

— Sigefrid e Erik — disse Ulf, ainda tocando omartelo. — Earls noruegueses, senhor.

Isso era novidade. Em geral os norueguesesnão vinham à Ânglia Oriental ou a Wessex.Com freqüência ouvíamos histórias de seusataques às terras escocesas e à

Irlanda, mas raramente os chefes norueguesesvinham perto de Wessex.

— O que os noruegueses estão fazendo em

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Lundene?

— Chegaram há dois dias, senhor — disse Ulf—, com 22 navios. Haesten estava com eles, elevava nove navios.

Assobiei baixinho. Trinta e um navios era umafrota, e isso significava que os irmãos eHaesten juntos co-mandavam um exército depelo menos mil homens. E

esses homens estavam em Lundene, que ficavana fronteira de Wessex.

Lundene era uma cidade estranha naquelaépoca.

Oficialmente fazia parte da Mércia, mas estanão tinha rei, de modo que Lundene não tinhagovernante. Não era saxã

nem dinamarquesa, e sim uma mistura de

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ambos, um lugar em que um homem podiaenriquecer, morrer ou as duas coisas. Ficavaonde Mércia, Ânglia Oriental e Wessex seencontravam, cidade de mercadores,comerciantes e marinheiros. E agora, se Ulfestava certo, tinha um exército de vikingsdentro de seus muros.

Ulf deu um risinho.

— Eles encurralaram o senhor como um ratonum saco.

Fiquei imaginando como uma frota havia sereunido e subido na maré até Lundene sem queeu descobrisse muito antes que ela partisse.Coccham era o burh mais próximo de Lundenee, em geral, eu ficava sabendo em menos de umdia o que se passava lá, mas agora um inimigoocupara a cidade e eu não soubera de nada.

— Os irmãos mandaram você para me contar

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isso?

— perguntei a Ulf. Estava presumindo que osir-mãos Thurgilson e Haesten só haviamcapturado Lundene para que alguém,provavelmente Alfredo, lhes pagasse para iremembora. Caso em que era do interesse delesque soubéssemos de sua chegada.

Ulf balançou a cabeça.

— Parti enquanto eles chegavam, senhor. Já ésuficientemente ruim ter de pagar as suas taxassem ter de dar metade de minhas mercadorias aeles. — Ulf estremeceu.

— O earl Sigefrid é um homem mau, senhor.Não é alguém com quem se façam negócios.

— Por que eu não soube que eles estavam comHaesten? — perguntei.

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— Não estavam. Estavam na Frankia.Atravessa-ram direto o mar e subiram o rio.

— Com 22 navios cheios de noruegueses —falei azedamente.

— Eles têm de tudo, senhor. Dinamarqueses,frísios, saxões, noruegueses, tudo. Sigefridencontra homens sempre que os deusesesvaziam seus penicos. São homens famintos.Homens sem senhor. Bandidos. Vêm de todaparte.

O homem sem senhor era o pior tipo. Nãodevia qualquer aliança. Não tinha nada além desua espada, sua fome e sua ambição. Eu já foraum homem assim.

— Então Sigefrid e Erik vão significarencrenca? —sugeri afavelmente.

— Sigefrid sim — disse Ulf. — Erik? Ele é o

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mais novo. Os homens falam bem dele, masSigefrid mal pode esperar por encrenca.

— Ele quer cobrar resgates?

— Pode ser — disse Ulf, em dúvida. — Eletem de pagar a todos aqueles homens, e nãoconseguiu nada além de cocô de rato naFrankia. Mas quem vai lhe pagar resgate?Lundene pertence à Mércia, não é?

— Pertence.

— E não há rei na Mércia — disse Ulf. — Issonão é natural, é? Um reino sem rei.

Pensei na visita de A Ethelwold e toquei meuamuleto do martelo de Tor.

— Já ouviu falar de mortos se erguendo? —perguntei a Ulf.

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— De mortos se erguendo? — Ele me encarou,alarmado, e tocou seu amuleto do martelo. —É melhor que os mortos fiquem no Hiflheim,senhor.

— Uma magia antiga, talvez? — sugeri. —Trazendo os mortos de volta?

— A gente ouve histórias — disse Ulf, agorasegurando seu amuleto com força.

— Que histórias?

— Do norte distante, senhor. Da terra de gelo ebétulas. Coisas estranhas acontecem lá. Dizemque homens conseguem voar na escuridão, eouvi falar que os mortos andam nos marescongelados, mas nunca vi uma coisa assim. —Ele levou o amuleto aos lábios e beijou-o. —

Acho que são apenas histórias para amedrontarcrianças nas noites de inverno, senhor.

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— Talvez — disse eu, e me virei quando ummenino veio correndo junto à base da muralharecém-erguida.

Ele pulou as tábuas que eventualmenteformariam a plataforma de luta, escorregounum trecho de lama, subiu o barranco e depoisparou, ofegando demais para conseguir falar.Esperei até ele recuperar o fôlego.

— Haligast, senhor — disse o menino. —Haligast!

Ulf me olhou interrogativamente. Como todosos comerciantes, ele falava um pouco deinglês, mas haligast o deixou perplexo.

— Espírito Santo — traduzi para odinamarquês.

— Está vindo, senhor — ofegou o garoto,empolgado, e apontou rio acima. — Está vindo

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agora.

— O Espírito Santo está vindo? — perguntoUlf, alarmado. Provavelmente não tinha idéiado que fosse o Espírito Santo, mas sabia osuficiente para temer todos os espectros, eminha pergunta recente sobre os mortos-vivoso havia apavorado.

— O navio de Alfredo — expliquei, depois mevirei de novo para o garoto. — O rei está abordo?

— A bandeira dele está voando, senhor.

— Então está — disse eu. Ulf ajeitou a túnica.

— Alfredo? O que ele quer?

— Quer descobrir minhas lealdades —respondi secamente. Ulf riu.

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— Então talvez seja o senhor a se sacudirpendurado numa corda, hein?

— Preciso de lâminas de machado — falei. —Leve suas melhores à casa e mais tardediscutiremos o preço.

Não fiquei surpreso com a chegada de Alfredo.

Naqueles anos ele passava boa parte do tempoentre os burhs que iam crescendo, parainspecionar o trabalho. Estivera em Cocchamuma dúzia de vezes em 12 meses, mas euachava que esta visita não era para examinar asmuralhas, e sim para descobrir por que AEthelwold viera me ver. Os espiões do reihaviam feito seu trabalho, assim o rei tinhavindo me interrogar.

Seu navio ia chegando rapidamente, carregadopela corrente de inverno do Temes. Nos mesesfrios era mais rápido viajar de navio, e Alfredo

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gostava do Haligast porque lhe permitiatrabalhar a bordo enquanto viajava ao longo dafronteira norte de Wessex. O Haligast possuíavinte remos e espaço suficiente para metade daguarda pessoal de Alfredo e a tropa inevitávelde padres. O estandarte do rei, um dragãoverde, voava no topo do mastro, enquanto duasbandeiras pendiam da verga, que sus-tentariauma vela caso o navio estivesse no mar. Umabandeira mostrava um santo, e a outra era umtecido verde bordado com uma cruz branca. Napopa do navio existia uma pequena cabine queatrapalhava o piloto, mas dava a Alfredo espaçopara manter sua mesa. Um segundo navio, oHeofonhlaf, levava o restante da guarda pessoale mais padres ainda. Heofonhlaf significava pãodo céu. Alfredo jamais conseguiria dar nome aum navio.

O Heofonhlaf atracou primeiro e uns vintehomens em cota de malha, levando escudos e

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lanças, desceram para se enfileirar no cais demadeira. O Haligast veio em seguida, com opiloto fazendo a proa bater forte numa estaca,de modo que Alfredo, que esperava no meio donavio, cambaleou. Havia reis que poderiam terestripado um piloto por essa perda dedignidade, mas Alfredo não pareceu notar.Estava falando sério com um monge de rostofino, queixo raspado e bochechas pálidas. EraAsser, de Gales. Eu tinha ouvido falar que oirmão Asser era o novo bicho de estimação dorei, e sabia que ele me odiava, o que era certo,porque eu o odiava. Mesmo assim sorri paraele e ele estremeceu como se eu tivessevomitado em seu manto, inclinando a cabeçamais perto de Alfredo, que poderia ser gêmeodele, porque Alfredo de Wessex parecia muitomais um padre do que um rei. Usava mantopreto e longo e a careca que ia aumentando lhedava o ar tonsurado de um monge. As mãos,como de um escrivão, estavam sempre

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manchadas de tinta, ao passo que o rosto os-sudo era magro, sério, carrancudo e pálido. Abarba era rala. Barbeava-se com freqüência,mas agora tinha uma barba entremeada de fiosbrancos.

Tripulantes prenderam o Haligast, em seguidaAlfredo segurou o cotovelo de Asser edesembarcou com ele.

O galês usava uma cruz enorme no peito, eAlfredo tocou-a brevemente antes de se virarpara mim.

— Meu senhor Uhtred — disse comentusiasmo.

Estava sendo incomumente agradável, nãoporque estivesse feliz em me ver, mas porqueachava que eu estaria tra-mando traição. Haviapoucos outros motivos para eu jantar com seusobrinho A Ethelwold.

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— Meu senhor rei — respondi e fiz umareverência.

Ignorei o irmão Asser. O galês já havia meacusado de pirataria, assassinato e uma dúzia deoutras coisas, e a maior parte de suasacusações era exata, mas eu continuava vivo.Ele me lançou um olhar de desprezo, depois foiandando pela lama, evidentemente indo secertificar de que as freiras do convento deCoccham não estivessem grávidas, bêbadas oufelizes.

Alfredo, seguido por Egwine, que agoracomandava a guarda pessoal, e por seissoldados dessa guarda, caminhou ao longo deminhas fortificações. Olhou para o navio deUlf, mas não disse nada. Eu soube queprecisava lhe contar sobre a captura deLundene, mas decidi deixar essa notícia esperaraté que ele tivesse feito suas perguntas.

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Por enquanto, ele se contentou em inspecionaro trabalho que vínhamos fazendo e nãoencontrou nada para criticar, e nem esperavaisso. O buhr de Coccham estava muito maisavançado do que os outros. A próxima fortalezaa oeste no Temes, em Welengaford, mal haviasaído do chão, muito menos havia construídouma paliçada, e os muros em Oxnaforda haviamcaído no fosso depois de uma semana de chuvaviolenta antes do período do Yule.

Mas o buhr de Coccham estava quaseterminado.

— Disseram-me que o fyrd está relutando emtrabalhar — observou Alfredo. — Com vocêisso não aconteceu?

O fyrd era o exército temporário, reunido pelodistrito, e não somente construía os burhs, mastambém compunha suas guarnições.

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— O fyrd está muito relutante em trabalhar,senhor

— respondi.

— No entanto, você quase terminou, não é?Sorri.

— Enforquei dez homens e encorajei orestante a se entusiasmar. Ele parou num localde onde podia olhar rio abaixo. Cisnestornavam a paisagem linda. Observei-o.

As rugas em seu rosto estavam mais fundas e apele, mais pálida. Parecia doente, mas afinal decontas Alfredo de Wessex era um homemsempre doente. Seu estômago do-

ía e as tripas doíam, e vi uma careta e quandouma pontada de dor o atravessou.

— Ouvi dizer — disse ele friamente — que

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você os enforcou sem julgamento?

— Sim, senhor.

— Há leis em Wessex — disse ele, sério.

— E se o burh não for construído não haveráWessex.

— Você gosta de me desafiar — observou eleem tom afável.

— Não, senhor, eu lhe fiz um juramento.Cumpro o seu trabalho.

— Então não enforque mais homens semjulgamento justo — disse incisivamente,depois se virou e olhou para a margem mércia,do outro lado do rio. — Um rei deve trazerjustiça, senhor Uhtred. Esse é o trabalho do rei.E se uma terra não tiver rei, como pode haverlei?

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— Ele ainda falava em tom ameno, mas estavame testando, e por um momento senti alarma.Eu havia presumido que ele viera descobrir oque A Ethelwold havia me dito, mas suamenção à Mércia e à falta de um rei naquelelugar sugeria que já soubesse do que foradiscutido naquela noite de inverno frio e chuvaforte. — Há homens — continuou ele, aindaolhando para a margem mércia — quegostariam de ser rei da Mércia. — Alfredoparou e eu tive certeza de que ele sabia tudo oque A Ethelwold havia me dito, mas então eletraiu sua ignorância. — Meu sobrinho AEthelwold? — sugeriu.

Dei uma gargalhada que saiu alta demais porcausa de meu alívio.

— A Ethelwold! — respondi. — Ele não querser rei da Mércia! Ele quer seu trono, senhor.

— Ele lhe disse isso? — perguntou Alfredo

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incisivamente.

— Claro que disse. Ele diz isso a todo mundo!

— Foi por isso que veio ver você? —perguntou Alfredo, incapaz de continuarescondendo a curiosidade.

— Ele veio comprar um cavalo, senhor —menti.

— A Ethelwold quer meu garanhão, Smoca, eeu disse que não. — O pêlo de Smoca era umamistura incomum de cinza e preto, daí o seunome, que significava fumaça, e havia ganhadotodas as corridas que disputara na vida e,melhor, não tinha medo de homens, escudos,armas ou barulho. Eu poderia vender Smoca aqualquer guerreiro da Britânia.

— E falou que quer ser rei? — perguntouAlfredo cheio de suspeitas.

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— Claro que falou.

— Você não me disse na ocasião — disse eleem tom de censura.

— Se eu lhe contasse todas as vezes que AEthelwold falasse de traição, o senhor jamaisdeixaria de ter notícias minhas. O que lhe digoagora é que o senhor deveria cortar a cabeçadele.

— Ele é meu sobrinho — respondeu Alfredorigidamente — e tem sangue real.

— Mesmo assim pode ter a cabeça cortada —insisti.

Ele balançou a mão, petulante, como se minhaidéia fosse ridícula.

— Pensei em torná-lo rei da Mércia, mas eleperderia o trono.

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— Perderia — concordei.

— Ele é fraco — disse Alfredo com escárnio.— E

a Mércia precisa de um governante forte.Alguém para amedrontar os dinamarqueses. —Confesso que naquele momento pensei que elefalava de mim e estava pronto para agradecer,até mesmo cair de joelhos e segurar sua mão,mas então ele me esclareceu. — Seu primo,acho.

— A Ethelred! — perguntei, incapaz deesconder o desprezo. Meu primo era um idiotapresunçoso, cheio de si, mas também erapróximo de Alfredo. Tão próximo que iria secasar com a filha mais velha de Alfredo.

— Ele pode ser ealdorman na Mércia — disseAlfredo — e governar com minha bênção. —Em outras palavras, meu primo miserável

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governaria a Mércia preso às rédeas de Alfredoe, para ser sincero, essa era uma solu-

ção melhor para Alfredo do que deixar alguémcomo eu herdar o trono da Mércia. A Ethelred,casado com AEthelflaed, tinha maisprobabilidade de ser homem de Alfredo, e aMércia, ou pelo menos a parte dela ao sul daWaeclingastraeet, seria como uma província deWessex.

— Se meu primo será senhor da Mércia, entãoserá

senhor de Lundene?

— Claro.

— Então ele tem um problema, senhor — disseeu, e confesso que falei com algum prazerdiante da perspectiva de meu primo presunçosoter de lidar com mil bandidos comandados por

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earls noruegueses. — Uma frota de 31 navioschegou a Lundene há dois dias. Os earlsSigefrid e Erik Thurgilson os comandam.Haesten, de Beamfleot, é

aliado deles. Pelo que sei, senhor, Lundeneagora pertence aos noruegueses edinamarqueses.

Por um momento Alfredo não disse nada,apenas olhou para as águas das enchentesassombradas pelos cisnes. Parecia mais pálidodo que nunca. Sua mandíbula se apertou.

— Você parece satisfeito — disse ele comamargura.

— Não é o que eu pretendia, senhor.

— Como, em nome de Deus, isso pôdeacontecer?

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— perguntou irado. Em seguida se virou eolhou para os muros do burh. — Os irmãosThurgilson estavam na Frankia.

Eu podia nunca ter ouvido falar de Sigefrid eErik, mas Alfredo fazia questão de saber ondeos bandos vikings perambulavam.

— Agora estão em Lundene — observei semremorso.

Alfredo ficou quieto de novo, e eu soube o queele estava pensando. Estava pensando que, se oTemes era nossa estrada para outros reinos,para o restante do mundo, e se osdinamarqueses e os noruegueses bloqueassemo Temes, Wessex estava separado de boa partedo comércio com o mundo. Claro que haviaoutros portos e outros rios, mas o Temes é ogrande rio que suga as embarcações de todosos grandes mares.

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— Eles querem dinheiro? — perguntouamargo.

— Isso é problema da Mércia, senhor —sugeri.

— Não seja idiota! — respondeu ele comrispidez.

— Lundene pode ficar na Mércia, mas o riopertence aos dois reinos. — Ele se virou denovo, olhando rio abaixo quase como seesperasse ver os mastros dos naviosnoruegueses aparecendo a distância. — Se elesnão forem embora — disse baixinho —, terãode ser expulsos.

— Sim, senhor.

— E isso — disse Alfredo decisivamente —será

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meu presente de casamento ao seu primo.

— Lundene?

— E você irá consegui-lo — disse Alfredocom selvageria. — Você irá restaurar Lundeneao domínio mércio, senhor Uhtred. Na festa deSão David diga-me de que força você precisapara garantir o presente. — Ele franziu a testa,pensando. — Seu primo comandará o exército,mas ele é ocupado demais para planejar acampanha. Você fará os preparativosnecessários e irá aconselhá-lo.

— Irei? — perguntei azedamente.

— Sim, irá.

Alfredo não ficou para a refeição. Fez suasorações na igreja, deu prata ao convento e emseguida embarcou no Haligast e desapareceurio acima.

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E eu deveria capturar Lundene e dar toda aglória a meu primo A Ethelred.

O chamado para encontrar o morto veio duassemanas depois e me pegou de surpresa.

A cada manhã, a não ser que a neve estivessedensa demais para uma viagem fácil, umamultidão de pedintes esperava diante de meuportão. Eu era o governante de Coccham, ohomem que distribuía justiça, e Alfredo medera esse poder, sabendo que era essencial paraque seu burh fosse construído. Ele havia medado mais. Eu tinha direito a um décimo decada colheita no norte de Berrocscire, recebiaporcos, gado e grãos, e desses rendimentospagava a madeira que fazia as muralhas e asarmas que as guardavam. Havia opor-Umidadenisso, e Alfredo suspeitava de mim, motivopelo qual havia me dado um padre ardilosochamado Wulfstan, cuja tarefa era garantir que

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eu não roubasse demais. No entanto, eraWulfstan que roubava. Tinha vindo para mimnaquele verão, meio rindo, e observou que astaxas que coletávamos dos mercadores queusavam o rio eram imprevisíveis, o quesignificava que Alfredo jamais poderia avaliarse estávamos mantendo a contabilidade correta.Ele esperou minha aprovação e, em vez disso,ganhou um cascudo em seu crânio tonsurado.Mandei-o para Alfredo sob guarda, com umacarta descrevendo sua desonestidade, entãoroubei eu mesmo as taxas. O padre havia sidoidiota. Você nunca, nunca deve contar seuscrimes aos outros, a não ser que sejam tãograndes a ponto de não poderem ficarescondidos, e nesse caso descreve-os comopolítica ou ação de Estado.

Eu não roubava muito, não mais do que outrohomem em minha posição colocaria de lado, eo trabalho nas muralhas do burh provou a

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Alfredo que eu estava fazendo meu serviço.Sempre adorei construir, e a vida tem poucosprazeres comuns maiores do que bater papocom os homens que cortam, moldam e juntammadeira. Eu também distribuía a justiça, e faziaisso bem, porque meu pai, que fora senhor deBebbanburg, na Nortúmbria, havia me ensinadoque o serviço de um senhor era para com opovo que ele governava, e que o povo perdoariamuitos pecados do senhor enquanto ele oprotegesse. Assim, a cada dia eu ouvia ossofrimentos, e cerca de duas semanas depois davisita de Alfredo lembro-me de uma manhã dechuva fraca em que cerca de duas dúzias depessoas se ajoelharam diante de mim na lamaem frente de meu castelo. Não me lembro detodas as petições, mas sem dúvida eram asreclamações de sempre, que marcos de limitehaviam sido movidos ou que o preço de umcasamento não fora pago.

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Tomei as decisões rapidamente, avaliando osjulgamentos segundo a postura dos suplicantes.Em geral, achava que um suplicante desafiadorprovavelmente estava mentindo, ao passo que olacrimoso provocava minha piedade. Duvido deque eu tomasse todas as decisõescorretamente, mas as pessoas ficavam bemcontentes com meus julgamentos e sabiam queeu não recebia subornos para favo-recer osricos.

Mas me lembro de um suplicante naquelamanhã.

Estava sozinho, o que era incomum, já que amaioria das pessoas chegava com amigos ouparentes para jurar a verdade das solicitações,mas esse homem veio sozinho e continuamentedeixava os outros passarem à frente. Semdúvida queria ser o último a falar comigo, esuspeitei de que ele queria muito de meu

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tempo e fiquei tentado a terminar a sessão damanhã sem lhe conceder audiência, mas no fimdeixei que o sujeito falasse e ele foi misericor-diosamente breve.

— Bjorn perturbou minha terra, senhor —disse ele.

Estava ajoelhado e eu só podia ver dele seucabelo emaranhado e com uma crosta desujeira.

Por um momento não reconheci o nome.

— Bjorn? Quem é Bjorn?

— O homem que perturba minha terra à noite,senhor.

— Um dinamarquês? — perguntei perplexo.

— Ele vem da sepultura, senhor — disse o

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homem, e então entendi e o fiz silenciar, paraque o padre que anotava meus julgamentos nãoficasse sabendo muita coisa.

Levantei a cabeça do suplicante e vi um rostoesquelético. Pela linguagem achei que erasaxão, mas talvez fosse um dinamarquês quefalasse nossa língua perfeitamente, por issotestei-o falando dinamarquês.

— De onde você vem?

— Do terreno perturbado, senhor — respondeuele em dinamarquês, mas, pelo modo comoembolava as palavras, era óbvio que não eradinamarquês.

— Do outro lado da estrada? — falei inglês denovo.

— Sim, senhor.

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— E quando Bjorn perturbará sua terra denovo?

— Depois de amanhã, senhor. Virá depois donascer da lua.

— Você foi mandado para me guiar?

— Sim, senhor.

Partimos no dia seguinte. Gisela queria ir, masnão deixei porque não confiava totalmente nochamado, e por causa dessa desconfiança fuicom seis homens: Finan, Clapa, Sihtric,Rypere, Eadric e Cenwulf. Os últimos trêseram saxões, Clapa e Sihtric eramdinamarqueses e Finan era o feroz irlandês queco-mandava minhas tropas domésticas, e todosos seis eram jurados a mim. Minha vida eradeles assim como a deles era minha. Giselaficou atrás dos muros de Coccham, guardadapelo fyrd e pelo restante de minhas tropas

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domésticas.

Cavalgávamos usando cota de malha elevávamos armas. Fomos para o oeste e o norteprimeiro, porque o Temes estava inchado peloinverno e precisávamos seguir por um longocaminho rio acima até encontrar um vausuficientemente raso para ser atravessado. Issofoi em Welengaford, outro burh, e notei comoos muros de terra estavam inacabados e como amadeira para fazer as pali-

çadas estava apodrecendo na lama, semacabamento. O

comandante da guarnição, um homem chamadoOslac, quis saber por que estávamosatravessando o rio, e era seu direito saberporque ele guardava essa parte da fronteiraentre Wessex e a Mércia sem lei. Eu disse queum fugitivo havia escapado de Coccham esupostamente estaria escondido na margem

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norte do Temes, e Oslac acreditou. A históriachegaria logo a Alfredo.

O homem que trouxera a convocação era nossoguia. Chamava-se Huda e contou que servia aum dinamarquês chamado Eilaf, dono de umapropriedade que acompanhava o lado leste daWaeclingastraet. Isso tornava Eilaf um homemda Ânglia Oriental e súdito do rei Guthrum.

— Eilaf é cristão? — perguntei a Huda.

— Todos somos cristãos, senhor — disseHuda. —

O rei Guthrum exige isso.

— Então o que Eilaf usa no pescoço?

— O mesmo que o senhor.

Eu usava o martelo de Tor porque não era

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cristão, e a resposta de Huda me informou queEilaf, como eu, cultuava os deuses maisantigos, mas para agradar ao rei, Guthrum,fingia crença no deus cristão. Eu conheceraGuthrum nos dias em que ele liderava grandesexércitos para atacar Wessex, mas agora eleestava ficando velho.

Havia adotado a religião do inimigo, pareciaque não queria mais governar toda a Britânia ese contentava com os amplos campos férteis daÂnglia Oriental como seu reino.

No entanto, havia muitos descontentes em suasterras.

Sigefrid, Erik, Haesten e provavelmente Eilaf.Eram noruegueses e dinamarqueses, eramguerreiros, faziam sacrifícios a Tor e a Odin,mantinham as espadas afiadas e so-nhavam,como sonham todos os nórdicos, com as terrasmais ricas de Wessex.

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Cavalgamos através da Mércia, a terra sem rei,e notei que muitas fazendas haviam sidoqueimadas, de modo que agora o único traço desua existência era um trecho de terra calcinadaonde crescia o mato. Mais mato cobria o que jáfora terra arada. Jovens aveleiras tinhaminvadido os pastos. Onde as pessoas aindaviviam, no medo, e quando nos viam chegandocorriam para as florestas ou então se trancavamatrás de paliçadas.

— Quem governa aqui? — perguntei a Huda.

— Dinamarqueses — disse ele, e em seguidabalan-

çou a cabeça para o oeste. — Lá, saxões.

— Eilaf não quer esta terra?

— Ele tem muitas, senhor, mas os saxões oinco-modam. Segundo o tratado entre Alfredo

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e Guthrum, esta terra era saxã, mas osdinamarqueses são famintos por terras eGuthrum não podia controlar todos os seusthegns. Portanto, esta era uma terra de batalhas,um lugar em que os dois lados travavam umaguerra soturna, pequena e interminável, e osdinamarqueses estavam me oferecendo a coroa.

Sou saxão. Do norte. Sou Uhtred deBebbanburg, mas fui criado pelosdinamarqueses e conhecia seus costumes.Falava sua língua, havia me casado com umadinamarquesa e cultuava seus deuses. Se eufosse rei ali, os saxões saberiam que tinham umgovernante saxão, enquanto os dinamarquesesme aceitariam porque eu fora filho do earlRagnar. Mas ser rei aqui era me virar contraAlfredo e, se o morto havia falado a verdadesobre colocar o sobrinho bêbado de Alfredo notrono de Wessex, quanto tempo A Ethelwoldduraria? Menos de um ano, eu achava, antes que

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os dinamarqueses o matassem, e então toda aInglaterra estaria sob domínio dinamarquês,menos a Mércia, onde eu, um saxão quepensava como dinamarquês, seria rei. E quantotempo os dinamarqueses iriam me tolerar?

— Você quer ser rei? — havia me perguntadoGisela na noite anterior à nossa partida.

— Nunca pensei que quisesse — respondicautelosamente.

— Então por que vai?

Eu havia olhado para o fogo.

— Porque o morto traz uma mensagem dasfiandeiras do destino.

— Não se pode evitar as fiandeiras do destino—disse ela baixinho. Wyrd bid ful ãraed.

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— Portanto, devo ir — falei —, porque odestino exige. E porque quero ver um mortofalar.

— E se o morto disser que você será rei?

— Então você será rainha.

— E você lutará contra Alfredo?

— Se as fiandeiras do destino disserem isso.

— E seu juramento a ele?

— As fiandeiras sabem a resposta, mas eu não.

E agora cavalgávamos junto a colinas cobertasde bétulas que se inclinavam a leste e a norte.Passamos a noite numa fazenda deserta e um denós ficava sempre acordado. Nada nosperturbou e, ao amanhecer, sob um céu cor deaço de espada, continuamos cavalgando. Huda

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ia à frente, montando um de meus cavalos.Conversei com ele durante um tempo, edescobri que ele era caçador e que haviaservido a um senhor saxão morto por Eilaf, eque se considerava contente sob o comando dodinamarquês. Suas respostas ficaram maiscarrancudas e mais curtas à medida que nosaproximávamos da Waeclingastraet, de modoque, depois de um tempo, fiquei para trás,cavalgando ao lado de Finan.

— Confia nele? — perguntou Finan, assentindopara Huda. Dei de ombros.

— O dono dele obedece a Sigefrid e Haesten, eeu conheço Haesten. Salvei a vida dele, e issosignifica alguma coisa.

Finan pensou nisso.

— Você salvou a vida dele? Como?

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— Eu o resgatei dos frísios. Ele fez juramentoa mim.

— E violou o juramento?

— Violou.

— Então Haesten não é de confiança — disseFinan com firmeza. Não falei nada. Três cervosestavam prontos para fugir, do lado oposto deuma pastagem vazia.

Seguimos até uma trilha cheia de mato ao ladode uma cerca viva, onde cresciam crocos. — Oque eles querem

— continuou Finan — é Wessex. E para tomarWessex precisam lutar. E sabem que você é omaior guerreiro de Alfredo.

— O que eles querem é o burh de Coccham.

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E para conseguir isso me ofereceriam a coroada Mércia, mas eu não havia revelado essaoferta a Finan nem a qualquer outro homem. Sóhavia dito a Gisela.

Claro que eles queriam muito mais. QueriamLundene porque isso lhes garantia uma cidademurada no Temes, mas Lundene ficava namargem mércia e não iria ajudá-los a invadirWessex. Mas se eu lhes desse Coccham elesestariam na margem sul e poderiam usarCoccham como base para atacar o interior deWessex. No mínimo Alfredo lhes pagaria paradeixar Coccham, e assim eles ganhariam muitaprata mesmo que fracassassem em desa-lojá-lodo trono.

Mas eu achava que Sigefrid, Erik e Haesten nãoestavam atrás meramente de prata. O prêmioera Wessex, e para ganhar Wessex precisavamde homens. Guthrum não iria ajudá-los, a

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Mércia estava dividida entre dinamarqueses esaxões e podia oferecer poucos homensdispostos a deixar seus lares desguarnecidos,mas para além da Mércia ficava a Nortúmbria, ea esta tinha um rei dinamarquês que comandavaa lealdade de um grande guerreiro dinamarquês.O rei era irmão de Gisela, e o guerreiro,Ragnar, era meu amigo. Ao me comprar elesacreditavam que poderiam trazer a Nortúmbriapara sua guerra. O norte dinamarquêsconquistaria o sul saxão. Era isso quedesejavam. Era isso que os dinamarqueseshaviam desejado durante toda a minha vida. Eusó precisava violar meu juramento para comAlfredo e me tornar rei da Mércia, e a terra quealguns chamavam de Inglaterra iria se tornarDaneland, terra dinamarquesa. Eu achava queera por isso que o morto havia me chamado.

Chegamos à Waeclingastraeet ao pôr-do-sol.Os romanos haviam reforçado a estrada com

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um leito de cas-calho e bordas de pedras, eparte do trabalho ainda aparecia através dopálido capim de inverno ao lado do qual, nummarco coberto de musgo, estava escritoDurocobrivis V.

— O que é Durocobrivis? — perguntei a Huda.

— Nós chamamos de Dunastopol — disse eledando de ombros, para indicar que o lugar erainsignifi-cante.

Atravessamos a estrada. Num país bemgovernado eu poderia esperar guardaspatrulhando-a para proteger os viajantes, masnão havia nenhum à vista. Apenas corvosvoando até uma floresta ali perto e nuvensprateadas se estendendo pelo céu do oeste,enquanto à nossa frente a escuridãopermanecia inchada e pesada acima da ÂngliaOriental. Morros baixos ficavam ao norte, nadireção de Dunastopol, e Huda nos guiou em

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direção àqueles morros subindo por um valecomprido e raso em que macieiras nuas sedestacavam na semi-escuridão. A noite haviacaído quando chegamos ao castelo de Eilaf.

Os homens de Eilaf me receberam como se eujá

fosse rei. Serviçais me esperavam junto aoportão de sua paliçada para pegar nossoscavalos, e outro se ajoelhou junto à porta docastelo para me oferecer uma tigela de águapara me lavar e um pano para enxugar as mãos.Um guardião pegou minhas duas espadas, acomprida Bafo de Serpente e a estripadorachamada Ferrão de Vespa. Pegou-asrespeitosamente, como se lamentasse ocostume de que nenhum homem poderia portarespada dentro de um castelo, mas esse era umbom costume. Espadas e cerveja não combinambem.

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O castelo estava apinhado. Havia pelo menosquarenta homens, a maioria usando malha oucouro, de pé

dos dois lado da lareira central na qual umgrande fogo chamejava enchendo de fumaça astraves do teto. Alguns homens fizeramreverência quando entrei, outros só me olharamenquanto eu ia cumprimentar o anfitrião, queestava com a esposa e dois filhos ao lado dalareira. Haesten se encontrava ao lado deles,rindo. Um serviçal me trouxe um chifrecontendo cerveja.

— Senhor Uhtred! — cumprimentou Haestenem voz alta, de modo que cada homem emulher no castelo soubessem quem eu era. Oriso de Haesten era um tanto malicioso, comose ele e eu compartilhássemos uma piadasecreta naquele castelo. Haesten tinha cabelocor de ouro, rosto quadrado, olhos brilhantes e

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usava uma túnica de lã

fina, tingida de verde, sobre a qual havia umagrossa corrente de prata. Seus braços estavamcheios de braceletes de prata e ouro, e brochesde prata estavam presos em suas botas longas.— É bom vê-lo, senhor — disse ele, e me fezuma levíssima reverência.

— Ainda vivo, Haesten? — perguntei,ignorando meu anfitrião.

— Ainda vivo, senhor.

— E não é de espantar — disse eu. — Naúltima vez em que o vi, você estava emEthandun.

— Um dia chuvoso, senhor, pelo que melembro.

— E você estava correndo como uma lebre,

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Haesten.

Vi a sombra atravessar seu rosto. Eu o haviaacusado de covardia, mas ele merecia umataque de minha parte porque havia prestadojuramento de ser meu homem, e traíra ojuramento ao me abandonar.

Eilaf, sentindo encrenca, pigarreou. Era umhomem pesado, alto, com o cabelo ruivo maisluminoso que já vi.

Era encaracolado, a barba também era, e ambostinham cor de fogo. Eilaf, o Vermelho, comoera chamado, e mesmo sendo alto e pesado, dealgum modo parecia menor do que Haesten,que tinha uma confiança sublime em suaspróprias capacidades.

— Seja bem-vindo, senhor Uhtred — disseEilaf.

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Ignorei-o. Haesten estava me observando, orosto ainda anuviado, mas então eu ri.

— Mas todo o exército de Guthrum correunaquele dia — disse eu —, e os que nãofugiram estão todos mortos. Portanto, ficofeliz por ter visto você correr.

Então ele sorriu.

— Matei oito homens em Ethandun — disseele, ansioso para que seus homens soubessemque não era covarde.

— Então fico aliviado porque não enfrentei suaespada — respondi, recuperando meu insultoanterior com lisonja falsa. Depois me virei parao ruivo Eilaf. — E você

— perguntei —, esteve em Ethandun?

— Não, senhor — disse ele.

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— Então perdeu uma luta rara. Não foi,Haesten?

Uma luta para ser lembrada.

— Um massacre na chuva, senhor — disseHaesten.

— E eu ainda manco por causa daquilo — falei,o que era verdade, mas a coxeadura era pequenae nem um pouco inconveniente.

Fui apresentado a mais três homens, todosdinamarqueses. Estavam bem-vestidos e tinhambraceletes para mostrar as proezas. Agoraesqueci seus nomes, mas estavam ali para mever e haviam trazido seus seguidores.

Enquanto Haesten fazia as apresentações,entendi que ele estava querendo aparecer àminha custa. Estava provando que eu havia mejuntado a ele, e que, portanto, era seguro se

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juntarem a ele. Haesten estava preparando arebelião naquele castelo. Puxei-o de lado.

— Quem são esses sujeitos? — perguntei.

— Eles têm terras e homens nesta parte doreino de Guthrum.

— E você quer os homens deles?

— Devemos fazer um exército — disseHaesten simplesmente.

Olhei-o de cima a baixo. Essa rebelião, pensei,não era somente contra Guthrum da ÂngliaOriental, mas contra Alfredo de Wessex, e sequisesse ter sucesso, toda a Britânia teria deser erguida por meio de espada, lança emachado.

— E se eu me recusar a me juntar a você?

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— O senhor irá se juntar — disse ele comconfian-

ça.

— Irei?

— Porque esta noite, senhor, o morto irá lhefalar.

— Haesten sorriu, e nesse momento Eilafinterveio dizendo que tudo estava pronto.

— Vamos levantar o morto — disse Haestendra-maticamente, tocando o amuleto domartelo pendurado no pescoço. — Em seguidafestejaremos. — Ele indicou a porta no fundodo salão. — Por aqui, por favor, senhor.

Por aqui.

Assim, fui conhecer o morto.

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Haesten nos guiou para a escuridão e melembro de ter pensado em como era fácil dizerque os mortos se erguiam e falavam se onegócio era feito numa escuridão tamanha.Como saberíamos? Poderíamos ouvir ocadáver, talvez, mas não poderíamos vê-lo, e eujá ia protestar quando dois homens de Eilafvieram do castelo com ga-

lhos acesos que chamejavam luminosos nanoite úmida.

Guiaram-nos passando por um cercado deporcos, e os olhos dos animais refletiram a luzdo fogo. Havia chovido enquanto estávamos nocastelo, apenas uma chuva passa-geira deinverno, mas a água ainda pingava dos galhosnus.

Finan, nervoso com a feitiçaria que iríamostestemunhar, ficou perto de mim.

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Seguimos um caminho morro abaixo até umpequeno pasto ao lado do que achei trata-se deum celeiro, e ali as tochas foram jogadas emmontes de madeira já preparados, que pegaramfogo rápido, de modo que as chamas saltaramiluminando a parede de madeira e a palhamolhada do teto do celeiro. Enquanto a luzaumentava, vi que não era um pasto, e sim umcemitério. O pequeno campo era pontilhado depequenos montes de terra, e era bem cercadopara impedir que animais desenterrassem osmortos.

— Aquela era nossa igreja — explicou Huda.Ele havia aparecido a meu lado e assentiu parao que eu havia presumido que fosse um celeiro.

— Você é cristão? — perguntei.

— Sim, senhor. Mas agora não temos padre. —Ele fez o sinal-da-cruz. — Nossos mortos vãopara o descanso sem confissão.

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— Eu tenho um filho num cemitério cristão —falei, e me perguntei por que teria dito isso.Raramente pensava em meu filho morto nainfância. Eu não o havia conhecido. Sua mãe eeu estávamos separados. No entanto, melembrei dele naquela noite escura, naquelelugar molhado dos mortos. — Por que umscald dinamarquês está

enterrado numa sepultura cristã? — perguntei aHuda. —

Você me disse que ele não era cristão.

— Ele morreu aqui, senhor, e nós o enterramosantes de sabermos disso. Talvez por isso eleesteja inquieto, não?

— Talvez — respondi, depois ouvi a agitaçãoatrás de mim e desejei ter pensado em pedirminhas espadas antes de sair do castelo deEilaf.

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Virei-me, esperando um ataque, e em vez dissovi dois homens arrastando um terceiro emnossa direção. O

terceiro era magro, jovem e louro. Seus olhospareciam enormes à luz das chamas. Estavagemendo. Os homens que o arrastavam erammuito maiores e a luta dele era inútil. Olheiinterrogativamente para Haesten.

— Para levantar o morto, senhor — explicouele

—, temos de mandar um mensageiro atravessaro golfo.

— Quem é ele?

— Um saxão — respondeu Haesten sem darimportância.

— Ele merece morrer? — perguntei. Eu não

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tinha escrúpulos com relação à morte, massentia que Haesten mataria como uma criançaafogando um camundongo, e não queria ter amorte de um homem em minha consciência seesse homem não tivesse merecido morrer. Istonão era uma batalha, em que um homem tinha achance de ir para as alegrias eternas do castelode Odin.

— Ele é ladrão — disse Haesten.

— Duas vezes ladrão — acrescentou Eilaf.

Fui até o rapaz e levantei sua cabeça peloqueixo, assim vi que ele tinha a marca de umladrão condenado, queimada na testa.

— O que você roubou? — perguntei.

— Uma capa, senhor — disse ele numsussurro. —

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Estava com frio.

— Esse foi o primeiro roubo? Ou o segundo?

— O primeiro foi um cordeiro — respondeuEilaf atrás de mim.

— Eu estava faminto, senhor — disse o rapaz—, e meu filho estava morrendo de fome.

— Você roubou duas vezes — falei —, o quesignifica que deve morrer. — Essa era a lei,mesmo neste lugar sem lei. O rapaz estavachorando, mas continuou a me olhar. Pensouque eu poderia ceder e ordenar que sua vidafosse poupada, mas virei-me. Eu havia roubadomuitas coisas na vida, quase todas mais valiosasdo que um cordeiro ou uma capa, mas eu rouboenquanto o dono está

olhando e enquanto pode defender suapropriedade com a espada. O ladrão que rouba

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no escuro é que merece morrer.

Huda estava fazendo o sinal-da-cruzrepetidamente.

Estava nervoso. O jovem ladrão gritou palavrasincompreensíveis para mim até que um de seusguardas lhe deu um tapa na boca, e então elesimplesmente baixou a cabe-

ça e chorou. Finan e meus três saxõesseguravam as cruzes penduradas no pescoço.

— Está pronto, senhor? — perguntou-meHaesten.

— Sim — respondi, tentando parecerconfiante, mas na verdade me sentia tãonervoso quanto Finan. Há

uma cortina entre nosso mundo e as terras dosmortos, e parte de mim queria que ela

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permanecesse fechada. Procureiinstintivamente o punho de Bafo de Serpente,mas, claro, ela não estava comigo.

— Ponha a mensagem na boca dele — ordenouHaesten. Um dos guardas tentou abrir a boca dorapaz, mas o prisioneiro resistiu até que umafaca foi enfiada entre seus lábios e ele aescancarou. Um objeto foi enfiado sobre sualíngua. — Uma corda de harpa — explicouHaesten —, e Bjorn saberá o significado.Matem-no agora —acrescentou aos guardas.

— Não! — gritou o rapaz, cuspindo a cordaenrolada. Começou a gritar e chorar enquantoos dois homens o arrastavam até um dosmontes de terra. Cada um ficou de um doslados do monte, segurando o prisioneiro acimada sepultura. A lua estava prateando umaabertura entre as nuvens. O pátio da igrejacheirava a chuva nova. — Não, por favor, não.

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— O rapaz estava tremendo, chorando. —

Eu tenho mulher, tenho filhos, não! Por favor!

— Matem-no — ordenou Eilaf.

Um dos guardas empurrou a corda de harpa devolta para a boca do mensageiro, depoismanteve a mandíbula fechada. Em seguida,inclinou para trás a cabeça do jovem, comforça, expondo a garganta, e o segundodinamarquês cortou-a com um movimento deida e volta, rápido e treinado. Ouvi um somcontido, gutural, e vi o sangue saltar negro à luzdas chamas. Molhou os dois homens, caiusobre a sepultura e bateu molhado na gramaúmida.

O corpo do mensageiro se contorceu e lutoupor um tempo enquanto o fluxo de sangue iadiminuindo. Então, finalmente, o rapaz seafrouxou em meio aos guardas que deixaram as

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últimas gotas de sangue caírem fracamente nasepultura. Só quando não corria mais sangueeles o arrastaram para longe, largando ocadáver ao lado da cerca de madeira docemitério. Eu estava prendendo o fôlego.Nenhum de nós se mexia. Uma coruja, com asasas espanto-samente brancas na noite, vooulogo acima de mim e eu toquei instintivamenteo amuleto do martelo, convencido de que tinhavisto a alma do ladrão ir para o outro mundo.

Haesten ficou perto da sepultura encharcada desangue.

— Você tem sangue, Bjorn! — gritou ele. —Eu lhe dei uma vida! Mandei-lhe umamensagem!

Nada aconteceu. O vento suspirou na palha daigreja. Em algum lugar um animal se moveu naescuridão e depois ficou parado. Um pedaço delenha despencou numa das fogueiras e fagulhas

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saltaram para cima.

— Você tem sangue! — gritou Haesten denovo.

— Precisa de mais sangue?

Pensei que nada iria acontecer. Que eu haviadesperdiçado a viagem. E então a sepultura semexeu.

DOIS

O monte da sepultura se mexeu.

Lembro-me de um frio apertando meu coraçãoe do terror me consumindo, mas não podiarespirar nem me mover. Fiquei fixo, olhando,esperando o horror.

A terra caiu para dentro, ligeiramente, como seuma toupeira estivesse cavando para sair de seu

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morrinho.

Mais solo se remexeu e uma coisa cinza surgiu.A coisa cinza estremeceu e eu vi que a terraestava caindo mais depressa enquanto a coisacinza se erguia do monte. Estava na semi-escuridão porque as fogueiras ficavam atrás denós e nossas sombras eram lançadas sobre ofantasma que nascera da terra invernal, umfantasma em forma de um cadáver imundo quesaiu cambaleando de sua cova partida.

Vi um morto que estremeceu, meio caiu, lutoupara encontrar o equilíbrio e finalmente ficoude pé.

Finan agarrou meu braço. Ele não teve idéia deque fez isso. Huda estava ajoelhado esegurando a cruz no pescoço. Eu só olhava.

E o cadáver fez um ruído como de uma tosse,en-gasgado, como o estertor de morte de um

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homem. Algo foi cuspido de sua boca, e eleengasgou de novo, e lentamente se desdobroupara ficar totalmente de pé, e à luz sombreadadas fogueiras vi que o morto vestia umamortalha cinza e suja. Tinha um rosto pálidosujo de terra, um rosto intocado pela podridão.O cabelo comprido pendia escorrido e branconos ombros magros. Ele respirava, mas comdificuldade, assim como um homem agonizantetinha dificuldade para respirar. E isso estavacerto, lem-

bro-me de ter pensado, porque esse homemestava retornando da morte e estariaexatamente como quando havia feito a jornadarumo a ela. Deu um gemido longo, depois tiroualgo da boca. Jogou aquilo em nossa direção edei um passo involuntário para trás antes de verque era uma corda de harpa enrolada. Então eusoube que a coisa impossível que via era real,porque tinha visto os guardas forçarem a corda

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de harpa para dentro da boca do mensageiro, eagora o cadáver nos mostrava que haviarecebido o objeto.

— Vocês não me deixam em paz — disse omorto numa meia-voz rouca, e a meu ladoFinan fez um som que era como um gemido dedesespero.

— Bem-vindo, Bjorn — disse Haesten. Dentrenós, Haesten era o único que pareciadespreocupado com a presença viva do cadáver.Havia até mesmo diversão em sua voz.

— Quero paz — disse Bjorn, com a vozparecendo um grasnado.

— Este é o senhor Uhtred — disse Haesten,apontando para mim —, que mandou muitosbons dinamarqueses para o lugar onde vocêvive.

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— Eu não vivo — respondeu Bjorn comamargura.

Em seguida começou a grunhir e seu peitoarfava espas-modicamente como se o ar danoite doesse nos pulmões.

— Amaldiçôo você — disse ele a Haesten, mastão de-bilmente que as palavras nãorepresentavam ameaça.

Haesten riu.

— Hoje eu tive uma mulher, Bjorn. Você selembra das mulheres? Da sensação das coxasmacias? Do calor da pele? Lembra-se dobarulho que elas fazem quando a gente asmonta?

— Que Hel beije você por todo o tempo —disse Bjorn — até o caos final. — Hel era adeusa dos mortos, um cadáver podre de uma

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deusa, e a maldição era pavoro-sa, mas Bjornfalou de novo de modo obtuso que essasegunda maldição, como a primeira, era vazia.Os olhos do morto estavam fechados, mas opeito ainda arfava e as mãos faziammovimentos como se quisessem agarrar o arfrio.

Eu estava aterrorizado e não me importo emcon-fessar. Neste mundo é uma certeza que osmortos vão para suas casas longas na terra eficam lá. Os cristãos dizem que nossoscadáveres irão todos ressuscitar um dia e que oar ficará cheio com as trombetas dos anjos e océu irá luzir como o ouro batido enquanto osmortos saem do chão, mas nunca acrediteinisso. Nós morremos, vamos para o outromundo e ficamos lá, mas Bjorn haviaretornado. Havia brigado com os ventos daescuridão e as marés da morte, havia lutadopara retornar a esse mundo e agora estava de pé

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diante de nós, magro, alto, imundo e rouco, eeu tremia. Finan havia se abaixado sobre umdos joelhos. Meus outros homens estavamatrás de mim, mas eu sabia que tremiam tantoquanto eu. Só Haesten parecia não se afetarcom a presença do morto.

— Diga ao senhor Uhtred — ordenou ele aBjorn

— o que as Norns lhe disseram.

As Norns são as fiandeiras do destino, as trêsmulheres que tecem os fios da vida nas raízesde Yggdrasil, a árvore da vida. Sempre que umacriança nasce, elas iniciam um fio novo, esabem até onde ele irá, com que outros fios iráse entrelaçar e como terminará. Sabem tudo.Ficam sentadas, fiam e riem de nós, e algumasvezes nos banham de sorte e algumas vezes noscondenam à dor e às lágrimas.

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— Diga — ordenou Haesten com impaciência— o que as Norns falaram sobre ele.

Bjorn ficou quieto. Seu peito arfou e as mãosestremeceram. Seus olhos estavam fechados.

— Diga a ele — disse Haesten — e eu lhedevolve-rei sua harpa.

— Minha harpa — repetiu Bjorn pateticamente.—

Quero minha harpa.

— Vou colocá-la de volta em sua sepultura —disse Haesten — e você poderá cantar para osmortos. Mas primeiro fale com o senhorUhtred.

Bjorn abriu os olhos e me encarou. Encolhi-mediante daqueles olhos escuros, mas meobriguei a olhar de volta, fingindo uma

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coragem que não sentia.

— O senhor será rei, senhor Uhtred — disseBjorn, depois deu um gemido longo, como umacriatura que sentisse dor. — O senhor será rei— soluçou ele.

O vento estava frio. Uma gota de chuva tocouminha bochecha. Não falei nada.

— Rei da Mércia — disse Bjorn em voz súbitae surpreendentemente alta. — Será rei desaxões e dinamarqueses, inimigo dos galeses,rei entre os rios e senhor de tudo o quegovernar. Será poderoso, senhor Uhtred,porque as três fiandeiras o amam. — Ele meencarou e, ainda que o destino que tivessepronunciado fosse de ouro, havia umamalignidade em seus olhos mortos. — Osenhor será rei — disse, e a última palavrasoou como veneno em sua língua.

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Então meu temor passou, sendo substituído porum jorro de orgulho e poder. Não duvidava damensagem de Bjorn porque os deuses nãofalam em vão, e as fiandeiras conhecem nossodestino. Nós, saxões, dizemos wyrd bid fulãraed, e até os cristãos aceitam essa verdade. O

destino nos governa. Nossa vida é feita antes dea viver-mos, e eu seria rei da Mércia.

Naquele momento não pensei em Bebbanburg,que é minha terra, minha fortaleza junto ao marno norte, meu lar. Eu acreditava que toda aminha vida era dedicada a recuperá-la de meutio, que a havia roubado de mim quando eu eracriança. Eu sonhava com Bebbanburg, e nossonhos via suas rochas partindo o mar cinza embranco e sentia os vendavais golpeando a palhado teto do castelo, mas quando Bjorn falou nãopensei em Bebbanburg.

Pensei em ser rei. Em governar uma terra. Em

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liderar um grande exército para esmagar meusinimigos.

E pensei em Alfredo, no dever para com ele enas promessas que havia lhe feito. Sabia queprecisaria violar um juramento para ser rei, masa quem os juramentos são feitos? Aos reis,portanto, um rei tem o poder de liberar umhomem de um juramento, e eu me disse que,como rei, poderia me liberar de qualquerjuramento, e tudo isso chi-coteou minha mentecomo um redemoinho de vento soprando numpátio de debulha para lançar a palha no céu.

Não pensava com clareza. Estava tão confusoquanto a palha girando na brisa, e não peseimeu juramento a Alfredo contra meu futurocomo rei. Só via dois caminhos adiante, umduro e montanhoso, o outro uma grande estradaverdejante levando a um reino. E, além disso,que opção eu tinha? Wyrd bid ful ãraed.

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Então, no silêncio, Haesten se ajoelhousubitamente diante de mim.

— Senhor rei — disse ele, e havia umareverência inesperada em sua voz.

— Você violou um juramento feito a mim —falei asperamente. Por que disse isso naquelahora? Eu poderia tê-lo confrontado antes, nocastelo, mas foi junto àquela cova aberta quefiz a acusação.

— Violei, senhor rei, e me arrependo.

Fiz uma pausa. O que eu estava pensando? Quejá

era rei?

— Eu o perdôo — falei. Podia ouvir meucoração batendo. Bjorn apenas olhava e a luzdas tochas acesas lançavam sombras fundas em

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seu rosto.

— Obrigado, senhor rei — disse Haesten, e aseu lado Eilaf, o Vermelho, se ajoelhou, emseguida todos os homens naquele cemitériomolhado se ajoelharam diante de mim.

— Ainda não sou rei — falei, subitamenteenvergonhado com o tom senhorial que haviausado com Haesten.

— Será, senhor — disse Haesten. — Asfiandeiras dizem. Virei-me para o cadáver.

— O que mais as três fiandeiras dizem?

— Que o senhor será rei — respondeu Bjorn— e que será rei de outros reis. Será senhor daterra entre os rios e flagelo de seus inimigos.Será rei. — Ele parou subitamente e entrounum espasmo, com a parte superior do corpose sacudindo à frente, depois os espasmos

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pararam e ele ficou imóvel, inclinado adiante,com ânsias de vômito, antes de desmoronarlentamente na terra mexida.

— Enterrem-no de novo — ordenou Haestencom aspereza, levantando-se e falando aoshomens que haviam cortado a garganta dosaxão.

— A harpa dele — disse eu.

— Vou devolvê-la amanhã, senhor —respondeu Haesten, em seguida fez um gesto nadireção do castelo de Eilaf. — Há comida,senhor rei, e cerveja. E uma mulher para osenhor. Duas, se quiser.

— Tenho uma esposa — respondi asperamente.

— Então há comida, cerveja e calor para osenhor

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— disse ele com humildade. Os outros homensse levantaram. Meus guerreiros me olhavamestranhamente, confusos com a mensagem quetinham ouvido, mas ignorei-os. Rei de outrosreis. Senhor da terra entre os rios. Rei Uhtred.

Olhei para trás uma vez e vi os dois homensraspando o solo para refazer a sepultura deBjorn, em seguida acompanhei Haesten para ocastelo e ocupei a cadeira no centro da mesa, ado senhor, e observei os homens que tinhamvisto o morto se erguer, e vi que estavam tãoconvencidos quanto eu, e isso significava quelevariam suas tropas para o lado de Haesten. Arebelião contra Guthrum, a rebelião destinada ase espalhar pela Britânia e destruir Wessex,estava sendo liderada por um morto. Pousei acabeça nas mãos e pensei. Pensei em ser rei.Pensei em liderar exércitos.

— Soube que sua esposa é dinamarquesa, não?

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—disse Haesten, interrompendo meuspensamentos.

— É — respondi.

— Então os saxões da Mércia terão um rei sa-xão e os dinamarqueses da Mércia terão umarainha dinamarquesa. Ambos ficarão felizes.

Levantei a cabeça e o encarei. Sabia que ele erainteligente e ardiloso, mas naquela noite eleestava sendo cuidadosamente subserviente edemonstrando respeito genu-

íno.

— O que você quer, Haesten?

— Sigefrid e seu irmão querem conquistarWessex

— disse ele, ignorando minha pergunta.

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— O velho sonho — respondi com escárnio.

— E para fazer isso — disse ele,desconsiderando meu escárnio —precisaremos de homens da Nortúmbria.

Ragnar virá, se você pedir.

— Virá — concordei.

— E se Ragnar vier, outros o seguirão. — Elepartiu um pão e empurrou o pedaço maior paramim. Uma tigela de cozido estava à minhafrente, mas não a toquei.

Em vez disso, comecei a esmigalhar o pão,sentindo as lascas de granito que sobram dapedra de moer. Eu não estava pensando no quefazia, apenas mantendo as mãos ocupadasenquanto observava Haesten.

— Você não respondeu à minha pergunta —

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disse eu. — O que você quer?

— A Ânglia Oriental.

— Rei Haesten?

— Por que não? — perguntou ele, sorrindo.

— Por que não, senhor rei? — retruqueiprovocando um sorriso mais largo.

— Rei A Ethelwold em Wessex — disseHaesten

—, rei Haesten na Ânglia Oriental e rei Uhtredna Mércia.

— A Ethelwold? — perguntei com escárnio,pensando no sobrinho bêbado de Alfredo.

— Ele é o rei por direito de Wessex, senhor —disse Haesten.

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— E quanto tempo viverá?

— Não muito — admitiu Haesten —, a não serque seja mais forte do que Sigefrid.

— Então será Sigefrid de Wessex? Haestensorriu.

— Eventualmente, senhor, sim.

— E quanto ao irmão dele, Erik?

— Erik gosta de ser viking. O irmão dele tomaWessex e Erik pega os navios. Erik será um reido mar.

Então seria Sigefrid de Wessex, Uhtred daMércia e Haesten na Ânglia Oriental. Trêsdoninhas num saco, pensei, mas não deixei queo pensamento aparecesse.

— E onde começa esse sonho? — perguntei,

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em vez disso. Seu sorriso sumiu. Agora estavasério.

— Sigefrid e eu temos homens. Não osuficiente, mas o coração de um bom exército.Você traz Ragnar para o sul com osdinamarqueses da Nortúmbria, e teremos maisdo que o suficiente para tomar a ÂngliaOriental.

Metade dos earls de Guthrum irá se juntar anós quando virem você e Ragnar. Depoistomamos os homens da Ânglia Oriental,juntamos com nosso exército e conquista-mosa Mércia.

— E juntamos os homens da Mércia —terminei por ele — para tomar Wessex?

— Sim. Quando as folhas caírem, e quando osceleiros estiverem cheios, marcharemos contraWessex.

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— Mas sem Ragnar não podem fazer nada. Elebaixou a cabeça, concordando.

— E Ragnar não marchará a não ser que osenhor se junte a nós.

Poderia dar certo, pensei. Guthrum, o reidinamarquês da Ânglia Oriental, haviafracassado repetidamente em conquistarWessex e agora fizera a paz com Alfredo, massó porque Guthrum se tornara cristão e agoraera aliado de Alfredo, isso não significava queoutros dinamarqueses tivessem abandonado osonho dos ricos campos de Wessex. Sehomens em número suficiente pudessem serreunidos, a Ânglia Oriental cairia, e seus earls,sempre ansiosos por saques, marchariam sobrea Mércia. Então os nortumbrianos, mércios eanglos orientais poderiam se virar contraWessex, o reino mais rico e o último reinosaxão na terra dos saxões.

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Eu, entanto, havia jurado a Alfredo. Haviajurado defender Wessex. Dera meu juramento aAlfredo, e sem juramento não somos melhoresdo que animais. Porém, as Norns haviamfalado. O destino é inexorável, não pode sertrapaceado. Aquele fio da minha vida já estavano lugar, e eu não poderia mudá-lo, assimcomo não poderia fazer o sol andar para trás.As Norns haviam mandado um mensageiroatravés do golfo negro para me dizer que meujuramento deveria ser quebrado e que eu seriarei, assim assenti para Haesten.

— Que seja — falei.

— Você deve se encontrar com Sigefrid e Erik,e devemos fazer juramentos.

— Sim.

— Amanhã partiremos para Lundene — disseele, observando-me cuidadosamente.

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Então a coisa havia começado. Sigefrid e Erikestavam preparados para defender Lundene, eao fazer isso desafiavam os mércios, quereivindicavam a cidade como deles, edesafiavam Alfredo, que temia que Lundenefosse guarnecida por um inimigo, e desafiavamGuthrum, que queria manter a paz na Britânia.Mas não haveria paz.

— Amanhã — disse Haesten de novo —partiremos para Lundene.

Cavalgamos no dia seguinte. Fui com meus seishomens enquanto Haesten tinha 21companheiros, e seguimos a Waeclingastraetpara o sul sob uma chuva persis-tente quetransformava as margens da estrada em lamadensa. Os cavalos estavam sofrendo, nósestávamos sofrendo. Enquanto seguíamostentei me lembrar de cada palavra que Bjorn, omorto, me dissera, sabendo que Gisela

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desejaria que a conversa fosse narrada em cadadetalhe.

— E então? — questionou Finan logo depoisdo meio-dia. Haesten havia se adiantado e agoraFinan esporeou seu cavalo para manter o passocom o meu.

— Então?

— Então você vai ser rei na Mércia?

— É o que as fiandeiras do destino dizem —respondi sem olhar para ele. Finan e euhavíamos sido escravos juntos num naviomercante. Havíamos sofrido, congelado,suportado e a aprendido a gostar um do outrocomo irmãos, e eu me importava com suaopinião.

— As fiandeiras são ardilosas — disse Finan.

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— Essa é uma visão cristã?

Ele sorriu. Usava o capuz da capa sobre o elmo,de modo que eu podia ver pouco de seu rostomagro e feroz, mas vi o clarão de dentesquando ele sorriu.

— Fui um grande homem na Irlanda — disseele.

— Tinha cavalos para correr mais depressa doque o vento, mulheres para ofuscar o sol earmas que poderiam vencer o mundo, noentanto as fiandeiras me condenaram.

— Você está vivo e é um homem livre.

— Sou jurado a você — disse ele — e dei meujuramento por livre vontade. E você, senhor, éjurado a Alfredo.

— Sim — respondi.

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— Você foi obrigado a fazer seu juramento aAlfredo?

— Não — confessei.

A chuva estava pinicando meu rosto. O céuparecia baixo, a terra era escura.

— Se o destino é inevitável — perguntou Finan—, por que fazemos juramentos?

Ignorei a pergunta.

— Se eu violar meu juramento a Alfredo —falei em vez disso —, você vai violar o seu amim?

— Não, senhor — disse ele sorrindo de novo.—

Eu sentiria falta de sua companhia. Mas vocênão sentiria falta da companhia de Alfredo.

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— Não — admiti, e deixamos a conversa seesvair com a chuva soprada pelo vento, mas aspalavras de Finan se demoraram em minhamente e me perturbaram.

Passamos aquela noite perto do grande templode santo Alban. Os romanos haviam feito umacidade ali, mas agora ela havia se arruinado, porisso ficamos num castelo dinamarquês logo aleste. Nosso anfitrião foi bastante receptivo,mas cauteloso na conversa. Admitiu ter ouvidodizer que Sigefrid havia levado homens para avelha cidade de Lundene, mas não condenounem elogiou o ato. Usava o amuleto domartelo, como eu, mas também mantinha umpadre saxão que rezou antes da refeição de pão,toucinho e feijão. O religioso era umalembrança de que aquele castelo ficava naÂnglia Oriental, e que esta era oficialmentecristã e estava em paz com seus vizinhos cris-

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tãos, mas nosso anfitrião se certificava de queo portão de sua paliçada estivesse fechado e deter homens armados vigiando durante a noiteúmida. Havia um ar imóvel nessa terra, umasensação de que uma tempestade poderiacomeçar a qualquer momento.

A chuvarada parou durante a escuridão.Partimos ao amanhecer, saindo num mundo degeada e imobilidade, mas a Waeclingastraetficou mais movimentada quando encontramoshomens levando gado para Lundene. Os animaiseram magros, mas tinham sido poupados damatança de outono para poder alimentar acidade durante o inverno. Seguimos em frente eos vaqueiros se ajoelharam quando tantoshomens armados passaram ruidosamente poreles. As nuvens se dissiparam a leste, de modoque, quando chegamos a Lundene no meio dodia, o sol estava luminoso atrás do densolençol de fumaça escura que sempre paira

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sobre a cidade.

Sempre gostei de Lundene. É um lugar deruínas, comércio e malignidade que seesparrama pela margem norte do Temes. Asruínas eram as construções que os romanosdeixaram ao abandonar a Britânia, e sua antigacidade coroava os morros na extremidade lesteda cidade, rodeada por uma muralha feita detijolos e pedras. Os saxões nunca haviamgostado das construções romanas, temendoseus fantasmas, assim haviam feito sua cidade aoeste, um lugar de palha, madeira e barro,becos estreitos e valas fedorentas que deveriamlevar o esgoto para o rio, mas em geral ficavambrilhando imundas até que uma chuvarada astransbordasse. A nova cidade saxã era um lugarmovimentado, fedendo com a fumaça dosfogos dos ferreiros e barulhenta com os gritosdos comerciantes. Na verdade, eramovimentada demais para se incomodar em

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fazer uma muralha defensiva. Por queprecisariam de uma, argumentavam os saxões,quando os dinamarqueses se contentavam emviver na cidade antiga e não haviamdemonstrado qualquer desejo de trucidar oshabitantes da nova? Havia paliçadas em algunslugares, evidência de que alguns homens tinhamtentado proteger a cidade nova que cresciarapidamente, mas o entusiasmo pelo projetosempre morria e as paliçadas apodreciam, ouentão as madeiras eram roubadas para fazernovas construções ao longo das ruas fedendo aesgoto.

O comércio de Lundene vinha do rio e dasestradas que levavam a todas as partes daBritânia. As estradas, claro, eram romanas, epor elas fluíam lã e cerâmica, lingotes e peles,enquanto o rio trazia luxos de outras terras,escravos da Frankia e homens famintosprocurando encrenca.

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Havia bastante disso, porque a cidade,construída onde três reinos se encontravam,praticamente não tinha governo naqueles anos.

A leste de Lundene a terra era a ÂngliaOriental, portanto governada por Guthrum. Aosul, na outra margem do Temes, ficava Wessex,e a oeste ficava a Mércia, à

qual a cidade realmente pertencia, mas aMércia era um país aleijado sem rei, de modoque não havia nenhum rei para manter a ordemem Lundene e nenhum grande senhor paraimpor leis. Homens andavam armados nosbecos, mulheres tinham guarda-costas egrandes cães eram acorrentados junto aosportões. Corpos eram encontrados toda manhã,a não ser que a maré os carregasse rio abaixoem direção ao mar, para além da costa em queos dinamarqueses tinham seu grandeacampamento em Banfleot, de onde os navios

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dos homens do norte partiam para exigirpagamentos aduaneiros dos comerciantes quesubiam pela ampla foz do Temes. Os homensdo norte não tinham autoridade para imporessas taxas, mas tinham navios, homens,espadas e machados, e isso era autoridadesuficiente.

Haesten havia cobrado uma quantidadesuficiente dessas taxas ilegais, na verdade haviaenriquecido com a pirataria, tinha se tornadopoderoso, mas mesmo assim estava nervosoquando entramos na cidade. Havia faladoincessantemente enquanto nos aproximávamosde Lundene, em particular sobre nada, e riucom facilidade demais quando fiz comentáriossobre suas palavras sem sentido.

Mas então, enquanto passávamos entre astorres semicaí-das de cada lado de umapassagem ampla, ele ficou em silêncio. Havia

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sentinelas na passagem, mas deviam terreconhecido Haesten, porque não nosquestionaram, simplesmente puxaram de ladoos tapumes que bloqueavam o arco arruinado.Dentro do arco pude ver uma pilha de madeira,o que significava que a porta estava sendoreconstruída.

Havíamos chegado à cidade romana, a velhacidade, e nossos cavalos seguiram em passolento subindo a rua pavimentada com pedraslargas entre as quais crescia o mato denso.Estava frio. A geada permanecia nos cantosescuros onde o sol não havia alcançado a pedradurante todo o dia. As construções tinhamjanelas fechadas através das quais a fumaça delenha saía e redemoinhava pela rua abaixo.

— Já esteve aqui antes? — Haesten rompeu osilêncio com a pergunta abrupta.

— Muitas vezes — respondi. Agora Haesten e

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eu íamos à frente.

— Sigefrid — disse Haesten, depois descobriuque não tinha nada a dizer.

— É norueguês, pelo que ouvi dizer.

— É imprevisível — completou Haesten, e otom de sua voz me disse que era Sigefrid que odeixava nervoso. Haesten havia encarado umcadáver vivo sem se abalar, mas o pensamentoem Sigefrid o deixava apreensivo.

— Eu posso ser imprevisível — falei —, evocê

também.

Haesten não disse nada. Em vez disso, tocou omartelo pendurado em seu pescoço, depoisvirou o cavalo entrando numa passagem na qualserviçais correram para nos receber.

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— O palácio do rei — disse Haesten.

Eu conhecia o palácio. Fora construído pelosromanos e era um grande prédio abobadadofeito de colunas e pedras esculpidas, mas foraremendado pelos reis da Mércia, de modo quepalha, barro e madeira preenchiam os buracosnas paredes meio arruinadas. O grande salãotinha fileiras de colunas romanas e as paredeseram de tijolos, mas aqui e ali haviamsobrevivido retalhos do acabamento demármore. Olhei para o alto trabalho em pedra eme maravilhei ao pensar que homens tinhamsido capazes de fazer paredes assim. Nósconstruíamos com madeira e palha, e ambasapodreciam, o que significava que nãodeixaríamos nada para trás. Os romanos haviamdeixado mármore e pedra, tijolos e glória.

Um administrador nos disse que Sigefrid e seuirmão mais novo estavam na antiga arena

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romana localizada ao norte do palácio.

— O que ele está fazendo lá? — perguntouHaesten.

— Um sacrifício, senhor — disse oadministrador.

— Então vamos nos juntar a ele — respondeuHaesten, me olhando como se quisesseconfirmação.

— Vamos — disse eu.

Cavalgamos a curta distância. Mendigos seencolhi-am para longe de nós. Tínhamosdinheiro, e eles sabiam, mas não ousavam pedirporque éramos estranhos armados. Espadas,escudos, machados e lanças pendiam dosflancos enlameados de nossos cavalos.Vendedores se curvavam diante de nós,enquanto mulheres escondiam as crianças nas

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saias. A maioria das pessoas que vivia na parteromana de Lundene era dinamarquesa, mas atéesses dinamarqueses estavam nervosos. Suacidade fora ocupada pelos tripulantes deSigefrid que estariam famintos por dinheiro emulheres.

Eu conhecia a arena romana. Quando eracriança, aprendi os golpes fundamentais daespada com Toki, o comandante de navio, e eleme dera essas lições na grande arena ovalrodeada por camadas arruinadas de pedra emque antes eram postos bancos de madeira. Osdegraus de pedra estavam quase vazios, a nãoser por algumas pessoas à toa, olhando oshomens no centro da arena repleta de matoralo. Devia haver quarenta ou cinqüenta homensali, e uns vinte cavalos selados presos naextremidade mais distante, porém o que maisme surpreendeu, enquanto cavalgava pelas altasparedes da entrada, foi uma cruz cristã plantada

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no meio da pequena multidão.

— Sigefrid é cristão? — perguntei atônito aHaesten.

— Não! — respondeu ele enfaticamente.

Os homens ouviram os cascos de nossoscavalos e se viraram. Todos estavam vestidospara a guerra, com cota de malha ou couro earmados com espadas ou machados, masestavam animados. Então, do centro daquelamultidão, de um lugar perto da cruz, saiuSigefrid.

Eu o reconheci mesmo sem que dissessemquem ele era. Era um homem grande e pareciaainda maior porque usava uma grande capa depele de urso preto que o envolvia do pescoçoaos tornozelos. Tinha botas de couro preto decano alto, uma brilhante cota de malha, umcinto de espada cravejado com rebites de prata

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e uma barba preta e farta que brotava de baixodo elmo de ferro enquanto ele caminhava emnossa direção, e seu cabelo era tão preto efarto quanto a barba. Tinha olhos escuros numrosto largo, um nariz que fora quebrado eamassado e uma boca larga que lhe conferiaaparência séria. Parou, encarando-nos, eseparou os pés como se esperasse um ataque.

— Senhor Sigefrid! — cumprimentou Haestencom alegria forçada.

— Senhor Haesten! Bem-vindo! Muitíssimobem-vindo. — A voz de Sigefrid eracuriosamente aguda, não feminina, mas soavaestranha vinda de um homem tão enorme e deaparência malévola. — E o senhor! — eleapontou a mão com luva preta na minhadireção. — Deve ser o senhor Uhtred!

— Uhtred de Bebbanburg — respondi.

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— E é bem-vindo, muitíssimo bem-vindo! —Ele se adiantou e segurou minhas rédeaspessoalmente, o que era uma honra, em seguidasorriu para mim, e seu rosto, que fora tãotemível, ficou subitamente maroto, quaseamigável. — Dizem que é alto, senhor Uhtred!

— É o que me disseram — respondi.

— Então vejamos quem é mais alto — sugeriuele afavelmente —, o senhor ou eu? — Descida sela e afastei a rigidez das pernas. Sigefrid,vasto em sua capa de pele, ainda seguravaminhas rédeas e sorria. — E então? —perguntou aos homens mais perto dele.

— O senhor é mais alto — disse um delesrapidamente.

— Se eu perguntasse quem era o mais bonito—disse Sigefrid —, o que você responderia?

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O homem olhou de Sigefrid para mim, e demim para Sigefrid, e não sabia o que dizer.Apenas parecia aterrorizado.

— Ele teme que, se der a resposta errada —confi-denciou-me Sigefrid em voz divertida —,eu o mate.

— E mataria?

— Pensaria nisso. Aqui! — Ele chamou ohomem, que se adiantou nervoso. — Pegue asrédeas e leve o cavalo para passear. Então,quem é mais alto? — Esta última pergunta foifeita a Haesten.

— Os dois são da mesma altura — respondeuHaesten.

— E igualmente bonitos — disse Sigefrid, egargalhou. Em seguida passou os braços emvolta de mim e senti o fedor azedo de sua capa

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de pele. Ele me abraçou.

— Bem-vindo, senhor Uhtred, bem-vindo! — Aseguir deu um passo atrás e riu. Gostei delenaquele momento porque seu sorriso erarealmente receptivo. — Ouvi falar muito sobreo senhor! — declarou.

— E eu, sobre o senhor.

— E sem dúvida contaram muitas mentiras anós dois! Mas boas mentiras. Também tenhouma questão com o senhor. — Ele riu,esperando, mas não lhe dei resposta. — Jarrel!— explicou ele. — Você o matou.

— Matei. — Jarrel era o líder da tripulaçãoviking que eu havia trucidado no Temes.

— Eu gostava de Jarrel — disse Sigefrid.

— Então deveria tê-lo alertado para evitar

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Uhtred de Bebbanburg.

— Verdade. E também é verdade que vocêmatou Ubba?

— Matei.

— Deve ter sido um homem difícil de matar! EIvarr?

— Também matei Ivarr — confirmei.

— Mas ele era velho e já era hora de partir. Ofilho dele odeia você, sabia?

— Sei.

Sigefrid fungou com desprezo.

— O filho é um nada. Um pedaço decartilagem.

Odeia você, mas por que o falcão deveria se

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incomodar com o ódio do pardal? — Ele riupara mim, depois olhou para Smoca, meugaranhão, que estava sendo levado pela arenapara esfriar lentamente depois da longa viagem.—

Aquilo é um cavalo! — disse Sigefrid,admirando.

— É mesmo — concordei.

— Talvez eu devesse tirá-lo de você, não?

— Muitos tentaram.

Ele gostou disso. Riu de novo e pôs a mãopesada em meu ombro para me levar na direçãoda cruz.

— Você é saxão, pelo que me disseram, não?

— Sou.

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— Mas não é cristão?

— Cultuo os deuses verdadeiros.

— Que eles o amem e recompensem por isso—disse ele, em seguida apertou meu ombro e,mesmo atra-

vés da malha e do couro, pude sentir sua força.Em seguida se virou. — Erik! Estáenvergonhado?

Seu irmão se destacou do grupo. Tinha omesmo cabelo preto e farto, mas o de Erikestava bem preso atrás, com um pedaço decordão. Sua barba era aparada. Era jovem, talvezapenas 20 ou 21 anos, e tinha rosto largo comolhos brilhantes, ao mesmo tempo repletos decuriosidade e receptividade. Eu ficara surpresoao descobrir que gostava de Sigefrid, mas nãofoi surpresa gostar de Erik. Seu sorriso erainstantâneo, o rosto aberto e sem malícia. Era,

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como o irmão de Gisela, um homem de quem agente gostava no momento em que conhecia.

— Sou Erik — cumprimentou ele.

— Ele é meu conselheiro — disse Sigefrid —,minha consciência e meu irmão.

— Consciência?

— Erik não mataria um homem por ter contadouma mentira, mataria, irmão?

— Não — respondeu Erik.

— Então é um idiota, mas um idiota que euamo.

— Sigefrid gargalhou. — Mas não pense que oidiota é

fraco, senhor Uhtred. Ele luta como umdemônio do Nif-lheim. — Em seguida deu um

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tapa no ombro do irmão, depois segurou meucotovelo e me guiou em direção à

cruz incongruente. —

Tenho prisioneiros — explicou enquanto nosaproximávamos da cruz, e eu vi que havia cincohomens ajoelhados com as mãos amarradas àscostas. Tinham sido despidos dos mantos, dearmas e túnicas, de modo que só

usavam os calções. Tremiam no ar frio.

A cruz fora feita recentemente com duas travesde madeira pregadas grosseiramente e depoisenfiada num buraco cavado às pressas. Estavaligeiramente inclinada.

Ao pé estavam alguns pregos pesados e umgrande martelo.

— A gente vê a morte na cruz nas estátuas, nos

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en-talhes deles — explicou Sigefrid — e nosamuletos que eles usam, mas nunca vi a coisade verdade. Você já?

— Não — admiti.

— E não posso entender como isso mataria umhomem — disse ele com perplexidade genuína.— São só

três pregos! Já sofri muito mais do que isso embatalha.

— Eu também.

— Por isso pensei em descobrir! — terminouele, todo animado, depois virou a barba grandena direção do prisioneiro mais perto da cruz.— Os dois desgraçados ali na ponta são padrescristãos. Vamos pregar um deles e ver se elemorre. Tenho dez moedas de prata que dizemque isso não vai matá-lo.

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Eu não podia ver quase nada dos dois padres, anão ser que um tinha barriga grande. Sua cabeçaestava baixa, não em oração, mas porque foramuito espancado. As costas e o peito nusestavam cheios de marcas e sangrentos, e haviamais sangue no emaranhado de cabelo castanhoencaracolado.

— Quem são eles? — perguntei a Sigefrid.

— Quem são vocês? — rosnou ele aosprisioneiros e, quando nenhum respondeu, deuum chute brutal nas costelas do que estava maispróximo. — Quem são vocês?

— perguntou de novo.

O homem levantou a cabeça. Era idoso, teriapelo menos 40 anos, e tinha rosto fundo eenrugado no qual estava escrita a resignaçãodaqueles que sabem que estão para morrer.

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— Sou o earl Sihtric — disse ele —,conselheiro do rei AEthelstan.

— Guthrum! — gritou Sigefrid, e foi um gritomesmo. De pura fúria que irrompeu de lugarnenhum.

Num momento ele estivera afável, mas derepente era um demônio. Cuspe voou de suaboca enquanto berrava o nome pela segundavez. — Guthrum! O nome dele é Guthrum, seudesgraçado! — Em seguida chutou Sihtric nopeito, e achei que aquele chute teria força parapartir uma costela. — Qual é o nome dele? —perguntou Sigefrid.

— Guthrum — disse Sihtric.

— Guthrum — gritou Sigefrid, e chutou ovelho de novo. Quando fez a paz com Alfredo,Guthrum havia se tornado cristão e assumido onome cristão de A Ethelstan.

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Eu ainda pensava nele como Guthrum, assimcomo Sigefrid, que agora aparentemente estavatentando pisotear Sihtric até a morte. O velhotentou escapar dos golpes, mas Sigefrid o haviaempurrado para o chão, de onde ele não podiafugir. Erik pareceu não se abalar com a raivaselvagem do irmão, mas depois de um tempose adiantou e segurou o braço de Sigefrid, quese deixou ser puxado para longe. —Desgraçado! — Sigefrid cuspiu na direção dohomem que gemia. — Chamando Guthrum porum nome cristão! — explicou-me. Sigefridainda estava tremendo em razão da raiva súbita.Seus olhos haviam se estreitado e o rostoestava contorcido, mas ele pareceu se controlarenquanto passava o braço pesado por meusombros. — Guthrum os enviou, para mandarque eu saia de Lundene. Mas isso não é daconta de Guthrum! Lundene não pertence àÂnglia Oriental! Pertence à Mércia!

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Ao rei Uhtred da Mércia! — Era a primeira vezque alguém usava esse título de modo tãoformal, e gostei da-

quilo. Rei Uhtred. Sigefrid se virou de novopara Sihtric, que tinha sangue nos lábios. —Qual era a mensagem de Guthrum?

— Que a cidade pertence à Mércia e que osenhor deve ir embora — conseguiu dizerSihtric.

— Então a Mércia pode me expulsar —zombou Sigefrid.

— A não ser que o rei Uhtred nos deixe ficar?—sugeriu Erik com um sorriso.

Não falei nada. O título soava bem, masestranho, como se desafiasse os fios que saíamdas três fiandeiras.

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— Alfredo não permitirá que o senhor fique —ousou dizer um dos outros prisioneiros.

— Quem liga a mínima para Alfredo? —rosnou Sigefrid. — Que o desgraçado mandeseu exército para morrer aqui.

— Essa é sua resposta, senhor? — perguntou oprisioneiro humildemente.

— Minha resposta serão suas cabeças cortadas—disse Sigefrid. Nesse momento olhei paraErik. Ele era o irmão mais novo, masclaramente era quem pensava. Deu de ombros.

— Se negociarmos — explicou ele —,daremos tempo para nossos inimigos juntaremsuas forças. É melhor desafiar.

— Você faria guerra com Guthrum e Alfredoao mesmo tempo? — perguntei.

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— Guthrum não vai lutar — disse Erik,parecendo ter muita certeza. — Ameaça, masnão vai lutar. Ele está

ficando velho, senhor Uhtred, e prefeririaaproveitar o que lhe resta da vida. E semandarmos cabeças cortadas para ele? Achoque vai entender o recado de que sua própriacabeça corre perigo, caso nos incomode.

— E Alfredo? — perguntei.

— Ele é cauteloso, não é? — perguntou Erik.

— É.

— Vai nos oferecer dinheiro para sair dacidade?

— Provavelmente.

— E talvez nós aceitemos — disse Sigefrid —

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e fi-quemos mesmo assim.

— Alfredo não vai atacar antes do verão —disse Erik, ignorando o irmão —, e até lá,senhor Uhtred, esperamos que o senhor tenhatrazido o earl Ragnar para o sul, até a ÂngliaOriental. Alfredo não pode ignorar essaameaça. Marchará contra nossos exércitoscombinados, não contra a guarnição deLundene, e nosso trabalho é matar Alfredo epôr seu sobrinho no trono.

— A Ethelwold? — perguntei em dúvida. —Ele é

um bêbado.

— Bêbado ou não — disse Erik —, um reisaxão tornará nossa conquista de Wessex maispalatável.

— Até que vocês não precisem mais dele.

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— Até não precisarmos mais dele —concordou Erik.

O padre barrigudo no fim da fileira deprisioneiros ajoelhados estivera escutando.Olhou para mim, depois para Sigefrid, que viuseu olhar.

— O que está olhando, cagalhão? — perguntouSigefrid. O padre não respondeu, apenas meolhou de novo, depois baixou a cabeça. —Vamos começar com ele —disse Sigefrid —,vamos pregar o desgraçado gordo numa cruz ever se ele morre.

— Por que não deixá-lo lutar? — sugeri.

Sigefrid me encarou, sem saber se tinha meouvido corretamente.

— Deixá-lo lutar?

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— O outro padre é magricelo — respondi —,muito mais fácil de pregar na cruz. O gordodeve receber uma espada e lutar.

Sigefrid deu um risinho de desprezo.

— Você acha que um padre consegue lutar?Dei de ombros, como se não me importasse.

— É só que eu gosto de ver esses barrigudosper-derem uma luta — expliquei. — Gosto dever as barrigas sendo abertas. Gosto de olhar astripas se derramando. —

Eu estava olhando para o padre enquanto falava,e ele levantou a cabeça de novo, para meencarar. — Quero ver metros de tripas sederramando — falei com ar lupino —, depoisolhar seus cães comerem os intestinosenquanto ele ainda estiver vivo.

— Ou fazer com que ele mesmo coma — disse

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Sigefrid pensativamente. De súbito riu paramim. — Gosto de você, senhor Uhtred!

— Ele vai morrer muito facilmente —observou Erik.

— Então lhe dê alguma coisa pela qual lutar —sugeri.

— Em nome de quê um porco de um padrepode lutar? — perguntou Sigefrid comescárnio.

Não falei nada, e foi Erik quem deu a resposta.

— Pela liberdade? — sugeriu ele. — Se elevencer, todos os prisioneiros ficam livres, masse perder, nós cru-cificamos todos. Isso devefazê-lo lutar.

— Mesmo assim ele vai perder — disse eu.

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Sigefrid gargalhou, divertido com aincongruência da sugestão. O padre, seminu,barrigudo e aterrorizado, olhou para cada um denós, mas não viu nada além de diversão eferocidade.

— Já segurou uma espada, padre? — perguntouSigefrid ao gordo. O padre ficou quieto.

Zombei de seu silêncio com uma gargalhada.

— Ele só vai ficar se sacudindo feito umporco.

— Quer lutar com ele? — perguntou Sigefrid.

— Ele não foi enviado a mim, senhor — faleirespeitosamente. — Além disso, ouvi dizer quenão há quem se compare à sua habilidade comuma espada. Desafio o senhor a fazer um corteatravessando o umbigo dele.

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Sigefrid gostou do desafio. Virou-se para opadre.

— Homem santo! Quer lutar por sua liberdade?

O padre estava tremendo de medo. Olhou paraos companheiros, mas não encontrou ajuda ali.Conseguiu assentir.

— Sim, senhor — disse ele.

— Então pode lutar comigo — disse Sigefrid,animado. — E se eu vencer? Todos vocêsmorrem. E se você vencer? Podem ir emboradaqui. Você sabe lutar?

— Não, senhor — respondeu o padre.

— Já segurou uma espada, padre?

— Não, senhor.

— Então está preparado para morrer?

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O padre olhou para o norueguês e, apesar doshematomas e dos cortes, havia uma sugestão deraiva em seus olhos que era negada pelahumildade na voz.

— Sim, senhor. Estou preparado para morrer eencontrar meu Salvador.

— Solte-o — ordenou Sigefrid a um dos seusseguidores. — Solte o cagalhão e lhe dê umaespada. — Em seguida desembainhou a sua, queera uma espada longa, de dois gumes. —Espalha-Medo — disse ele o nome da lâmina,com carinho na voz. — E ela precisa deexercício.

— Aqui — disse eu, e desembainhei Bafo deSerpente, minha linda espada, e virei-a de modoque pudesse segurá-la pela lâmina. Em seguidajoguei a espada para o padre, cujas mãos tinhamacabado de ser liberadas. Ele não conseguiupegar, deixando Bafo de Serpente cair em meio

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ao mato pálido de inverno. Olhou para a espadapor um momento, como se nunca tivesse vistoalgo assim, depois se curvou para pegá-la. Nãosabia se deveria segurar com a mão direita ou aesquerda. Decidiu-se pela esquerda eexperimentou um golpe desajeitado que fez osespectadores rirem.

— Por que lhe deu sua espada? — perguntouSigefrid.

— Ele não vai fazer nada de bom com ela —respondi com escárnio.

— E se eu quebrá-la? — perguntou Sigefridenfaticamente.

— Então vou saber que o ferreiro que a fez nãoconhecia o trabalho.

— A espada é sua, a escolha é sua — disseSigefrid sem dar importância, depois se virou

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para o padre que segurava Bafo de Serpenteapoiando a ponta no chão. —

Está preparado, padre?

— Sim, senhor — disse o padre, e foi aprimeira resposta sincera que ele dera aonorueguês. Porque o padre havia segurado umaespada muitas vezes antes, sabia lutar e euduvidava de que estivesse preparado paramorrer. Era o padre Pyrlig.

Se seus campos estiverem pesados e úmidoscom barro, você pode arrear dois bois a umarado, pode tirar sangue dos bichos, atiçando-os, para que a lâmina do arado fure seu chão.Os animais devem puxar juntos, motivo peloqual são postos na mesma canga, e na vida umboi se chama Destino e o outro se chamaJuramentos.

O destino decreta o que fazemos. Não

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podemos escapar ao destino. Wyrd bid fulãraed. Não temos escolha na vida, comopodemos ter? Porque, desde o momento emque nascemos, as três irmãs sabem aondenosso fio irá, que padrões tecerá e comoterminará. Wyrd bid ful ãraed.

Escolhemos, no entanto, nossos juramentos.Alfredo, quando me deu sua espada e as mãospara envolver minhas mãos, não ordenou queeu fizesse o juramento.

Ofereceu-o e eu escolhi. Mas teria sido minhaescolha?

Ou será que as fiandeiras escolheram por mim?E, se escolheram, por que me incomodar comjuramentos? Pensei nisso muitas vezes, emesmo agora, quando sou velho, ainda mepergunto. Será que eu escolhi Alfredo? Oueram as fiandeiras que riam quando me ajoelheie segurei sua espada e suas mãos?

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As três Norns certamente estavam rindonaquele dia frio e luminoso em Lundene,porque no momento em que vi que o padrebarrigudo era o padre Pyrlig, soube que nadaera simples. Naquele instante eu haviapercebido que as fiandeiras do destino nãohaviam feito um fio dourado que me levava aum trono. Estavam rindo nas raízes daYggdrasil, a árvore da vida. Tinham feito umapiada e eu era sua vítima, e tinha uma escolha afazer.

Será que tinha mesmo? Talvez as fiandeirastivessem feito a escolha, mas naquelemomento, à sombra da cruz improvisada, magrae nítida, acreditei que eu tinha de escolherentre os irmãos Thurgilson e Pyrlig.

Sigefrid não era amigo, mas era um homemformidável, e com sua aliança eu poderia metornar rei da Mércia. Gisela seria rainha. Eu

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poderia ajudar Sigefrid, Erik, Haesten e Ragnara saquear Wessex. Poderia ficar rico.

Comandaria exércitos. Faria voar meuestandarte da cabe-

ça do lobo, e nos calcanhares de Smoca viriauma hoste de lanceiros cavalgando em cota demalha. Meus inimigos ouviriam o trovão denossos cascos em seus pesadelos.

Tudo isso seria meu se eu optasse por me aliara Sigefrid.

Ao passo que escolhendo Pyrlig eu perderiatudo o que o morto havia me prometido. O quesignificava que Bjorn havia mentido, mas comoum homem enviado da sepultura com umamensagem das Norns poderia dizer umamentira? Lembro-me de ter pensado tudo issonum instante antes de fazer a escolha, ainda quena verdade não houvesse hesitação. Não houve

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sequer um átimo de hesitação.

Pyrlig era um galês, um britão, e nós, saxões,odia-mos os britões. Os britões são ladrõestraiçoeiros. Escon-dem-se em suas fortalezasnos morros e cavalgam para atacar nossasterras, tomam nosso gado e algumas vezesnossas mulheres e filhos, e quando osperseguimos, eles penetram cada vez mais numlugar selvagem feito de névoas, penhascos,pântanos e sofrimento. A escolha pareceriafácil demais! De um lado um reino, amigosvikings e riqueza, e do outro um britão que erasacerdote de uma religião que suga a alegria domundo como o crepúsculo absorvendo a luz dodia. No entanto, não pensei. Escolhi, ou odestino escolheu, e eu escolhi a amizade.Pyrlig era meu amigo. Eu o havia conhecido noinverno mais escuro de Wessex, quando osdinamarqueses pareciam ter conquistado oreino, e Alfredo, com alguns poucos

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seguidores, fora impelido a se refugiar nospântanos do oeste. Pyrlig fora mandado comoemissário de seu rei galês para descobrir, etalvez explorar, as fraquezas de Alfredo, masem vez disso ficou do lado de Alfredo e lutoupor Alfredo.

Pyrlig e eu havíamos estado juntos na parede deescudos.

Havíamos lutado lado a lado. Éramos galês esaxão, cristão e pagão, e deveríamos serinimigos, mas eu o amava como a um irmão.

Assim lhe dei a espada e, em vez de vê-lopregado a uma cruz, dei-lhe a chance de lutarpela vida.

E, claro, não foi uma luta justa. Terminou numinstante! Na verdade, mal havia começado elogo acabou, e fui o único a não ficar perplexocom o fim.

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Sigefrid estava esperando enfrentar um padregordo e sem treino, mas eu sabia que Pyrlighavia sido guerreiro antes de descobrir seudeus. Fora um grande guerreiro, matador desaxões e homem sobre quem seu povo haviafeito canções. Agora não parecia um grandeguerreiro. Estava seminu, gordo, desgrenhado,com hematomas e espancado. Esperou o ataquede Sigefrid com uma expressão de terrorhorrorizado no rosto, com a ponta de Bafo deSerpente ainda pousada no chão. Recuouquando Sigefrid chegou mais perto e começoua soltar miados. Sigefrid riu e girou sua espadaquase preguiçosamente, esperando derrubar ade Pyrlig e expor sua grande barriga para ocorte de Espalha-Medo.

E Pyrlig se moveu como uma doninha.

Levantou Bafo de Serpente com graça e dançouum passo para trás, de modo que o giro

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descuidado de Sigefrid passou por baixo dela.Em seguida avançou para o inimigo e baixouBafo de Serpente com força, controlan-dointeiramente com o pulso o golpe, e acertou-ano bra-

ço de Sigefrid que segurava a arma enquantoeste ainda estava girando para fora. O golpe nãoteve força suficiente para romper a armadura demalha, mas impeliu o braço de Sigefrid aindapara mais longe e assim abriu o norueguês parauma estocada. E Pyrlig estocou. Foi tão rápidoque Bafo de Serpente virou um borrão prateadoacertando com força o peito de Sigefrid.

De novo a lâmina não furou a malha deSigefrid.

Em vez disso, empurrou o grandalhão para tráse eu vi a fúria surgir nos olhos do norueguês,vi-o trazer Espalha-Medo de volta num giropoderoso que certamente teria decapitado

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Pyrlig num instante rubro. Havia muita força eselvageria naquele golpe gigantesco, masPyrlig, que parecia a instantes da morte,simplesmente usou o pulso de novo. Nãoparecia se mover, mas mesmo assim Bafo deSerpente subiu e foi para o lado.

A ponta de Bafo de Serpente encontrou aquelegiro mortal por dentro do pulso de Sigefrid eeu vi o jorro de sangue como uma névoavermelha no ar.

E vi Pyrlig sorrir. Era mais uma careta, masnaquele sorriso havia um orgulho de guerreiroe um triunfo de guerreiro. Sua lâmina haviarasgado o antebraço de Sigefrid de baixo paracima, cortando a malha e abrindo carne, pele emúsculo do pulso ao cotovelo, de modo que ogolpe poderoso de Sigefrid hesitou e parou. Obraço com a espada do norueguês ficou frouxo,e de repente Pyrlig deu um passo atrás e virou

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Bafo de Serpente para cortar de cima parabaixo, e por fim pareceu colocar algum esforçona arma. Ela fez um som como um assobioenquanto o galês acertava o pulso sangrento deSigefrid. Quase decepou o pulso, mas a lâminaresvalou num osso e, em vez disso, arrancou opolegar do norueguês, em seguida Espalha-Medo caiu no chão da arena e Bafo de Serpenteestava na barba e na garganta de Sigefrid.

— Não! — gritei.

Sigefrid estava pasmo demais para sentir raiva.Não podia acreditar no que havia acontecido.Naquele momento deve ter percebido que seuoponente era um espadachim, mas ainda nãopodia acreditar que perdera. Levantou as mãossangrentas como se fosse agarrar a espada dePyrlig, e eu vi a arma do galês estremecer eSigefrid, sentindo a morte à distância de um fiode cabelo, ficou imóvel.

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— Não — repeti.

— Por que eu não deveria matá-lo? —perguntou Pyrlig, e agora sua voz era a deguerreiro, dura e implacável, e seus olhos eramtambém de guerreiro, gélidos e furiosos.

— Não — falei de novo. Eu sabia que, sePyrlig matasse Sigefrid, os homens de Sigefridteriam sua vingança.

Erik também sabia.

— Você venceu, padre — disse ele, baixinho.Em seguida foi até o irmão. — Você venceu —disse de novo a Pyrlig —, portanto baixe aespada.

— Ele sabe que eu venci? — perguntou Pyrlig,olhando os olhos escuros de Sigefrid.

— Eu falo por ele — respondeu Erik. — Você

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venceu a luta, padre, e está livre.

— Primeiro tenho de dar minha mensagem —disse Pyrlig. Sangue pingava da mão deSigefrid. Ele continuava encarando o galês. —A mensagem que trazemos do rei A Ethelstan— disse Pyrlig, falando de Guthrum — é

que vocês devem sair de Lundene. Ela não fazparte da terra cedida por Alfredo para sergovernada pelos dinamarqueses. Entenderam?— Em seguida balançou Bafo de Serpente denovo, mas Sigefrid não disse nada. — Agoraquero cavalos — continuou Pyrlig —, e osenhor Uhtred e seus homens devem nosescoltar para fora de Lundene. Concordam?

Erik me olhou e eu assenti.

— Está concordado — disse Erik a Pyrlig.

Peguei Bafo de Serpente da mão de Pyrlig.

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Erik estava segurando o braço ferido do irmão.Por um momento achei que Sigefrid atacaria ogalês desarmado, mas Erik conseguiu virá-lopara longe.

Cavalos foram trazidos. Os homens na arenaestavam em silêncio e ressentidos. Tinhamvisto seu líder ser humilhado e não entendiampor que Pyrlig tinha permissão de partir comos outros enviados, mas aceitaram a decisão deErik.

— Meu irmão é cabeça dura — disse-me Erik.Ele havia me puxado de lado para conversarenquanto as selas eram postas nos cavalos.

— Afinal de contas, parece que o padre sabialutar

— falei em tom de desculpas.

Erik franziu a testa, não com raiva, e sim com

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perplexidade.

— Estou curioso com relação ao deus deles —admitiu. Ele olhava para o irmão, cujosferimentos estavam sendo enrolados combandagens. — O deus deles parece ter mesmopoder — disse Erik. Enfiei Bafo de Serpente nabainha e Erik viu a cruz de prata que decora-vao botão do punho. — Você também deve acharisso, não?

— Isso foi um presente — respondi. — Deuma mulher. Uma boa mulher. Uma amante.Então o deus cristão tomou-a e ela não amamais os homens.

Erik estendeu a mão e tocou a cruz, hesitando.

— Você não acha que isso dá poder à espada?

— A lembrança do amor dela poderia dar. Maso poder vem daqui. — Toquei meu amuleto, o

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martelo de Tor.

— Eu temo o deus deles.

— Ele é duro, não é gentil. É um deus quegosta de fazer leis.

— Leis?

— Você não pode desejar a mulher do vizinho—respondi. Erik riu disso, depois viu que euestava sério.

— Verdade? — perguntou com incredulidadena voz.

— Padre! — gritei para Pyrlig. — Seu deusdeixa os homens desejarem a mulher dovizinho?

— Deixa, senhor — disse Pyrlighumildemente, como se tivesse medo de mim

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—, mas desaprova.

— Ele não fez uma lei sobre isso?

— Sim, senhor, fez. E fez outra que diz que nãose deve desejar o boi do vizinho.

— Aí está — falei a Erik. — Se for cristão,você

não pode nem desejar um boi.

— Estranho — disse ele, pensativo. Estavaolhando os enviados de Guthrum, que haviamescapado por pouco de perder a cabeça. —Você não se importa em escoltá-los?

— Não.

— Pode ser uma coisa ruim, se eles viverem —disse Erik baixinho. — Por que dar motivo paraGuthrum nos atacar?

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— Ele não vai atacar — respondi confiante. —

Quer você os mate ou não.

— Provavelmente não, mas nós concordamosque, se o padre ganhasse, todos viveriam, entãodeixe que vivam. E tem certeza de que você nãose incomoda em escoltá-los?

— Claro que não.

— Então volte para cá — disse Erikcalorosamente. — Precisamos de você.

— Vocês precisam de Ragnar — corrigi.

— Verdade — confessou ele, e sorriu. — Tireesses homens da cidade em segurança e voltepara cá.

— Primeiro tenho uma mulher e filhos parapegar.

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— É — disse ele, e sorriu de novo. — Você éfelizardo nesse sentido. Mas vai voltar?

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— Bjorn, o morto, me disse isso — respondi,tendo o cuidado de evitar sua pergunta.

— É mesmo — concordou Erik. Ele meabraçou.

— Precisamos de você, e juntos podemostomar toda esta ilha.

Partimos, cavalgando pelas ruas da cidade,saindo pelo portão do oeste que era conhecidocomo Porta Ludd, em seguida fomos ao vauatravessando o rio Fleot. Sihtric estava curvadosobre o arção de sua sela, ainda sofrendo dochute de Sigefrid. Olhei para trás enquantosaíamos do vau, meio esperando que Sigefridtivesse contrariado a decisão do irmão emandado homens para nos perseguir, masnenhum apareceu. Esporeamos através doterreno pantanoso e subimos a pequena encostaaté a cidade saxã.

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Não fiquei na estrada que ia para o oeste, emvez disso virei para os cais em que havia umadúzia de navios atracados. Eram barcos do rio,que comerciavam com Wessex e a Mércia.Poucos comandantes gostavam de passar pelaabertura perigosa na ponte arruinada que osromanos haviam erguido sobre o Temes, demodo que esses navios eram menores,impelidos por remadores, e todos haviam mepagado taxas em Coccham. Todos meconheciam, porque faziam negócios comigoem cada viagem.

Abrimos caminho em meio a montes demercadorias, passando por fogueiras e pelosgrupos de escravos trabalhando na carga edescarga. Só um navio estava pronto para viajar.Chamava-se Cisne e eu o conhecia bem.

Tinha tripulação saxã e devia estar quase prontopara partir porque seus remadores estavam

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parados no cais enquanto o comandante, umhomem chamado Osric, terminava os negócioscom o comerciante cujas mercadorias ele iacarregar.

— Você vai nos levar também — disse eu.

Deixamos a maioria dos cavalos para trás, masinsisti em que fosse arranjado espaço paraSmoca, e Finan também quis manter seugaranhão, assim os animais foram levados aocasco aberto do Cisne, no qual ficaramtremendo. Em seguida partimos. A maré estavaenchendo, os remos bateram na água edeslizamos rio acima.

— Para onde estou levando-o, senhor? —perguntou Osric, o comandante.

— A Coccham — respondi. E de volta aAlfredo.

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O rio estava largo, cinza e carrancudo. Corriaforte, alimentado pelas chuvas de invernocontra as quais a maré

montante demonstrava resistência cada vezmenor. O

Cisne trabalhava duro no início da viagemenquanto os remadores lutavam contra acorrente, e eu atraí o olhar de Finan e trocamossorrisos. Ele estava se lembrando, como eu, denossos longos meses nos remos de um naviomercante tripulado por escravos. Havíamossofrido, sangrado e tremido, e tínhamospensado que só a morte poderia nos libertardaquele destino. Mas agora outros homensremavam para nós enquanto o Cisne lutava aoredor das grandes curvas do Temes, suavizadaspela ampla enchente que se estendia para ascampinas inundadas.

Sentei-me na pequena plataforma construída na

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proa rombuda do navio e o padre Pyrlig sejuntou a mim ali. Eu havia lhe dado minha capa,que ele apertava com força ao redor do corpo.Pyrlig havia encontrado um pouco de pão equeijo, o que não me surpreendeu, porquenunca conheci um homem que comesse tanto.

— Como sabia que eu iria vencer Sigefrid? —perguntou ele.

— Não sabia. Na verdade, estava esperando queele vencesse você, e que houvesse um cristão amenos.

Ele sorriu disso, depois olhou para as avesaquáti-cas na área inundada.

— Eu estava consciente de que teria somentedois ou três golpes — disse — antes de eleperceber que eu sabia o que estava fazendo.Então ele arrancaria a carne de meus ossos.

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— Arrancaria mesmo, mas eu achava que vocêtinha esses três golpes e que seriamsuficientes.

— Obrigado por isso, Uhtred — disse ele,depois partiu um pedaço de queijo e me deu. —Como você tem andado ultimamente?

— Entediado.

— Ouvi dizer que se casou.

— Não estou entediado com ela — faleidepressa.

— Bom para você! Já eu? Não suporto minhamulher. Santo Deus, que língua aquela víboratem. É capaz de partir um pedaço de ardósia sóde falar com ela! Você

não conheceu minha mulher, conheceu?

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— Não.

— Algumas vezes eu maldigo Deus por tertirado uma costela de Adão e feito Eva, masdepois vejo alguma garota nova, meu coraçãopula e acho que, afinal de contas, Deus sabia oque estava fazendo.

Sorri.

— Achei que os padres cristãos deveriam darexemplo.

— E o que há de errado em admirar as criaçõesde Deus? — perguntou Pyrlig indignado. — Emespecial uma jovem com tetas gorduchas eredondas e um belo traseiro gordo, não é?Seria pecado de minha parte ignorar essessinais de Sua graça. — Ele riu, depois pareceuansioso. — Ouvi dizer que você foi feitocativo?

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— Fui.

— Rezei por você.

— Obrigado — respondi, e estava sendosincero.

Eu não cultuava o deus cristão, mas, comoErik, temia que ele tivesse algum poder, demodo que as orações a ele não eramdesperdiçadas.

— Mas ouvi dizer que foi Alfredo que mandoulibertá-lo. Foi? — perguntou Pyrlig.

Fiz uma pausa. Como sempre, eu odiavareconhecer qualquer dívida para com Alfredo,mas admiti de má

vontade que ele havia ajudado.

— Ele mandou os homens que me libertaram,

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sim.

— E você o recompensa, senhor Uhtred,dizendo-se rei da Mércia?

— Você ouviu isso? — perguntei com cautela.

— Claro que ouvi! Aquele enorme imbecilnorueguês berrou isso a menos de cinco passosde meu ouvido.

Você é rei da Mércia?

— Não — respondi, resistindo a acrescentar“ainda não”.

— Não achei que fosse — disse Pyrlig em tomameno. — Eu teria ouvido falar, não? E nãoacho que será, pelo menos enquanto Alfredonão quiser.

— Por mim, Alfredo pode mijar na própria

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goela.

— E, claro, eu devo contar a ele o que ouvi.

— É — respondi amargo. — Deve.

Encostei-me na madeira curva da proa do navioe olhei para as costas dos remadores. Tambémestava procurando qualquer sinal de algumnavio em perseguição, meio esperando veralgum rápido navio de guerra sendo impelidopor fileiras de remos longos, mas nenhummastro aparecia acima das longas curvas do rio,o que sugeria que Erik havia conseguidoconvencer o irmão contra uma vingançainstantânea pela humilhação provocada porPyrlig.

— Então, de quem é a idéia de que você deveriaser rei da Mércia? — Pyrlig esperou que eurespondesse, mas não falei nada. — DeSigefrid, não é? É uma idéia maluca de

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Sigefrid.

— Maluca? — perguntei com inocência.

— O sujeito não é idiota — disse Pyrlig —, eo irmão dele certamente não é. Eles sabem queA Ethelstan está ficando velho na ÂngliaOriental e perguntam quem será rei depoisdele. E não há rei na Mércia. Mas ele não podesimplesmente tomar a Mércia, não é? Ossaxões mércios lutarão contra ele e Alfredovirá ajudá-los, e os irmãos Thurgilson irão sepegar enfrentando uma fúria de saxões! AssimSigefrid tem essa idéia de juntar homens etomar a Ânglia Oriental primeiro, depois aMércia, e depois Wessex! E para tudo isso elerealmente precisa que o earl Ragnar tragahomens da Nortúmbria.

Fiquei pasmo ao ver que Pyrlig, amigo deAlfredo, soubesse de tudo o que Sigefrid, Erike Haesten planejavam, mas não demonstrei

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reação.

— Ragnar não lutará — falei, tentando acabarcom a conversa.

— A não ser que você peça — disse Pyrligenfaticamente. Apenas dei de ombros. — Maso que Sigefrid pode oferecer a você? —Quando não respondi de novo, ele mesmo deu aresposta: — Mércia.

Dei um sorriso condescendente.

— Tudo isso parece muito complicado.

— Sigefrid e Haesten — disse Pyrlig,ignorando meu comentário petulante — têmambições de ser reis.

Mas há apenas quatro reinos aqui! Eles nãopodem tomar a Nortúmbria porque Ragnar nãodeixaria. Não podem tomar a Mércia porque

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Alfredo não deixaria. Mas A Ethelstan estáficando velho, por isso eles poderiam tomar aÂnglia Oriental. E por que não terminar oserviço? Tomar Wessex? Sigefrid diz que vaicolocar aquele sobrinho bêbado de Alfredo notrono, e que isso vai ajudá-lo a acalmar ossaxões durante alguns meses até Sigefridassassiná-

lo, e até lá Haesten será rei da Ânglia Orientale alguém, talvez você, rei da Mércia. Semdúvida eles se virariam contra você, então, edividiriam a Mércia entre os dois.

Essa é a idéia, senhor Uhtred, e não é má! Masquem seguiria aqueles dois bandoleiros?

— Ninguém — menti.

— A não ser que estivesse convencido de queas fiandeiras estavam do seu lado — dissePyrlig quase casu-almente, depois me olhou.

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— Você se encontrou com o morto? —perguntou com inocência, e fiquei tão atônitopela pergunta que não respondi. Só olhei paraseu rosto redondo e espancado. — O nomedele é Bjorn — disse o galês, pondo outropedaço de queijo na boca.

— Os mortos não mentem — falei brusca-mente.

— Os vivos mentem! Por Deus, como mentem!

Até eu minto, senhor Uhtred. — Ele riumaliciosamente para mim. — Mandei umamensagem à minha mulher e disse que elaodiaria estar na Ânglia Oriental! — Elegargalhou. Alfredo havia pedido a Pyrlig para irà Ânglia Oriental porque ele era padre e falavadinamarquês, e sua tarefa era educar Guthrumnos costumes cristãos. — Na verdade, elaadoraria aquele lugar! É mais quente do queonde moramos e praticamente não há morros.

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Plana e molhada, assim é a Ânglia Oriental, esem um morro de verdade em lugar nenhum! Eminha mulher nunca gostou de morros, motivopelo qual provavelmente encontrei Deus. Eucostumava morar em topos de morros só paraficar longe dela, e no topo dos morros a gentefica mais perto de Deus. Bjorn não está morto,

Ele havia dito as últimas três palavras combrutalidade súbita, e eu respondi com a mesmaaspereza.

— Eu o vi.

— Você viu um homem sair de uma sepultura,foi o que viu.

— Eu o vi! — insisti.

— Claro que viu! E nunca pensou emquestionar o que viu, não é? — O galês fez apergunta asperamente. —

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Bjorn foi posto naquela sepultura logo antes devocê chegar! Empilharam terra em cima dele eele respirava através de um junco.

Lembrei-me de Bjorn cuspindo alguma coisaenquanto cambaleava para ficar de pé. Não acorda de harpa, mas outra coisa. Eu haviapensado que era um torrão de terra, mas naverdade havia sido algo mais claro. Na hora nãopensei a respeito, mas agora entendia que todaa res-surreição fora um truque, e sentado naproa do Cisne senti os últimos restos do sonhodesmoronando. Eu não seria rei.

— Como sabe tudo isso? — pergunteiamargamente.

— O rei A Ethelstan não é idiota. Ele tem seusespiões. — Pyrlig pôs a mão em meu braço. —Ele foi muito convincente?

— Muito — falei, ainda com amargura.

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— É um dos homens de Haesten, e se algumdia o pegarmos ele vai devidamente para oinferno. Então, o que ele lhe disse?

— Que eu seria rei da Mércia — respondibaixinho.

Seria rei de saxões e dinamarqueses, inimigodos galeses, rei entre os rios e senhor de tudoo que eu governasse. —

Acreditei nele — falei pesaroso.

— Mas como você poderia ser rei da Mércia, anão ser que Alfredo o tornasse rei?

— Alfredo?

— Você fez um juramento a ele, não foi?

Fiquei com vergonha de dizer a verdade, masnão tinha escolha.

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— É — admiti.

— Motivo pelo qual tenho de contar a ele —disse Pyrlig, sério. — Porque um homemviolar um juramento é

coisa séria, senhor Uhtred.

— É mesmo — concordei.

— E Alfredo terá o direito de matar vocêquando eu contar. Dei de ombros.

— Melhor manter seu juramento — dissePyrlig —do que ser enganado por homens quefazem um vivo se fingir de cadáver. Asfiandeiras não estão do seu lado, senhorUhtred. Confie em mim.

Olhei para ele e vi a tristeza em seus olhos. Elegostava de mim, no entanto estava me dizendoque eu fora enganado, e estava certo, e o sonho

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estava desmoronando ao meu redor.

— Que opção eu tenho? — perguntei amargo.—

Você sabe que fui a Lundene para me juntar aeles, e deve contar isso a Alfredo, e ele nuncamais confiará em mim.

— Duvido de que ele confie em você agora —disse Pyrlig, animado. — Alfredo é um homemsábio. Mas conhece você, Uhtred, sabe quevocê é guerreiro, e ele precisa de guerreiros.— Pyrlig parou para puxar a cruz de madeirapendurada ao pescoço. — Jure sobre ela —disse ele.

— Jurar o quê?

— Que manterá o juramento a ele! Faça isso eeu ficarei em silêncio. Faça isso e negarei oque aconteceu.

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Faça isso e protegerei você.

Hesitei.

— Se você violar o juramento a Alfredo —disse Pyrlig —, você é meu inimigo e ele seráforçado a matá-lo.

— Você acha que poderia?

Ele deu seu riso malicioso.

— Ah, você gosta de mim, senhor, mesmo eusendo galês e padre, e relutaria em me matar, eeu teria três golpes antes de você acordar parao perigo, de modo que sim, senhor, eu omataria.

Pus a mão direita na cruz.

— Juro — falei.

E eu ainda era homem de Alfredo.

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TRÊS

Chegamos a Coccham naquela tarde e fiqueiolhando Gisela, que tinha tão pouco amor pelocristianismo quanto eu, sendo calorosa com opadre Pyrlig. Ele flertou com ela de modoultrajante, elogiou-a de maneira extrava-gante ebrincou com nossos filhos. Tínhamos dois, ehavíamos tido sorte, porque os dois bebêsestavam vivos, assim como a mãe. Uhtred era omais velho. Meu filho. Tinha 4 anos, comcabelo tão dourado quanto o meu e um rostinhoforte com nariz pequeno, olhos azuis e queixoteimoso. Eu o amava na época. Minha filhaStiorra estava com 2 anos. Tinha um nomeestranho, e a princípio não gostei dele, masGisela havia implorado comigo e eu não podialhe recusar praticamente nada, e certamentenão o nome de uma filha. Stiorra simplesmentesignificava “estrela”, e Gisela jurou que ela eeu havíamos nos conhecido sob uma estrela da

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sorte e que nossa filha havia nascido sob amesma estrela. Eu já estava acostumado com onome e o amava tanto quanto amava a menina,que tinha o cabelo escuro, o rosto longo e osorriso súbito e maroto da mãe.

— Stiorra, Stiorra! — dizia eu enquanto lhefazia cócegas ou a deixava brincar com meusbraceletes. Stiorra, tão linda.

Brinquei com ela na noite antes de Gisela e eupartirmos para Wintanceaster. Era primavera eo Temes havia diminuído, de modo que ascampinas das margens apareciam de novo e omundo estava coberto de verde enquan-

to as folhas nasciam. Os primeiros cordeirosbaliam em campos repletos de prímulas e osmelros enchiam o céu com canções trinadas. Osalmão havia retornado ao rio e nossasarmadilhas de salgueiro trançado forneciamboa comida. As pereiras em Coccham estavam

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cheias de flores, e igualmente repletas depiscos-chilreiros, que tinham de ser espantadospelos meninos pequenos para que tivéssemosfrutas no verão. Era um bom tempo do ano,uma época em que o mundo acordava, e umperíodo em que havíamos sido convocados àcapital de Alfredo para o casamento de suafilha, AEthelflaed, com meu primo A Ethelred.E naquela noite, enquanto eu fingia que meujoelho era um cavalo e que Stiorra era ocavaleiro, pensei em minha promessa de dar a AEthelred seu presente de casamento. Opresente de uma cidade. Lundene.

Gisela estava fiando lã. Ela pareceu pouco seimportar quando contei que não seria rainha daMércia, e assentira com seriedade quando faleique manteria o juramento a Alfredo. Aceitou odestino mais prontamente do que eu. O destinoe aquela estrela da sorte, disse ela, haviam nosjuntado apesar de tudo o que o mundo fizera

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para nos manter separados.

— Se você mantiver seu juramento a Alfredo—disse de repente, interrompendo minhabrincadeira com Stiorra —, deverá capturarLundene de Sigefrid?

— Sim — respondi, maravilhado, comoacontecia com freqüência, porque ospensamentos dela e os meus costumavam seros mesmos.

— Você pode?

— Posso.

Sigefrid e Erik ainda estavam na velha cidade,com seus homens guardando as muralhasromanas que eles haviam consertado commadeira. Agora nenhum navio podia subir oTemes sem pagar aos irmãos, e a cobrança eragigantesca, de modo que o tráfego do rio havia

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parado, enquanto os mercadores procuravamoutros modos de levar mercadorias paraWessex. O rei Guthrum, da Ânglia Oriental,havia ameaçado Sigefrid e Erik com guerra,mas sua ameaça havia se mostrado vazia.Guthrum não desejava guerra, só queriaconvencer Alfredo de que estava fazendo omáximo para manter o tratado de paz, de modoque, se Sigefrid tivesse de ser removido,seriam os saxões ocidentais que fariam otrabalho, e eu seria responsável por liderá-los.

Eu tinha feito meus planos. Havia escrito aorei, e ele, por sua vez, escrevera aos ealdormendos distritos, e me havia prometidoquatrocentos guerreiros treinados junto com ofyrd de Berrocscire. O fyrd era um exército decamponeses, trabalhadores florestais eoperários, e mesmo sendo numeroso tambémseria destreinado. Os quatrocentos homenstreinados seriam aqueles com quem eu

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contaria, e diziam que Sigefrid tinha pelomenos seis-centos espiões na velha cidade.Esses mesmos espiões diziam que Haestenhavia retornado a seu acampamento emBeamfleot, mas o lugar não ficava longe deLundene e ele correria para reforçar os aliados,assim como os dinamarqueses da ÂngliaOriental que odiavam o cristianismo deGuthrum e queriam que Sigefrid e Erikiniciassem sua guerra de conquista. O inimigo,pensei, teria pelo menos mil homens, e todoseles seriam hábeis com espada, machado oulança. Seriam dinamarqueses guerreiros.Inimigos a temer.

— O rei vai querer saber como você planejaisso —disse Gisela em tom afável.

— Então vou contar.

Ela me deu um olhar dúbio.

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— Vai?

— Claro. Ele é o rei.

Ela pousou a roca no colo e franziu a testa paramim.

— Você vai lhe contar a verdade?

— Claro que não. Ele pode ser rei, mas eu nãosou idiota. Ela riu, o que fez Stiorra ecoar oriso.

— Eu gostaria de poder ir com você a Lundene—disse Gisela, pensativa.

— Não pode — respondi enfático.

— Eu sei — disse ela com humildade poucocarac-terística, depois encostou a mão nabarriga. — Não posso mesmo.

Olhei-a. Olhei por longo tempo enquanto a

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novidade se assentava em minha mente. Olhei,sorri e depois gargalhei. Joguei Stiorra para oalto, e seu cabelo escuro quase tocou a palhaenegrecida de fumaça.

— Sua mãe está grávida — disse à criança queguinchava feliz.

— E é tudo culpa do seu pai — acrescentouGisela, séria. Estávamos felizes demais.

A Ethelred era meu primo, filho do irmão daminha mãe. Era mércio, mas havia anos era leala Alfredo de Wessex, e naquele dia emWintanceaster, na grande igreja que Alfredohavia construído, A Ethelred da Mércia recebeua recompensa por essa lealdade.

Recebeu AEthelflaed, a filha mais velha deAlfredo, nascida depois do primogênito.AEthelflaed tinha cabelos dourados e olhoscom a cor e a luminosidade de um céu de

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verão. Tinha 13 ou 14 anos na época, idadecerta para uma garota se casar, e havia crescidoe se tornado uma jovem alta, com posturaempertigada e expressão ousada.

Já era tão alta quanto o homem que seria seumarido.

Agora A Ethelred é um herói. Ouço históriassobre ele, histórias contadas à luz do fogo emcastelos saxões por toda a Inglaterra. AEthelred, o Ousado; A Ethelred, o Guerreiro; AEthelred, o Leal. Sorrio quando escuto ashistórias, mas não digo nada, nem mesmoquando os homens perguntam se é verdade queconheci A Ethelred.

Claro que conheci A Ethelred, e é verdade queele era guerreiro antes que a doença o deixasselento, até parar, e também era ousado, mas seugolpe mais hábil era pagar poetas para seremseus cortesãos, para que compusessem

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canções sobre suas proezas. Um homem podiaficar rico na corte de A Ethelred juntandopalavras como contas num colar.

Jamais foi rei da Mércia, mesmo querendo.Alfredo se certificou disso, porque Alfredonão queria nenhum rei na Mércia. Queria umseguidor leal para ser governante da Mércia, ese certificou de que esse seguidor leal fossede-pendente do dinheiro saxão do oeste, e AEthelred foi o homem que ele escolheu.Recebeu o título de ealdorman da Mércia, e emtodos os sentidos, menos no nome, era rei, masos dinamarqueses do norte da Mércia nunca re-conheceram sua autoridade. Reconheciam seupoder, e esse poder vinha de ser genro deAlfredo, motivo pelo qual os thegns saxões dosul da Mércia também o aceita-vam. Elespodiam não gostar do ealdorman A Ethelred,mas sabiam que ele podia trazer tropas saxãsocidentais para enfrentar qualquer movimento

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dos dinamarqueses para o sul.

E num dia de primavera em Wintanceaster, umdia cheio de cantos de pássaros e luz do sol, AEthelred chegou ao poder. Entrou na grandeigreja nova de Alfredo com um sorriso norosto de barba ruiva. Meu primo sempre sofreuda ilusão de que os outros gostavam dele; etalvez alguns homens gostassem, mas eu, não.A Ethelred era baixo, brigão e fanfarrão. Seuqueixo era largo e beligerante, os olhosdesafiadores. Tinha o dobro da idade da noiva, edurante quase cinco anos fora co-mandante dastropas domésticas de Alfredo, nomeação quedevia mais ao nas-cimento do que à capacidade.Sua sorte fora herdar terras que se espalhavampela maior parte do sul da Mércia, e isso otornava o nobre mais importante da Mércia e— eu supunha de má vontade — o líder naturaldaquele país triste. Além disso — eu supunhasem má vontade —, era um merda.

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Alfredo jamais via isso. Era enganado peladevoção espalhafatosa de A Ethelred e pelofato de que este estava sempre pronto aconcordar com o rei de Wessex. Sim, senhor;não, senhor; deixe-me esvaziar seu balde de ex-cremento noturno, senhor; deixe-me lamberseu rabo real, senhor. Assim era A Ethelred, esua recompensa era AEthelflaed.

Ela entrou na igreja alguns instantes depois deA Ethelred e, como ele, estava sorrindo. Estavaapaixonada pelo amor, transportada naquele diaa uma altura de júbilo que aparecia como umbrilho no rosto doce. Era uma jovem ágil que jápossuía um balanço nos quadris. Tinha pernascompridas, era esguia, com rosto de narizpetulante e sem qualquer marca de doença.Usava um vestido de linho azul-claro bordadocom painéis mostrando santos com halos ecruzes. Tinha na cintura uma faixa de tecidodourado com borlas penduradas e pequenos

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sinos de prata. Nos ombros levava uma capa delinho branco presa ao pescoço com um brochede cristal. A capa varria os juncos do piso depedras enquanto ela andava. O cabelo, douradoe brilhante, estava enrolado na cabeça e presopor pentes de marfim. Aquele dia de primaverafoi o primeiro em que ela usou o cabelo preso,sinal de casamento, e isso revelava seu pescoçolongo e magro. Naquele dia estava totalmentegraciosa.

AEthelflaed captou meu olhar enquanto ia parao altar coberto de branco, e seus olhos, járepletos de deleite, pareceram assumir umbrilho novo. Sorriu para mim e eu tive de sorrirde volta, e ela riu de alegria antes de ir nadireção do pai e do homem que seria seumarido.

— Ela gosta muito de você — disse Gisela,sorrindo.

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— Somos amigos desde que ela era criança —respondi.

— Ela ainda é criança — disse Gisela baixinhoenquanto a noiva chegava ao altar coberto deflores e sob o peso da cruz.

Lembro-me de pensar que A Ethelflaed estavasendo sacrificada naquele altar, mas se isso eraverdade, era uma vítima tremendamentedisposta. Ela sempre fora uma criança travessae voluntariosa, e eu não duvidava de que seirritava sob o olhar azedo da mãe e as regrassérias do pai. Via o casamento como uma fugada corte severa e devota de Alfredo, e naqueledia a igreja nova de Alfredo estava cheia de suafelicidade. Vi Steapa, talvez o maior guerreirode Wessex, chorando. Como eu, Steapa gostavade A Ethelflaed.

Havia quase trezentas pessoas na igreja.Enviados tinham vindo dos reinos francos do

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outro lado do mar, e outros da Nortúmbria, daMércia, da Ânglia Oriental e dos reinosgaleses, e esses homens, todos padres enobres, receberam lugares de honra perto doaltar. Os ealdormen e os reeves importantes deWessex também estavam, e mais perto do altarhavia um rebanho escuro de padres e monges.Ouvi pouca coisa da missa, porque Gisela e euestávamos nos fundos da igreja ondeconversamos com amigos. De vez em quandouma ordem ríspida de silêncio era dada por umpadre, mas ninguém ligava.

Hild, abadessa de um convento emWintanceaster, abraçou Gisela, que tinha duasboas amigas cristãs. A primeira era Hild, queum dia fugira da igreja para ser minha amante, ea outra era Thyra, irmã de Ragnar, com quem euhavia crescido e que eu amava como irmã.Thyra era dinamarquesa, claro, e fora criada noculto de Tor e Odin, mas havia se convertido e

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vindo para o sul, até Wessex.

Vestia-se como freira. Usava um manto verde esem graça com capuz que escondia sua belezaestonteante. Uma faixa preta envolvia suacintura, que normalmente era fina como a deGisela, mas agora estava roliça de gravidez. Pusa mão suavemente na faixa.

— Outro? — perguntei.

— E para logo — disse Thyra. Ela havia dado àluz três filhos, dos quais um, um menino, aindavivia.

— Seu marido é insaciável — falei comseriedade fingida.

— É a vontade de Deus — disse Thyra, séria. O

humor que eu recordava, de sua infância, haviase evapo-rado com a conversão, mas na verdade

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provavelmente a abandonara quando ela foraescravizada em Dunholm pe-

los inimigos de seu irmão. Ela fora estuprada,abusada e enlouquecida pelos captores, eRagnar e eu havíamos lutado para invadirDunholm e resgatá-la, mas foi o cristianismoque a libertou da loucura e a transformou namulher serena que agora me olhava com tantaseriedade.

— E como vai seu marido? — perguntei.

— Bem, obrigada. — Seu rosto se iluminouenquanto ela falava. Thyra havia encontrado oamor, não somente de Deus, mas de um bomhomem, e por isso eu agradecia.

— Você vai chamar a criança de Uhtred, claro,se for um menino — falei sério.

— Se o rei permitir vamos chamá-lo de

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Alfredo —disse Thyra. — E se for menina vaise chamar Hild.

Isso fez Hild chorar, e então Gisela revelouque também estava grávida, e as três mulheresentraram numa discussão interminável sobrebebês. Libertei-me e encontrei Steapa, queestava parado, com a cabeça e os ombros acimado restante da congregação.

— Sabe que eu devo expulsar Sigefrid e Erik deLundene? — perguntei.

— Foi o que me disseram — disse ele, de seujeito lento e deliberado.

— Você virá?

Ele deu um sorriso rápido que entendi comoconfirmação. Steapa tinha rosto amedrontador,a pele muito esticada no crânio de ossosgrandes, de modo que parecia estar

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perpetuamente fazendo careta. Na batalha eratemível, um guerreiro enorme, hábil com aespada e selvagem.

Nascera escravo, mas seu tamanho e acapacidade de lutar o haviam trazido àimportância atual. Servia na guarda pessoal deAlfredo, tinha escravos e era dono de uma vas-

ta quantidade de terras em Wiltunscir. Oshomens tinham cautela com Steapa por causada raiva que estava sempre presente em seurosto, mas eu sabia que ele era um sujeitogentil. Não era inteligente. Steapa nunca foi depensar, mas era gentil e leal.

— Vou pedir ao rei para liberá-lo — falei.

— Ele quer que eu vá com A Ethelred.

— Você preferiria estar com o homem queluta, não é?

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Steapa piscou para mim, lento demais paraentender o insulto que eu fizera contra meuprimo.

— Lutarei — disse ele, depois pôs o braçoenorme nos ombros de sua mulher, umacriatura minúscula com rosto ansioso e olhospequenos. Eu jamais conseguia lembrar o nomedela, por isso cumprimentei-a educadamente efui andando em meio à multidão.

A Ethelwold me encontrou. O sobrinho deAlfredo havia começado a beber de novo e seusolhos estavam injetados. Ele fora um rapazbonito, mas o rosto estava ficando largo e asveias, vermelhas e partidas sob a pele.

Puxou-me para a lateral da igreja até ficarmossob um estandarte no qual fora bordada em lãvermelha uma longa exortação. “Tudo o QuePedires a Deus”, dizia o estandarte, “Receberásse Acreditares. Quando a Boa Oração Pede, a

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Fé Humilde Recebe”. Presumi que a mulher deAlfredo e suas damas haviam feito o bordado,mas os sentimentos pareciam ser do próprioAlfredo. A Ethelwold estava segurando meucotovelo com tanta força que doía.

— Achei que você estava do meu lado —sibilou ele, em tom de reprovação.

— Estou — respondi.

Ele me olhou cheio de suspeitas.

— Você se encontrou com Bjorn?

— Encontrei um homem que fingia ser morto.

Ele ignorou isso, o que me surpreendeu.Lembrei-me de como A Ethelwold ficaraafetado pelo encontro com Bjorn, tãoimpressionado que permaneceu sóbrio por umtempo, mas agora recebeu minha

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desconsideração pelo cadáver ressuscitadocomo algo sem importância.

— Você não entende — disse ele, aindasegurando meu cotovelo — que esta é nossamelhor chance!

— Nossa melhor chance de quê? — pergunteicom paciência.

— De nos livrarmos dele. — A Ethelwold faloucom veemência demais e algumas pessoas aliperto se viraram para nos olhar. Não falei nada.Claro que A Ethelwold queria se livrar do tio,mas não tinha coragem para dar o golpepessoalmente, motivo pelo qual viviaprocurando aliados como eu, Olhou meu rostoe evidentemente não encontrou apoio, porquesoltou meu braço. — Eles querem saber sevocê pediu a Ragnar — disse com a voz maisbaixa.

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Então A Ethelwold ainda estava em contatocom Sigefrid? Interessante, mas talvez nãosurpreendente.

— Não — respondi —, não pedi.

— Pelo amor de Deus, por quê?

— Porque Bjorn mentiu, e não é meu destinoser rei da Mércia.

— Se algum dia eu me tornar rei de Wessex —disse A Ethelwold com amargura —, é melhorvocê fugir para salvar a vida. — Sorri disso, emseguida simplesmente olhei para ele sempiscar, e depois de um tempo ele se virou emurmurou algo inaudível que eraprovavelmente um pedido de desculpas. Olhoupara o outro lado da igreja, com o rostosombrio. — Aquela vaca dinamarquesa —disseele com veemência.

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— Que vaca dinamarquesa? — perguntei, e porum instante pensei que ele estava falando deGisela.

— Aquela vaca — ele balançou a cabeça nadireção de Thyra. — A que se casou com oidiota. A vaca religiosa.

A de barriga inchada.

— Thyra?

— Ela é linda — disse A Ethelwold em tomvingativo.

— É mesmo.

— E se casou com um velho idiota! — disseele olhando para Thyra com desprezo. —Quando ela tiver parido aquele filhote eu voudeitá-la de costas e mostrar como um homemde verdade ara um campo.

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— Você sabe que ela é minha amiga? —perguntei.

A Ethelwold ficou alarmado. Obviamente nãosabia de meu longo afeto por Thyra, e agoratentou se retratar.

— Só acho que é linda — disse carrancudo —,só

isso. Sorri e me inclinei para perto de seuouvido,

— Se você tocá-la — sussurrei —, enfio umaespada no seu cu e o abro da virilha até agarganta e depois dou suas entranhas aos meusporcos. Toque-a uma vez, A Ethelwold, só uma.E você está morto.

Afastei-me. Ele era idiota, bêbado emulherengo, e eu o considerava inofensivo. Enisso estava errado, por acaso. Afinal de

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contas, ele era o rei por direito de Wessex,mas só ele e alguns outros idiotas realmenteacreditavam que deveria ser rei, em vez deAlfredo. Alfredo era tudo o que o sobrinho nãoera: sóbrio, inteligente, zeloso e sério.

E naquele dia também estava feliz. Ficouolhando a filha se casar com um homem queele amava quase como a um filho, ouvia osmonges cantando, olhava a igreja que ele haviafeito com traves douradas e estátuas pintadas, esabia que com esse casamento estavaassumindo o contro-le do sul da Mércia.

O que significava que Wessex, como os bebêsdentro de Thyra e Gisela, estava crescendo.

O padre Beocca me encontrou do lado de forada igreja, onde os convidados do casamentoestavam ao sol esperando o chamado para afesta no castelo de Alfredo.

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— Havia muita gente conversando na igreja! —reclamou Beocca. — Esse foi um dia santo,Uhtred, um dia sagrado, uma celebração dosacramento, e as pessoas falavam como seestivessem num mercado!

— Eu era um.

— Era? — perguntou ele, espiando-me. —Bem, você não deveria estar falando. Ésimplesmente má educação! E um insulto aDeus! Estou pasmo com você, Uhtred, estoumesmo! Estou pasmo e desapontado.

— Sim, padre — falei sorrindo. Beocca vinhame reprovando havia anos. Quando eu eracriança, Beocca era o padre e confessor demeu pai e, como eu, havia fugido daNortúmbria quando meu tio usurpouBebbanburg. Beocca havia encontrado refúgiona corte de Alfredo, onde sua devoção, seusconhecimentos e seu entusiasmo eram

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apreciados pelo rei. O favor real chegou aponto de fazer com que os homens parassem dezombar de Beocca, que, com toda a verdade,era o sujeito mais feio que você poderiaencontrar em Wessex. Tinha pé torto, um olhovesgo e uma das mãos paralisada. Era cego doolho vesgo, que havia ficado branco como ocabelo, porque agora ele tinha quase 50 anos.As crianças zombavam dele na rua e algumaspessoas faziam o sinal-da-cruz, acreditando queaquela feiúra era marca do diabo, mas ele era omelhor cristão que já conheci.

— É bom vê-lo — disse ele num tom de poucaimportância, como se temesse que euacreditasse. — Sabe que o rei quer falar comvocê? Sugeri que você o encontrasse depois dafesta.

— Vou estar bêbado.

Ele suspirou, depois estendeu a mão boa para

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esconder o amuleto do martelo de Tor queestava aparecendo em meu pescoço. Enfiou-osob minha túnica.

— Tente ficar sóbrio — disse.

— Amanhã, talvez?

— O rei é ocupado, Uhtred! Não espera por suaconveniência.

— Então terá de falar comigo estando bêbado.

— E alerto que ele quer saber quando vocêpode tomar Lundene. Por isso deseja falar comvocê. — Beocca parou abruptamente porqueGisela e Thyra vinham em nossa direção, e orosto dele foi subitamente transformado pelafelicidade. Só ficou olhando para Thyra comoalguém que tivesse uma visão e, quando elasorriu para ele, pensei que seu coração iriaexplodir de orgulho e devoção.

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— Não está com frio, está, querida? —perguntou solícito.

— Posso lhe arranjar uma capa.

— Não estou com frio.

— Sua capa azul?

— Estou quente, querido — respondeu ela, epôs a mão em seu braço.

— Não será problema! — disse Beocca.

— Não estou com frio, meu querido — disseThyra, e de novo Beocca pareceu que iriamorrer de felicidade.

Durante toda a vida Beocca havia sonhado commulheres. Com mulheres bonitas. Com umamulher que se casasse com ele e lhe dessefilhos, e durante toda a vida sua aparência

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grotesca fizera dele objeto de escárnio, até

que, no topo de um morro coberto de sangue,conheceu Thyra e baniu os demônios da almadela. Agora já estavam casados havia quatroanos. Olhar para eles era ter certeza de quenenhum outro casal era mais feito um para ooutro.

Um padre velho, feio e meticuloso e umadinamarquesa jovem e de cabelos dourados,mas estar perto deles era sentir sua alegriacomo o calor de uma grande fogueira numanoite de inverno.

— Você não devia estar de pé, querida, em suacondição — disse ele. — Vou lhe arranjar umbanco.

— Logo estarei sentada, querido.

— Um banco, acho, ou uma cadeira. E tem

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certeza de que não precisa de uma capa?Realmente não seria problema pegar uma.

Gisela me olhou e sorriu, mas Beocca e Thyranão nos notavam enquanto um se preocupavacom o outro.

Então Gisela sacudiu ligeiramente a cabeça eeu olhei e vi um jovem monge parado ali pertoe me olhando. Obviamente ele estiveraesperando para atrair meu olhar, e tambémevidentemente estava nervoso. Era magro, nãomuito alto, de cabelos castanhos e rosto pálidoque se parecia notavelmente com o de Alfredo.Havia a mesma expressão fechada e ansiosa, osmesmos olhos sérios e a boca fina, e semdúvida a mesma devoção, a julgar pelo mantode monge. Era noviço, porque o cabelo nãoestava tonsurado, e se abaixou sobre um dosjoelhos quando o olhei.

— Senhor Uhtred — disse ele com humildade.

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— Osferth! — exclamou Beocca, percebendo apresença do jovem monge. — Você deveriaestar em seus estudos! O casamento terminou eos noviços não são convidados à festa.

Osferth ignorou Beocca. Em vez disso, decabeça baixa, falou comigo.

— O senhor conheceu meu tio, senhor.

— Conheci? — perguntei cheio de suspeitas.—

Conheci muitos homens — falei, preparando-me para a recusa que tinha certeza de que dariaa qualquer coisa que ele pedisse.

— Leofric, senhor.

E minha suspeita e a hostilidade desapareceramà

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menção daquele nome. Leofric. Até sorri.

— Eu o conheci — disse calorosamente — egostava demais dele. — Leofric havia sido umduro guerreiro saxão ocidental que me ensinarasobre a guerra. Costumava me chamar deearsling, que significava algo caído de um cu, eele me deixou forte, me incomodou, rosnoucomigo, bateu em mim, tornou-se meu amigo epermaneceu meu amigo até o dia em quemorreu no campo de batalha varrido pela chuvaem Ethandun.

— Minha mãe é irmã dele, senhor — disseOsferth.

— Aos seus estudos, rapaz — alertou Beocca,sério.

Pus a mão no braço paralítico de Beocca, paracontê-lo.

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— Qual o nome de sua mãe? — perguntei aOsferth.

— Eadgyth, senhor.

Inclinei-me e levantei o rosto de Osferth. Nãoera de espantar que ele se parecesse comAlfredo, porque aquele era o filho bastardo deAlfredo que fora gerado numa serviçal dopalácio. Ninguém jamais admitia que Al-

fredo era pai do garoto, mas aquele era umsegredo aberto.

Antes de encontrar Deus, Alfredo haviadescoberto a alegria das aias do palácio, eOsferth era produto dessa exuberância juvenil.

— Eadgyth vive? — perguntei.

— Não, senhor. Morreu de febre há dois anos.

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— E o que você está fazendo aqui em Win-

tanceaster?

— Está estudando para a igreja — respondeuBeocca com rispidez — porque sua vocação éser monge.

— Eu serviria ao senhor — disse Osferthansioso, olhando meu rosto.

— Vá! — Beocca tentou expulsar o rapaz. —Vá!

Vá embora! De volta a seus estudos, oumandarei o mes-tre dos noviços chicoteá-lo!

— Você já segurou uma espada? — perguntei aOsferth.

— A que meu tio me deu, senhor, eu a tenho.

— Mas não lutou com ela?

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— Não, senhor — respondeu ele, e continuoume olhando, muito ansioso e amedrontado, ecom um rosto tão parecido com o do pai.

— Você quer ser monge? — perguntei aOsferth.

— Não, senhor.

— Então quer ser o quê? — pergunteiignorando o padre Beocca, que estava soltandoprotestos, mas incapaz de passar pelo meubraço que o continha.

— Gostaria de seguir os passos de meu tio,senhor

— disse Osferth. Quase ri. Leofric fora oguerreiro mais duro que já viveu e morreu, aopasso que Osferth era um rapaz pequeno,pálido, mas consegui ficar com o rostoimpassível.

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— Finan! — gritei.

O irlandês apareceu a meu lado.

— Senhor?

— Este rapaz vai se juntar à minha tropadoméstica

— respondi entregando algumas moedas aFinan.

— Você não pode... — Beocca começou aprotestar, depois ficou quieto quando Finan eeu o encaramos.

— Leve Osferth — ordenei a Finan —, arranje-lhe roupas dignas de um homem e lhe consigaarmas.

Finan olhou em dúvida para Osferth.

— Armas?

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— Ele tem sangue de guerreiros, de modo queagora vamos lhe ensinar a lutar.

— Sim, senhor — disse Finan, o tom de vozsugerindo que eu estava louco, mas então olhoupara as moedas que eu havia lhe dado e viu umachance de lucro. Riu.

— Ainda vamos fazer dele um guerreiro,senhor — disse, sem dúvida acreditando quementia, depois levou Osferth.

Beocca virou-se para mim.

— Sabe o que você acabou de fazer? —perguntou bruscamente.

— Sei.

— Sabe quem é aquele garoto?

— O bastardo do rei — respondi com

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brutalidade

—, e acabo de fazer um favor a Alfredo.

— Acabou de fazer? — perguntou Beocca,ainda irritado. — E que tipo de favor?

— Quanto tempo você acha que ele duraráquando eu o puser numa parede de escudos?Quanto tempo vai se passar antes que umaespada dinamarquesa o corte como um arenquemolhado? Este, padre, é o favor. Acabo delivrar seu rei devoto de um bastardoinconveniente.

Fomos para a festa.

A festa de casamento foi tão medonha quantoeu esperava. A comida de Alfredo jamais eraboa, raramente bastava, e sua cerveja erasempre fraca. Discursos foram feitos, mas nãoouvi nenhum, e harpistas cantaram, mas não

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pude escutá-los. Conversei com amigos, fizcareta para vários padres que não gostavam demeu amuleto do martelo e subi o tablado até amesa mais alta para dar um beijo casto em AEthelflaed. Ela era toda felicidade.

— Sou a garota mais sortuda do mundo —disse-me ela.

— Agora você é a mulher — respondi sorrindode seu cabelo de mulher, preso no alto.

Ela mordeu o lábio inferior, pareceu tímida,depois deu um sorriso maroto enquanto Giselase aproximava.

As duas se abraçaram, cabelo dourado deencontro ao escuro, e A Elswith, a azedamulher de Alfredo, me olhou furiosa. Fiz umareverência.

— Um dia feliz, senhora — falei.

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A Elswith ignorou isso. Estava sentada ao ladode meu primo, que gesticulou para mim comuma costela de porco.

— Você e eu temos negócios a discutir —disse ele.

— Temos sim — respondi.

— Temos sim, senhor — corrigiu A Elswithasperamente. — O senhor A Ethelred éealdorman da Mércia.

— E eu sou o senhor de Bebbanburg — faleicom uma aspereza igual à dela. — Como vai,primo?

— De manhã lhe contarei nossos planos —disse A Ethelred.

— Disseram-me — falei ignorando a verdadede que Alfredo havia me pedido para criar os

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planos para a captura de Lundene — que vamosencontrar o rei esta noite. É?

— Esta noite tenho outras questões a atender—disse A Ethelred, olhando para sua jovemnoiva, e num piscar de olhos sua expressão eraferoz, quase selvagem, depois ele me ofereceuum sorriso. — De manhã, depois das orações.— E balançou a costela de porco de novo, medispensando.

Gisela e eu ficamos naquela noite no quartoprincipal da taverna Dois Grous. Ficamosjuntos, meu braço ao redor dela, e dissemospouco. A fumaça da lareira da taverna subiapelas tábuas soltas do piso e os homenscantavam embaixo de nós. Nossos filhosdormiam do outro lado do quarto com a aia deStiorra, enquanto camundongos se agitavam napalha acima.

— Mais ou menos agora, acho — disse Gisela

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em tom pensativo, rompendo nosso silêncio.

— Agora?

— A coitadinha da A Ethelflaed está virandomulher.

— Ela mal pode esperar para isso acontecer.Gisela balançou a cabeça.

— Ele vai estuprá-la como a um javali — disse,sussurrando as palavras. Não falei nada. Giselapôs a cabeça em meu peito e seu cabelo ficouem cima de minha boca. — O amor deve serterno.

— O amor é terno.

— Com você, é — disse ela, e por ummomento pensei que ela estava chorando.

Acariciei seu cabelo.

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— O que é?

— Gosto dela, só isso.

— De A Ethelflaed?

— Ela tem espírito, e ele não tem nenhum. —Gisela inclinou a cabeça para me olhar, e naescuridão eu só

podia ver o brilho de seus olhos. — Vocênunca me contou — disse em tom dereprovação — que a Dois Grous é um bordel.

— Não há muitas camas em Wintanceaster, enem de longe o suficiente para todos osconvidados, por isso tivemos muita sorte deencontrar este quarto.

— E eles conhecem você muito bem aqui,Uhtred

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— disse ela em tom de acusação.

— Também é uma taverna — respondidefensivamente.

Ela riu, depois estendeu o braço comprido emagro e abriu uma janela para descobrir que océu estava repleto de estrelas.

O céu continuava límpido na manhã seguinte,quando fui ao palácio. Entreguei minhas duasespadas e fui levado por um padre jovem emuito sério à sala de Alfredo. Eu haviaencontrado o rei com muita freqüência naqueleaposento pequeno e nu, atulhado depergaminhos.

Ele estava esperando ali, vestindo o mantomarrom que o fazia parecer um monge, e comele estava A Ethelred, que usava suas espadasporque, como ealdorman da Mércia, receberaesse privilégio dentro do palácio. Havia um

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terceiro homem na sala, Asser, o monge galês,que me olhou com desprezo sem disfarces. Eraum homem magro e baixo, de rosto muitopálido e cuidadosamente barbeado. Tinha bonsmotivos para me odiar.

Eu o havia conhecido em Comwalum, ondeliderei uma chacina no reino do qual ele eraemissário e também tentei matá-lo, fracassoque lamentei durante toda a vida. Ele fez ummuxoxo para mim e eu o recompensei com umriso alegre que sabia que iria irritá-lo.

Alfredo não levantou os olhos de seu trabalho,mas sinalizou para mim com a pena. O gestoera evidentemente de boas-vindas. Ele estavaparado junto à mesa alta e inclinada que usavapara escrever, e por um momento só

pude ouvir a pena raspando o pergaminho. AEthelred deu um risinho, parecendo satisfeitoconsigo mesmo, mas ele sempre estava assim.

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— De consolatione philosophiae — disseAlfredo sem erguer os olhos de seu trabalho.

— Mas parece que vai chover — disse eu —,há

uma névoa no oeste, senhor, e o vento estáforte.

Ele me deu um olhar exasperado.

— O que é preferível — perguntou — e maisdoce nesta vida do que servir e estar perto dorei?

— Nada! — disse A Ethelred com entusiasmo.

Não respondi porque estava atônito demais.Alfredo gostava das formalidades das boasmaneiras, mas raramente queria obséquio, noentanto a pergunta sugeria que desejava algumaexpressão de adoração de minha parte. Alfredo

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viu minha surpresa e suspirou.

— É uma pergunta proposta na obra que estoucopiando — explicou ele.

— Estou ansioso para ler — disse A Ethelred.Asser não disse nada, só me espiou com seusolhos escuros de galês. Era um homeminteligente, e quase tão digno de confiançaquanto uma doninha manca.

Alfredo pousou a pena.

— O rei, neste contexto, senhor Uhtred, podeser visto como representante do Deus Todo-Poderoso, e a questão sugere, não?, o confortoa ser obtido com a pro-

ximidade de Deus. No entanto, temo que vocênão encontre consolo na filosofia nem nareligião. — Ele balançou a cabeça, depoistentou limpar a tinta das mãos com um pano

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úmido.

— Era melhor que ele encontrasse consolo emDeus, senhor rei, se sua alma não quiserqueimar no fogo eterno — falou Asser pelaprimeira vez.

— Amém — disse A Ethelred.

Alfredo olhou pensativo para as mãos queagora estavam manchadas de tinta.

— Lundene — disse mudando rapidamente deas-sunto.

— É guarnecida por bandoleiros que estãomatando o comércio — respondi.

— Isso eu sei — disse ele gelidamente. — Otal de Sigefrid.

— Sigefrid Com Só Um Polegar, graças ao

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padre Pyrlig.

— Isso também sei — disse o rei —, masgostaria muito de saber o que você estavafazendo na companhia de Sigefrid.

— Espionando-os, senhor — respondianimado.

— Assim como o senhor espionou Guthrum hátantos anos. — Estava me referindo a uma noitede inverno quando, como um idiota, Alfredo sedisfarçou de músico e foi a Cippanhammquando a cidade estava ocupada por Guthrum,na época em que este era inimigo de Wessex. Abravura de Alfredo dera tremendamente errado,e se eu não estivesse lá, ouso dizer queGuthrum viraria rei de Wessex. Sorri paraAlfredo e ele soube que eu estava lembrando-ode que havia salvado sua vida, mas em vez dedemonstrar gratidão ele simplesmente pareceuenojado.

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— Não foi o que ouvi dizer — atacou o ir-mãoAsser.

— E o que ouviu dizer, irmão?

Ele ergueu um dedo longo e magro.

— Que você chegou a Lundene com o pirataHaesten — um segundo dedo se juntou aoprimeiro —, que foi bem recebido por Sigefride o irmão dele, Erik — ele parou, os olhosescuros malévolos, e levantou um terceirodedo —, e que os pagãos se dirigiram a vocêcomo rei da Mércia. — Ele dobrou os trêsdedos lentamente, como se suas acusaçõesfossem irrefutáveis.

Balancei a cabeça num espanto fingido.

— Conheço Haesten desde que salvei a vidadele há muitos anos, e usei o conhecimentopara ser convidado a Lundene. E de quem é a

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culpa se Sigefrid me dá um título que nãoquero nem possuo? — Asser não respondeu, AEthelred se agitou atrás de mim enquantoAlfredo apenas me olhava. — Se não acredita,pergunte ao padre Pyrlig.

— Ele foi mandado de volta à Ânglia Oriental—disse Asser bruscamente — para continuarsua missão.

Mas vamos perguntar. Pode ter certeza.

— Eu já perguntei — disse Alfredo, fazendoum gesto de calma na direção de Asser — e opadre Pyrlig testemunhou a seu favor. — Eleacrescentou estas últimas palavras com cautela.

— E por que Guthrum não se vingou pelosinsultos a seus enviados?

— perguntei.

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— O rei A Ethelstan — disse Alfredo, usando onome cristão de Guthrum — abandonouqualquer reivindicação relativa a Lundene. Acidade pertence à Mércia.

As tropas dele não irão invadi-la. Mas prometilhe mandar Sigefrid e Erik como cativos. Esseé seu trabalho. — Assenti, mas não falei nada.— Então diga, como planeja capturar Lundene?

Fiz uma pausa.

— O senhor tentou pagar resgate à cidade,senhor?

— perguntei. Alfredo pareceu irritado com apergunta, depois assentiu abruptamente.

— Ofereci prata — disse com rigidez.

— Ofereça mais — sugeri. Ele me deu umolhar azedo.

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— Mais?

— A cidade será difícil de ser tomada, senhor.Sigefrid e Erik têm centenas de homens.Haesten vai se juntar a eles assim que ouvirfalar que marchamos. Teríamos de atacarmuralhas de pedra, senhor, e os homensmorrem como moscas nesses ataques.

De novo A Ethelred se agitou atrás de mim. Eusabia que ele queria descartar meus temorescomo sendo covardia, mas teve bom sensosuficiente para ficar em silêncio.

Alfredo balançou a cabeça.

— Eu ofereci prata — disse amargamente —,mais prata do que um homem pode sonhar.Ofereci ouro. Eles disseram que aceitariammetade do que ofereci se acres-centasse maisuma coisa. — Ele me olhou com beligerância.Dei de ombros rapidamente, como se sugerisse

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que ele havia rejeitado uma barganha. — Elesqueriam A Ethelflaed.

— Em vez disso podem ficar com minhaespada —disse A Ethelred com beligerância.

— Eles queriam sua filha? — perguntei, pasmo.

— Pediram porque sabiam que eu não cederia à

reivindicação e porque desejavam me insultar.— Alfredo deu de ombros, como se sugerisseque o insulto era tão débil quanto pueril. —Assim, se os irmãos Thurgilson têm de serexpulsos de Lundene, você deve fazer isso.Diga como.

Fingi juntar os pensamentos.

— Sigefrid não tem homens suficientes paraguardar todo o circuito das muralhas da cidade— respondi.

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— Assim, mandamos um grande ataque contra aporta ocidental e lançamos o verdadeiro ataquea partir do norte.

Alfredo franziu a testa e folheou ospergaminhos empilhados no parapeito dajanela. Encontrou a página que desejava eespiou a escrita.

— Pelo que sei, a cidade velha tem seis portas—disse ele. — A qual você se refere?

— No oeste — respondi —, a porta mais pertodo rio. O povo do local chama de Porta Ludd.

— E do lado norte?

— Há duas portas, uma leva diretamente àantiga fortaleza romana, a outra vai até omercado.

— Ao fórum — corrigiu Alfredo.

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— Vamos pegar a que leva ao mercado — disseeu.

— Não à fortaleza?

— A fortaleza faz parte das muralhas —expliquei.

— De modo que, se capturarmos essa porta,ainda teremos de atravessar a muralha sul dafortaleza. Mas se capturarmos o mercado,nossos homens terão cortado a retirada deSigefrid.

Eu estava falando absurdos por um motivo, masera um absurdo plausível. Lançar um ataque apartir da nova cidade saxã atravessando o rioFleot até as muralhas da velha cidade atrairia osdefensores à porta Ludd, e se uma força menore mais bem treinada pudesse então atacar donorte, poderia encontrar aquelas muralhaspouco guardadas. Assim que estivesse dentro

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da cidade, essa segunda força poderia atacar oshomens de Sigefrid por trás e abrir a portaLudd para deixar o restante do exército entrar.Na verdade, era o modo óbvio de atacar acidade. De fato, era tão óbvio que eu tinhacerteza de que Sigefrid estaria prevenido contraisso. Alfredo pensou na idéia.

A Ethelred não disse nada. Estava esperando aopinião do sogro.

— O rio — disse Alfredo em tom hesitante,depois balançou a cabeça, como se opensamento não estivesse indo a lugar algum.

— O rio, senhor?

— Uma aproximação por barco? — sugeriuAlfredo, ainda hesitando. Deixei a idéia pairar,e era como balançar um pedaço de cartilagemna frente de um filhote de cachorro semtreinamento. E o filhote saltitou devidamente.

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— Um ataque por navio é francamente umaidéia melhor — disse A Ethelred, confiante. —Quatro ou cinco navios? Viajando a favor dacorrente? Podemos desembarcar nos cais eatacar as muralhas por trás.

— Um ataque por terra será perigoso — disseAlfredo em dúvida, mas a pergunta sugeria queele estava apoiando as idéias do genro.

— E provavelmente estaria condenada —contri-buiu A Ethelred, confiante. Ele nãoestava tentando esconder o escárnio por meuplano.

— Você considerou um ataque por navio? —perguntou-me Alfredo.

— Considerei, senhor.

— Parece-me uma idéia muito boa! — disse AEthelred com firmeza. Por isso agora eu dei a

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chicotada que o filhote de cão merecia.

— Há uma muralha no rio, senhor. Podemosdesembarcar nos cais, mas ainda teríamos deatravessar uma muralha.

A muralha era construída logo depois dos cais.Era outra obra romana, toda de alvenaria,tijolos e cheia de bastiões circulares.

— Ah — disse Alfredo.

— Mas, claro, senhor, se meu primo desejaliderar um ataque contra a muralha do rio?

A Ethelred ficou em silêncio.

— A muralha do rio é alta? — perguntouAlfredo.

— O bastante, e foi consertada recentemente—respondi. — Mas, claro, eu cedo à

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experiência de seu genro.

Alfredo sabia que eu não fazia isso, e melançou um olhar irritado antes de decidir mebater como eu havia batido em A Ethelred.

— O padre Beocca disse que você tomou oirmão Osferth a seu serviço.

— Tomei, senhor.

— Não é o que desejo para o irmão Osferth —disse Alfredo com firmeza —, portanto, vocêvai mandá-lo de volta.

— Claro, senhor.

— A vocação dele é servir à Igreja — disseAlfredo, suspeitando de minha concordânciarápida. Em seguida, se virou e olhou pela janelapequena. — Não posso suportar a presença deSigefrid. Temos de abrir a passagem do rio aos

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navios, e precisamos disso logo. — Suas mãosmanchadas de tinta estavam cruzadas às costase eu podia ver os dedos se abrindo e fechando.— Quero isso feito antes do canto do primeirocuco. O senhor A Ethelred vai comandar asforças.

— Obrigado, senhor — disse A Ethelred, e seabaixou sobre um dos joelhos.

— Mas você seguirá o conselho do senhorUhtred

— insistiu o rei, virando-se para o genro.

— Claro, senhor — concordou A Ethelred semsinceridade.

— O senhor Uhtred é mais experiente naguerra do que você — explicou o rei.

— Irei valorizar a assistência dele, senhor —

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mentiu A Ethelred com bastante convicção.

— E quero que a cidade seja tomada antes docanto do primeiro cuco! — reiterou o rei.

O que significava que tínhamos, talvez, seissemanas.

— O senhor convocará homens agora? —perguntei a Alfredo.

— Convocarei — respondeu ele —, e cada umde vocês cuidará de suas provisões.

— E eu lhe ciarei Lundene — disse A Ethelredcom entusiasmo. — O que as boas oraçõespedem, senhor, a fé

humilde recebe!

— Não quero Lundene — retrucou Alfredocom alguma aspereza — se ela pertence à

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Mércia, a você. —

Ele deu uma leve inclinação de cabeça para AEthelred. —

Mas talvez você me permita nomear um bispo eum governador da cidade, não?

— Claro, senhor — disse A Ethelred.

Fui dispensado, deixando pai e genro com oazedo Asser. Parei ao sol do lado de fora epensei em como tomaria Lundene, porque sabiaque teria de fazer isso, e sem que A Ethelredjamais suspeitasse de meus planos. E issopoderia ser feito, pensei, mas apenas comfurtividade e sorte. Wyrd bid ful ãraed.

Fui procurar Gisela. Atravessei o pátio externoe vi um agrupamento de mulheres ao lado deuma das portas.

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Eanflaed estava entre elas e me virei paracumprimentá-la.

Ela já fora prostituta, depois havia se tornadoamante de Leofric, e agora era dama decompanhia da mulher de Alfredo. Eu duvidavade que A Elswith soubesse que sua dama decompanhia já fora prostituta, mas talvezsoubesse e não se importasse porque o eloentre as duas mulheres era uma amarguracompartilhada. A Elswith se ressentia porqueWessex não podia chamar a mulher do rei derainha, ao passo que Eanflaed sabia demaissobre os homens para gostar de algum deles.No entanto, eu gostava de Eanflaed e medesviei do caminho para falar com ela, mas aome ver chegando ela balançou a cabeça,alertando para eu não me aproximar.

Então parei e vi que Eanflaed estava com obraço ao redor de uma mulher mais jovem,

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sentada numa cadeira de cabeça baixa. Elaergueu o olhar de repente e me viu.

Era A Ethelflaed, e seu rosto bonito estavapálido, maci-lento e apavorado. Estiverachorando e seus olhos ainda estavam brilhantesde lágrimas. Pareceu não me reconhecer,depois reconheceu e me deu um olhar triste erelutante. Sorri de volta, fiz uma reverência econtinuei andando.

E pensei em Lundene.

SEGUNDA PARTE

A cidade

QUATRO

Em Wintanceaster havíamos concordado que AEthelred desceria pelo rio até Coccham,trazendo as tropas da guarda doméstica de

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Alfredo, seus próprios guerreiros e os homensque ele pudesse mobilizar de suas amplas terrasno sul da Mércia. Assim que ele chegasse,iríamos nos juntar e marchar contra Lundene,com o fyrd de Berrocscire e minhas tropasdomésticas. Alfredo tinha enfati-zado anecessidade de pressa, e A Ethelred haviaprometido estar preparado em duas semanas.

Um mês inteiro se passou, no entanto, e AEthelred não havia chegado. Os primeirospássaros nascidos no ano estavam ganhandoasas entre árvores que ainda não haviam seenchido totalmente de folhas. As flores daspereiras estavam brancas, e as lavandiscasentravam e saíam dos ninhos sob os beirais depalha de nossa casa. Vi uma fêmea de cucoolhando atentamente para aqueles ninhos,planejando quando deixaria seu ovo no meio delavandisca.

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O cuco ainda não havia começado a cantar, maslogo faria isso, e era a ocasião em que Alfredoqueria Lundene capturada.

Esperei. Estava entediado, assim como minhastropas domésticas, que se encontravam prontaspara a guerra e sofriam a paz. Eram apenas 55guerreiros. Uma quantidade pequena, nem aomenos suficiente para tripular um navio, mashomens custavam dinheiro e naquela época euestava juntando minha prata. Cinco daqueleshomens eram rapazes que nunca haviamenfrentado o teste definiti-vo da batalha, queera ficar numa parede de escudos, e assim,enquanto esperávamos A Ethelred, eu punhaesses cinco homens em treino duro dia apósdia. Osferth, o bastardo de Alfredo, era umdeles.

— Ele não é bom — dizia Finan repetida-mente.

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— Dê-lhe tempo — eu respondia com a mesmafreqüência.

— Dê-lhe uma espada dinamarquesa — disseFinan com malignidade — e reze para que elacorte sua barriga de macaco. — Ele cuspiu. —Achei que o rei o queria de volta emWintanceaster.

— E quer.

— Então por que você não o manda de volta?Ele não serve para nós.

— Alfredo tem muitas outras coisas em mente—respondi, ignorando a pergunta de Finan — enão vai se lembrar de Osferth. — Isso não eraverdade. Alfredo tinha uma mente metódica aoextremo, não iria se esquecer da ausência deOsferth de Wintanceaster nem de minhadesobediência ao não mandar o jovem de voltaaos estudos.

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— Mas por que não mandá-lo de volta? —insistiu Finan.

— Porque eu gostava do tio dele — respondi, eera verdade. Eu havia amado Leofric, e emnome dele seria gentil com o sobrinho.

— Ou será que só está tentando irritar o rei?—perguntou Finan, depois riu e saiu andandosem esperar resposta. — Enganche e puxe, seudesgraçado! — gritou para Osferth. —Enganche e puxe!

Osferth se virou para olhar para Finan e foiimediatamente acertado na cabeça por umporrete de carvalho usado por Clapa. Se fosseum machado, a lâmina teria partido o elmo deOsferth e cortado fundo seu crânio, mas oporrete apenas o deixou meio atordoado,fazendo-o cair de joelhos.

— Levante-se, fracote! — rosnou Finan. —

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Levante-se, enganche e puxe! Osferth tentou selevantar. Seu rosto pálido estava arrasado sob oelmo velho que eu lhe dera. Conseguiu selevantar, mas cambaleou imediatamente e seajoelhou de novo.

— Dê-me isso — disse Finan, e arrancou omachado das mãos débeis de Osferth. — Agoraolhe! Não é difícil! Minha mulher poderia fazerisso!

Os cinco homens novos estavam encarandocinco de meus guerreiros experientes. Osjovens tinham recebido machados, armas deverdade, e a ordem de romper a parede deescudos à sua frente. Era uma parede pequena,apenas os cinco escudos sobrepostosdefendidos por porretes de madeira, e Clapa riuquando Finan se aproximou.

— O que você faz — Finan estava falando comOsferth — é prender a lâmina do machado em

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cima do escudo do inimigo desgraçado. É tãodifícil assim? Enganche, puxe o escudo parabaixo e deixe seu vizinho matar o earsling queestá atrás dele. Vamos fazer isso devagar,Clapa, para mostrar como se faz, e pare de rir.

Fizeram o movimento de enganchar e puxarnuma lentidão ridícula, o machado vindosuavemente por cima para prender a lâminaatrás do escudo de Clapa, e em seguida Clapapermitindo que Finan puxasse o topo do escudopara ele.

— Pronto. — Finan se virou para Osferthquando o corpo de Clapa fora exposto a umgolpe. — É assim que você rompe uma paredede escudos! Agora vamos de verdade, Clapa.

Clapa riu de novo, adorando a chance de acertarFinan com o porrete. Finan recuou, lambeu oslábios e golpeou rápido. Girou o machadoexatamente como havia demonstrado, mas

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Clapa inclinou o escudo para trás para recebero machado na superfície de madeira e, aomesmo tempo, enfiou com força o porrete porbaixo do escudo, numa estocada violenta contraa virilha de Finan.

Era sempre um prazer ver o irlandês lutar. Era ohomem mais rápido com uma lâmina que já vi,e vi muitos.

Achei que a estocada de Clapa iria dobrá-lo aomeio e jogá-lo no capim, em agonia, mas Finansaltou de lado, segurou a borda inferior doescudo com a mão esquerda e puxou-a comforça para cima, para acertar a borda superior,de ferro, no rosto de Clapa. Clapa cambaleoupara trás, o nariz já vermelho de sangue, e dealgum modo o machado foi baixado com avelocidade de uma cobra dando o bote, e sualâmina se prendeu ao redor do tornozelo deClapa. Finan puxou, Clapa caiu para trás e agora

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era o irlandês que ria.

— Isso não é enganchar e puxar — disse aOsferth

—, mas funciona do mesmo jeito.

— Não teria funcionando se você estivessesegurando um escudo — reclamou Clapa.

— Sabe essa coisa na sua cara, Clapa? — disseFinan. — Essa coisa que fica abrindo efechando? Essa coisa feia onde você enfiacomida? Mantenha fechada. —

Em seguida, jogou o machado para Osferth, quetentou segurar o cabo no ar. Errou e o machadocaiu numa poça.

A primavera havia ficado molhada. A chuva caíaaos borbotões, o rio se alargou, havia lama emtoda parte.

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Botas e roupas apodreciam. O pouco de grãosque restava nos depósitos brotou e mandeimeus homens caçar ou pescar para termoscomida. Os primeiros bezerros nasce-ram,deslizando ensangüentados para um mundoúmido.

A cada dia eu esperava que Alfredo viesse einspecionasse o progresso de Coccham, masnaqueles dias encharcados ele permaneceu emWintanceaster. Mas mandou um mensageiro,um padre pálido que trouxe uma carta costuradanuma gordurosa bolsa de pele de cordeiro.

— Se não puder lê-la, senhor — sugeriu elehesitante, enquanto eu abria a bolsa —, euposso...

— Eu sei ler — resmunguei. E sabia mesmo.Não era um feito do qual eu tivesse orgulho,porque só os padres e os monges realmenteprecisavam disso, mas o padre Beocca havia me

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forçado a engolir as letras quando eu eramenino, e as aulas haviam se mostrado úteis.Alfredo havia decretado que todos os seussenhores soubessem ler, não somente para quepudessem cambalear através dos livros doEvangelho que o rei insistia em mandar comopresentes, mas para que pudessem ler suasmensagens.

Achei que a carta poderia trazer notícias de AEthelred, talvez alguma explicação para omotivo de ele estar demorando tanto para trazerseus homens a Coccham, mas em vez disso erauma ordem de levar um padre para cada trintahomens, quando marchasse contra Lundene.

— Devo fazer o quê? — perguntei em voz alta.

— O rei se preocupa com a alma dos homens—disse o padre.

— Então ele quer levar bocas inúteis para

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alimentar? Diga a ele para me mandar grãos eeu levarei alguns de seus padres desgraçados.— Olhei de novo para a carta, que fora escritapor um dos escrivães reais, mas na parteinferior, na letra firme de Alfredo, havia umalinha. “Onde está Osferth?”, estava escrito. “Eledeve retornar hoje.

Mande-o com o padre Cuthbert. “

— Você é o padre Cuthbert? — perguntei aosacerdote nervoso.

— Sim, senhor.

— Bom, você não pode levar Osferth de volta.Ele está doente.

— Doente?

— Mal como um cachorro — respondi —, eprovavelmente vai morrer.

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— Mas pensei tê-lo visto — disse o padreCuthbert, sinalizando para a porta aberta ondeFinan estava tentando induzir Osferth ademonstrar alguma habilidade e entusiasmo. —Olhe — disse o padre todo animado, tentandoajudar.

— Provavelmente vai morrer — faleilentamente e com selvageria. O padre Cuthbertse virou de volta para falar, captou meu olhar esua voz hesitou. — Finan! —gritei, e espereiaté o irlandês entrar em casa segurando umaespada sem bainha. — Quanto tempo você achaque o jovem Osferth vai viver? — perguntei.

— Ele terá sorte se sobreviver um dia —respondeu Finan, presumindo que eu queriasaber quanto tempo Osferth duraria numabatalha.

— Está vendo? — falei ao padre Cuthbert. —Ele está doente. Vai morrer. Portanto, diga ao

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rei que lamento por ele. E diga ao rei que,quanto mais tempo meu primo esperar, maisforte o inimigo fica em Lundene.

— É o tempo, senhor — disse o padreCuthbert.

— O senhor A Ethelred não consegueencontrar suprimentos adequados.

— Então diga a ele que há comida em Lundene—respondi, e soube que estava desperdiçandoo fôlego.

Finalmente, A Ethelred chegou em meados deabril, e agora nossas forças conjuntas somavamquase oitocen-tos homens, dos quais menos dequatrocentos eram úteis.

O restante fora trazido do fyrd de Berrocscireou convocado das terras no sul da Mércia, queA Ethelred havia herdado de seu pai, o irmão de

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minha mãe. Os homens do fyrd eramcamponeses e trouxeram machados ou arcos decaça. Alguns tinham espadas ou lanças, e umaquantidade ainda menor não tinha qualquerarmadura além de um gibão de couro, ao passoque alguns marchavam sem nada além deenxadas afiadas. Uma enxada pode ser umaarma terrível numa briga de rua, mas nem delonge é adequada para derrubar um viking comcota de malha armado com escudo, machado,uma espada curta e outra longa.

Os homens úteis eram minhas tropasdomésticas, uma quantidade similar das tropasde A Ethelred, e trezentos guardas de Alfredoliderados pelo alto e sério Steapa.

Esses homens treinados fariam a luta deverdade, enquanto o restante só estava ali parafazer com que a força parecesse grande eameaçadora.

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Mas na verdade Sigefrid e Erik saberiamexatamente quanto éramos ameaçadores.Durante todo o inverno e o início da primaverahouvera viajantes subindo o rio desde Lundene,e alguns eram sem dúvida espiões dos irmãos.

Eles saberiam quantos homens estávamoslevando, quantos eram guerreiros de verdade, eesses mesmos espiões deviam ter dadoinformações a Sigefrid no dia em quefinalmente atravessamos o rio até a margemnorte.

Fizemos a travessia acima de Coccham, e elademorou o dia inteiro. A Ethelred reclamou dademora, mas o vau que usamos, que havia sidoimpossível de atravessar durante todo oinverno, estava correndo alto de novo e oscavalos tinham de ser convencidos e ossuprimentos precisavam ser carregados nosnavios para a travessia, mas não a bordo do

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navio de A Ethelred, que ele insistiu que nãopoderia levar carga.

Alfredo havia dado o Heofonhlaf para seugenro usar na campanha. Era o menor dosnavios fluviais de Alfredo, e A Ethelred haviaerguido uma cobertura sobre a popa paraformar um local abrigado logo adiante daplataforma do piloto. Ali havia almofadas,peles, uma mesa e bancos, e A Ethelred passouo dia inteiro observando a travessia, de baixo dacobertura, enquanto serviçais lhe traziamcomida e cerveja.

Ele observava junto a A Ethelflaed, que, paraminha surpresa, acompanhava o marido. Vi-aprimeiro quando ela caminhava pelo pequenoconvés elevado do Heofonhlaf e, ao me ver,levantou uma das mãos, cumprimentan-do. Aomeio-dia Gisela e eu fomos chamados àpresença de seu marido, e A Ethelred

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cumprimentou Gisela como a um velho amigo,agitando-se ao redor dela e exigindo quepegassem uma capa de pele para ela. AEthelflaed olhou aquela agitação, depois melançou um olhar vazio.

— Vai retornar a Wintanceaster, senhora? —perguntei-lhe. Agora ela era uma mulher,casada com um ealdorman, por isso chamei-ade senhora.

— Vou com vocês — disse ela de um jeitoobtuso.

Isso me espantou.

— A senhora vai... — comecei, mas não ter-minei.

— Meu marido deseja isso — disse ela muitoformalmente, depois um relâmpago da antiga AEthelflaed apareceu quando ela me deu um

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sorriso rápido. — E estou satisfeita com isso.Quero ver uma batalha.

— Uma batalha não é lugar para uma dama —respondi com firmeza.

— Não preocupe a mulher, Uhtred! — gritou AEthelred do outro lado do convés. Ele haviaescutado minhas últimas palavras. — Minhaesposa ficará em seguran-

ça, eu lhe garanti isso.

— A guerra não é lugar para mulheres —insisti.

— Ela deseja ver nossa vitória — insistiu AEthelred —, e vai ver, não é, minha patinha?

— Quac, quac — disse A Ethelflaed, tãobaixinho que só eu pude ouvir. Havia amarguraem sua voz, mas quando olhei-a ela estava

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dando um sorriso doce para o marido.

— Eu iria, se pudesse — disse Gisela, emseguida tocou a barriga. O bebê ainda não eraevidente.

— Não pode — respondi, e fui recompensadopor uma careta fingida, depois ouvimos umberro de fúria vindo das entranhas doHeofonhlaf.

— Um homem não pode dormir! — gritou avoz.

— Seus earsling saxões! Vocês me acordaram!

O padre Pyrlig estivera dormindo sob apequena plataforma na proa do navio, ondealgum pobre coitado inadvertidamente oincomodara. Agora o galês se arrastou para aluz carrancuda do dia e piscou para mim.

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— Santo Deus — disse com nojo —, é osenhor Uhtred.

— Achei que você estava na Ânglia Oriental —gritei para ele.

— Estava, mas o rei A Ethelstan me mandoupara garantir que vocês, saxões inúteis, nãomijem pelas pernas quando virem nórdicos nasmuralhas de Lundene. —

Demorei um momento para lembrar que AEthelstan era o nome cristão de Guthrum.Pyrlig veio em nossa direção, com uma camisasuja cobrindo a barriga sobre a qual pendia acruz de madeira. — — Bom dia, senhora —gritou animado para A Ethelflaed.

— É de tarde, padre — disse A Ethelflaed, epelo calor em sua voz pude ver que ela gostavado padre galês.

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— É de tarde? Santo Deus, dormi como umbebê.

Senhora Gisela! Que prazer! Meu Deus, mastodas as bel-dades estão reunidas aqui! — Elesorriu para as duas mulheres. — Se nãoestivesse chovendo, eu acharia que fuitransportado para o céu. Meu senhor — as duasúltimas palavras foram dirigidas a meu primo, eestava claro, pelo tom, que os dois homens nãoeram amigos.

— Precisa de conselho, senhor? — perguntouPyrlig.

— Não — respondeu meu primo asperamente.O

padre Pyrlig riu para mim.

— Alfredo pediu que eu viesse comoconselheiro.

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— Ele parou para coçar uma picada de pulga nabarriga.

— Devo aconselhar o senhor A Ethelred.

— Assim como eu — respondi.

— E sem dúvida o conselho do senhor Uhtredseria igual ao meu — prosseguiu Pyrlig. —Deveríamos nos mover com a velocidade deum saxão ao ver a espada de um galês.

— Ele quer dizer que devemos nos moverdepressa

— expliquei a A Ethelred, que sabiaperfeitamente o que o galês quisera dizer.

Meu primo me ignorou.

— Você está sendo deliberadamente ofensivo?—perguntou a Pyrlig rigidamente.

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— Sim, senhor! — riu Pyrlig. — Estou!

— Já matei dúzias de galeses — disse meuprimo.

— Então os dinamarqueses não serãoproblema para o senhor, não é? — retrucouPyrlig, recusando-se a se ofender. — Mas meuconselho continua de pé, senhor.

Depressa! Os pagãos sabem que estamos indo,e quanto mais tempo o senhor lhes der, maisformidáveis serão suas defesas!

Poderíamos ter nos movido depressa setivéssemos navios para nos levar rio abaixo,mas Sigefrid e Erik, sabendo que vínhamos,haviam bloqueado todo o tráfego no Temes e,sem contar com o Heofonhlaf, só podíamosjuntar sete navios, nem de longe o suficientepara levar nossos homens, de modo que apenasos preguiçosos, os suprimentos e os amigos de

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A Ethelred viajavam pela água.

Assim, marchamos e levamos quatro dias, e acada dia víamos cavaleiros ao norte ou naviosrio abaixo, e eu sabia que aqueles eram osbatedores de Sigefrid, fazendo uma últimacontagem de nossos números enquanto nossoexército desajeitado andava com dificuldade,cada vez mais perto de Lundene. Perdemos umdia inteiro porque era domingo e A Ethelredinsistiu em que os padres que a-companhavamo exército rezassem a missa. Ouvi as vozesmonótonas e observei os cavaleiros inimigoscirculando a nosso redor. Haesten, eu sabia, játeria chegado a Lundene, e seus homens, pelomenos duzentos ou trezentos, estariamreforçando as muralhas.

A Ethelred viajava a bordo do Heofonhlaf, sóvindo à terra à noite para caminhar ao longo dassentinelas que eu havia postado. Fazia questão

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de mover as sentinelas, como se sugerisse queeu não sabia o serviço, e eu o deixava. Naúltima noite da viagem acampamos numa ilhaque era alcançada da margem norte por umatrilha estreita, e sua margem cercada de juncosestava cheia de lama, de modo que Sigefrid, setivesse idéia de nos atacar, acharia difícil seaproximar de nosso acampamento. Enfiamos osnavios no riacho que serpenteava ao norte dailha e, enquanto a maré baixava e os saposenchiam o crepúsculo com cantos, os cascosse assentaram na lama densa. A-cendemosfogueiras em terra firme, que iluminariam aaproximação de qualquer inimigo, e posteihomens em todo o perímetro da ilha.

Naquela noite A Ethelred não desembarcou.Em vez disso, mandou um serviçal que exigiuque eu fosse encontrá-lo a bordo doHeofonhlaf, assim tirei minhas botas e a calçae vadeei pela lama pegajosa antes de subir pelo

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costado do navio. Steapa, que estava marchandocom os homens da guarda pessoal de Alfredo,foi comigo. Um serviçal trouxe baldes d’águado rio, do outro lado do navio, e limpamos alama das pernas, depois nos vestimos de novoantes de nos juntar a A Ethelred sob suacobertura na proa do Heofonhlaf. Meu primoestava acompanhado pelo co-mandante de suaguarda doméstica, um jovem nobre da Mérciachamado Aldhelm, que tinha um rosto longo epresunçoso, olhos escuros e cabelo preto edenso em que ele passava óleo até ficarlustroso.

A Ethelflaed também estava lá, acompanhadapor uma aia e pelo risonho padre Pyrlig. Fizuma reverência a ela, que sorriu de volta, massem entusiasmo, e em seguida se curvou sobreseu bordado, iluminado por um lampiãoprotegido por chifre. Estava usando lã brancasobre um campo verde-escuro, fazendo a

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imagem de um cavalo empinando, que era oestandarte do marido. O mesmo estandarte,muito maior, pendia imóvel no mastro donavio.

Não havia vento, e a fumaça das fogueiras dasduas cidades de Lundene formava uma manchaimóvel no leste que ia escurecendo.

— Atacaremos ao amanhecer — anunciou AEthelred sem sequer nos cumprimentar. Vestiacota de malha e tinha suas espadas, curta ecomprida, presas ao cinto. Pareciaincomumente presunçoso, mas tentava fazercom que a voz parecesse casual. — Mas sótocarei para o avan-

ço de minhas tropas quando souber que nossoataque começou.

Franzi a testa diante dessas palavras.

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— Você só vai começar seu ataque — repeticautelosamente — quando ouvir que o meucomeçou?

— Está claro, não está? — perguntou AEthelred com beligerância.

— Muito claro — disse Aldhelm em tom dezombaria. Ele tratava A Ethelred do mesmomodo que A Ethelred se comportava comAlfredo e, seguro do favor de meu primo,sentia-se livre para me dirigir um insultovelado.

— Para mim não está claro! — interveioenergicamente o padre Pyrlig. — O plano comque concordamos

— continuou o galês, falando com A Ethelred— consiste em o senhor fazer um ataquefingido às muralhas do oeste e, quando tiveratraído os defensores da muralha norte, os

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homens de Uhtred fazerem o ataque verdadeiro.

— Mudei de idéia — disse A Ethelred em tomaé-reo. — Agora os homens de Uhtred farão oataque diver-sivo, e meu ataque será overdadeiro. — Ele inclinou para cima o queixolargo e me olhou, desafiando-me a contradizê-lo.

A Ethelflaed também olhou para mim, e sentique ela queria que eu me opusesse a seumarido, mas em vez disso surpreendi todoseles baixando a cabeça como se estivessecedendo.

— Se o senhor insiste — respondi.

— Insisto — disse A Ethelred, incapaz deesconder o prazer por obter a aparente vitóriacom tanta facilidade.

— Você pode levar suas tropas domésticas —

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continuou ele de má vontade, como sepossuísse autoridade para tirá-las de mim — etrinta outros homens.

— Nós concordamos que eu poderia tercinqüenta

— respondi.

— Mudei de idéia com relação a isso também!—disse ele em tom belicoso. A Ethelred jáhavia insistido em que os homens do fyrd deBerrocscire, meus homens, a-judassem aaumentar suas fileiras, e eu havia humildementeconcordado com isso, assim como agoraconcordava com que a glória do ataque bem-sucedido poderia ser dele.

— Você pode levar trinta — continuouasperamente. Eu poderia ter questionado etalvez devesse ter feito, mas sabia que não iriaadiantar. Era impossível argumentar com A

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Ethelred, que só queria demonstrar suaautoridade diante da jovem esposa. — Lembre-se — disse ele — de que Alfredo me deu ocomando aqui.

— Eu não havia esquecido — respondi. Opadre Pyrlig estava me observando astutamente,sem dúvida imaginando por que eu havia cedidocom tanta facilidade à

pressão de meu primo. Aldhelm estava meiosorrindo, provavelmente na crença de que eufora totalmente domi-nado por A Ethelred.

— Você partirá antes de nós — continuou AEthelred.

— Partirei muito em breve — respondi. —Tenho de partir.

— Minhas tropas domésticas — disse AEthelred, agora olhando para Steapa —

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liderarão o ataque verdadeiro. Você trará astropas reais imediatamente em seguida.

— Eu vou com Uhtred — disse Steapa. AEthelred piscou.

— Você é o comandante da guarda pessoal deAlfredo! — disse ele lentamente, como sefalasse com uma criança pequena. — E irálevá-la à muralha assim que meus homenstiverem posto as escadas.

— Eu vou com Uhtred — repetiu Steapa. — Orei ordenou.

— O rei não fez uma coisa dessas! — disse AEthelred, desconsiderando-o.

— Por escrito — disse Steapa. Ele franziu atesta, em seguida tateou numa bolsa e pegouum pequeno quadrado de pergaminho. Espiou-o, sem certeza de qual lado era o de cima,

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depois apenas deu de ombros e entregou opergaminho a meu primo.

A Ethelred franziu a testa enquanto lia amensagem à luz do lampião de sua mulher.

— Você deveria ter me dado isto antes — disseele com petulância.

— Esqueci — respondeu Steapa — e devolevar seis homens da minha escolha. — Steapatinha um modo de falar que desencorajavaqualquer argumento. Falava de modo lento,áspero e opaco, e conseguia dar a impressão deque era estúpido demais para entender qualquerobje-

ção feita contra suas palavras. Também dava aidéia de que poderia trucidar qualquer homemque insistisse em contradizê-lo. E A Ethelred,diante da voz teimosa de Steapa, e pela simplespresença do sujeito que era tão alto, largo e

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com cara de caveira, rendeu-se sem lutar.

— Se o rei ordena — disse ele, devolvendo opeda-

ço de pergaminho.

— Ordena — insistiu Steapa. Em seguida,pegou o pergaminho e pareceu inseguro quantoao que fazer com ele. Por um instante penseique iria comê-lo, mas então o jogou por cimada amurada e depois franziu a testa em direçãoao leste, para a grande mortalha de fumaça quepairava sobre a cidade.

— Certifique-se de estar na hora certa amanhã—disse-me A Ethelred. — O sucesso dependedisso.

Evidentemente era a nossa dispensa. Outrohomem teria oferecido cerveja e comida, masA Ethelred nos deu as costas, e assim Steapa e

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eu desnudamos as pernas de novo e vadeamosatravés da lama grudenta.

— Você perguntou a Alfredo se poderia ircomigo?

— perguntei a Steapa enquanto passávamospelos juncos.

— Não, foi o rei que quis que eu fosse comvocê.

A idéia foi dele.

— Bom. Fico feliz. — E estava falando sério.Steapa e eu havíamos começado comoinimigos, mas tínhamos nos tornado amigos,um elo forjado por ficarmos escudo comescudo diante de um inimigo. — Não háninguém que eu preferiria que estivesse aquicomigo — falei calorosamente enquanto meabaixava para calçar as botas.

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— Eu vou com você — disse ele em sua vozlenta

— porque devo matá-lo.

Parei e olhei-o na escuridão.

— Deve fazer o quê?

— Devo matar você — disse ele, depois selembrou de que havia algo a mais nas ordens deAlfredo — se você demonstrar que está dolado de Sigefrid.

— Mas não estou — respondi.

— Ele só quer ter certeza disso. E sabe aquelemonge? O Asser? Diz que você não é deconfiança. Que, portanto, se você não obedeceràs nossas ordens eu devo matá-lo.

— Por que está me contando isso? Ele deu de

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ombros.

— Não importa se estiver preparado para mimou não. Mesmo assim ainda mato você.

— Não — respondi corrigindo suas palavras.—

Você vai tentar me matar.

Ele pensou nisso por longo tempo, depoisbalan-

çou a cabeça.

— Não. Eu vou matá-lo. — E mataria mesmo.

Partimos no negror da noite sob um céucoberto de nuvens. Os cavaleiros inimigos quehaviam nos vigiado tinham se recolhido para acidade ao crepúsculo, mas eu estava certo deque Sigefrid ainda teria batedores na escuridão,

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de modo que durante uma hora ou maisseguimos uma trilha que levava para o norte,através dos pântanos.

Era difícil nos mantermos no caminho, masdepois de um tempo o terreno ficou mais firmee subiu até um povoado em que pequenasfogueiras ardiam dentro de cabanas com paredede barro cobertas com grandes montes depalha.

Empurrei uma porta e vi uma família agachadaem terror, ao redor do fogão. Estavamapavorados porque tinham nos ouvido, e sabiamque nada se move à noite, a não ser criaturasperigosas, sinistras e mortais.

— Como se chama este lugar? — perguntei, epor um momento ninguém respondeu, entãoum homem baixou a cabeça convulsivamente edisse que achava que o povoado se chamavaPadintune.

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— Padintune? — perguntei. — Propriedade dePadda? Padda está aqui?

— Ele morreu, senhor — respondeu o homem.—

Morreu há anos. Ninguém aqui o conheceu,senhor.

— Nós éramos amigos — disse eu —, mas sealguém aqui sair de casa, não seremos amigos.— Eu não queria que algum aldeão corresse atéLundene para alertar Sigefrid de que havíamosparado em Padintune. — Entendeu? —perguntei ao homem.

— Sim, senhor.

— Se sair de sua casa, você morrerá.

Juntei meus homens na pequena rua e mandeiFinan pôr uma guarda em cada choupana.

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— Ninguém deve sair — ordenei. — Elespodem dormir nas camas, mas ninguém devesair do povoado.

Steapa surgiu da escuridão.

— Não deveríamos marchar para o norte? —perguntou.

— Deveríamos, mas não vamos — retruquei.—

De modo que é agora que você deveria mematar. Estou desobedecendo às ordens.

— Ah — grunhiu ele, e agachou. Ouvi o courode sua armadura ranger e o tilintar de sua cotade malha se acomodando.

— Você pode desembainhar seu sax agora —sugeri — e me estripar num só movimento?Um corte subindo por minha barriga? Só faça

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isso depressa, Steapa. Abra minha barriga emantenha a lâmina subindo até chegar aocoração. Mas só me deixe desembainhar minhaespada primeiro, certo? Prometo não usá-la emvocê. Só quero ir para o castelo de Odin quandotiver morrido.

Ele deu um risinho.

— Nunca entendi você, Uhtred.

— Sou uma alma muito simples. Só quero irpara casa.

— Não para o castelo de Odin?

— Eventualmente, sim, mas primeiro para casa.

— Na Nortúmbria?

— Onde tenho uma fortaleza junto ao mar —disse desejoso, e pensei em Bebbanburg em

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seu alto penhasco, no mar violento e cinzarolando interminavelmente para se quebrar naspedras, e no vento frio soprando do norte, nasgaivotas brancas gritando na espuma levadapelo vento. — Minha casa.

— A que seu tio roubou de você?

— Aelfric — respondi vingativamente, e penseide novo no destino. Aelfric era o irmão maisnovo de meu pai e havia permanecido emBebbanburg enquanto eu acompanhava meu paia Eoferwic. Eu era criança. Meu pai morreu emEoferwic, cortado por uma espada dinamar-

quesa, e fui dado como escravo a Ragnar, oVelho, que me criou como filho, e meu tioignorou os desejos de meu pai e manteveBebbanburg para si. Essa traição permaneciapara sempre em meu coração, escorrendoraiva, e um dia eu iria vingá-la. — Um dia —falei a Steapa — vou estripar Aelfric da virilha

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ao esterno e vou olhá-lo morrer, mas não fareiisso depressa. Não vou cortar o coração dele.

Vou olhá-lo morrer e mijar nele enquanto eleluta. Depois vou matar os filhos dele.

— E esta noite? Quem você vai matar estanoite?

— Esta noite tomaremos Lundene.

Eu não podia ver seu rosto no escuro, mas sentique ele sorria.

— Eu disse a Alfredo que ele podia confiar emvocê — disse Steapa. Foi a minha vez de sorrir.Em algum lugar em Padintune um cão uivou efoi silenciado.

— Mas não sei se Alfredo pode confiar emmim —falei depois de uma pausa longa.

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— Por quê? — Steapa estava perplexo.

— Porque, de certa forma, eu sou um cristãomuito bom.

— Você? Cristão?

— Eu amo meus inimigos.

— Os dinamarqueses?

— É.

— Eu, não — disse ele em tom chapado. Ospais de Steapa haviam sido trucidados pordinamarqueses. Não respondi. Estava pensandono destino. Se as três fiandeiras conheciamnosso destino, por que fazemos juramentos?Porque se então quebrarmos um juramento étraição?

Ou será destino? — Então, você vai lutar

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contra eles amanhã? — perguntou Steapa.

— Claro. Mas não como A Ethelred espera.Assim estou desobedecendo às ordens, e suasordens são para me matar se eu fizer isso.

— Mato você mais tarde — disse Steapa.

A Ethelred havia mudado o plano com quehavíamos concordado sem jamais suspeitar deque eu não pretendia segui-lo mesmo. Eraóbvio demais. De que outro modo um exércitopoderia atacar uma cidade, a não ser tentandoafastar os defensores das fortificações-alvo?Sigefrid saberia que nosso primeiro ataque erauma distra-

ção, e deixaria sua guarnição no lugar até tercerteza de identificar a ameaça verdadeira. Eentão nós morreríamos sob suas muralhas eLundene permaneceria como uma fortaleza dosnórdicos.

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Assim, o único modo de capturar Lundene erapelo ardil, furtivamente e correndo um riscodesesperado.

— O que vou fazer — disse a Steapa — éesperar que A Ethelred deixe a ilha. Depoisvoltamos para lá e pe-gamos dois navios. Seráperigoso, muito, porque temos de passar pelaabertura da ponte na escuridão, e naviosmorrem ali até mesmo à luz do dia. Mas sepudermos passar, há um modo fácil de entrarna cidade velha.

— Achei que havia uma muralha ao longo dorio.

— E há, mas está rompida num lugar.

Um romano havia construído uma casa grandejunto ao rio e cortado um pequeno canal aolado da casa. O

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canal atravessava a muralha, rompendo a. Eupresumia que o romano havia sido rico edesejava um lugar para atracar seu navio, porisso derrubou um pedaço da muralha junto aorio para fazer seu canal, e essa era a minhaentrada para Lundene.

— Por que não contou a Alfredo?

— Alfredo é capaz de guardar segredo, mas AEthelred não. Ele teria contado a alguém, e emdois dias os dinamarqueses saberiam o queplanejávamos. — E era verdade. Tínhamosespiões e eles tinham espiões, e se eu tivesserevelado minhas verdadeiras intenções,Sigefrid e Erik teriam bloqueado o canal comnavios e guarnecido a grande casa junto ao riocom homens. Teríamos morrido no cais, eainda poderíamos morrer porque eu não sabiase poderíamos encontrar a abertura na ponte, ese a encontrássemos, não sabia se poderíamos

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atravessar aquele perigoso espaço onde o níveldo rio caía e a água espumava.

Se errássemos, se um dos navios estivesseapenas à distância de meio remo ao sul ou aonorte, seria varrido para um dos pilaresquebrados e homens seriam derrubados naágua, e eu não iria ouvi-los se afogar porquesuas armas e armaduras iriam arrastá-losinstantaneamente para baixo.

Steapa estivera pensando, o que era sempre umprocesso lento, mas agora fez uma perguntaesperta:

— Por que não desembarcar antes da ponte?Deve haver portas na muralha, não?

— Há uma dúzia de portas, talvez vinte, eSigefrid terá bloqueado todas, mas a últimacoisa que vai esperar é

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que navios tentem atravessar a abertura daponte.

— Porque navios morrem ali?

— Porque navios morrem ali — concordei. —Eu havia visto isso acontecer uma vez, vi umnavio mercante passar pela abertura nummomento de água parada, e de algum modo opiloto virou demais para um dos lados e ospilares partidos rasgaram as tábuas do fundo docasco. A abertura tinha cerca de quarentapassos de largura e, quando o rio estava calmo,sem maré nem vento para agitar a água, aabertura parecia inocente, mas nunca era. Aponte de Lundene era uma matadora, e paratomar Lundene eu tinha de passar pela ponte.

E se sobrevivêssemos? Se pudéssemosencontrar a doca romana e chegar em terra?Então seríamos poucos e o inimigo seriamuitos, e alguns de nós morreriam nas ruas

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antes que a força de A Ethelred pudesseatravessar a muralha. Toquei o punho de Bafode Serpente e senti a pequena cruz de prataengastada ali. Presente de Hild.

Presente de amante.

— Você já ouviu um cuco? — perguntei aSteapa.

— Ainda não.

— Está na hora de ir — disse eu —, a não serque você queira me matar.

— Talvez mais tarde, mas por enquanto voulutar a seu lado.

E teríamos uma luta. Disso eu sabia. Toquei oamuleto do martelo e fiz uma oração para aescuridão, pedindo para viver e ver a criançaque estava na barriga de Gisela.

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Osric, que me trouxera de Lundene com opadre Pyrlig, era um de nossos comandantes denavio, e o outro era Ralla, o homem que havialevado minhas forças para emboscar osdinamarqueses cujos cadáveres eu tinhapendurado junto ao rio. Ralla havia passado pelaabertura da ponte de Lundene mais vezes doque podia se lembrar.

— Mas nunca à noite — disse-me ele naquelanoite, quando voltamos à ilha.

— Mas pode ser feito?

— Vamos descobrir isso, senhor, não é?

A Ethelred havia deixado cem homensguardando a ilha onde estavam os navios, eesses homens se encontravam sob o comandode Egbert, um velho guerreiro cuja autoridadeera denotada por uma corrente de pratapendurada no pescoço, e que me questionou

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quando retornei inesperadamente. Ele nãoconfiava em mim e acreditou que eu haviaabandonado o ataque no norte porque nãoqueria que A Ethelred tivesse sucesso. Euprecisava que ele me desse homens, porémquanto mais eu implorava, mais ele se eriçavade hostilidade. Meus próprios homens estavamentrando a bordo dos navios, vadeando pelaágua fria e subindo pelos costados.

— Como vou saber que você não vaisimplesmente retornar a Coccham? —perguntou Egbert cheio de suspeitas.

— Steapa! — gritei. — Diga a Egbert o quevamos fazer.

— Matar dinamarqueses — resmungou Steapajunto a uma fogueira. As chamas se refletiamem sua cota de malha e em seus olhos duros,ferozes.

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— Dê-me vinte homens — implorei a Egbert.Ele me encarou, depois balançou a cabeça.

— Não posso.

— Por quê?

— Temos de guardar a senhora A Ethelflaed.Essas são as ordens do senhor A Ethelred.Estamos aqui para guardá-la.

— Então deixe vinte homens no navio dela eme dê o restante.

— Não posso — insistiu Egbert com teimosia.

Suspirei.

— Tatwine teria me dado homens — falei.Tatwine havia sido comandante das tropasdomésticas do pai de A Ethelred. — Euconhecia Tatwine.

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— Sei que conhecia. Lembro-me de você. —Egbert falou com decisão e a mensagem ocultaem seu tom era de que não gostava de mim.Quando rapaz, eu havia servido com Tatwinedurante alguns meses, e na época era fanfarrão,ambicioso e arrogante. Egbert obviamenteachava que eu ainda era fanfarrão, ambicioso earrogante, e talvez estivesse certo.

Ele se virou e achei que estava me dispensando,mas em vez disso ficou olhando enquanto umaforma pálida e fantasmagórica aparecia dooutro lado das fogueiras do acampamento. EraA Ethelflaed, que evidentemente tinha vistonosso retorno e havia vadeado até a ilha,enrolada numa capa branca, para descobrir oque estávamos fazendo. Seu cabelo estava soltoe caía em cachos dourados sobre os ombros. Opadre Pyrlig estava com ela.

— Você não foi com A Ethelred? — perguntei,

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surpreso ao ver o padre galês.

— O senhor achou que não precisava de maisconselhos — disse Pyrlig. — Por isso pediuque eu ficasse aqui e rezasse por ele.

— Ele não pediu — corrigiu A Ethelflaed. —Ordenou que você ficasse e rezasse por ele.

— De fato — disse Pyrlig —, e, como vocêpode ver, estou vestido para rezar. — Ele usavacota de malha e tinha as espadas presas àcintura. — E você? Pensei que estavamarchando para o norte da cidade.

— Vamos rio abaixo — expliquei — atacarLundene pelo cais.

— Posso ir? — perguntou A Ethelflaedinstantaneamente.

— Não.

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Ela sorriu diante da recusa peremptória.

— Meu marido sabe o que você está fazendo?

— Ele vai descobrir, senhora.

A Ethelflaed sorriu de novo, depois foi até meulado e puxou minha capa para se encostar emmim. Enrolou minha capa escura sobre a sua,branca.

— Estou com frio — explicou a Egbert, cujorosto mostrava surpresa e indignação com ocomportamento dela.

— Somos velhos amigos — disse eu a Egbert.

— Muito velhos amigos — concordou AEthelflaed, em seguida passou o braço pelaminha cintura e se agarrou a mim. Egbert nãopodia ver seu braço embaixo de minha capa. Eutinha consciência de seu cabelo dourado logo

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abaixo de minha barba e podia sentir seu corpomagro tremendo. — Penso em Uhtred comoum tio — disse ela a Egbert.

— Um tio que vai dar a vitória a seu marido —disse eu —, mas preciso de homens. E Egbertnão quer me dar homens.

— Não? — perguntou ela.

— Ele diz que precisa de todos os homens paraguardar você.

— Dê-lhe seus melhores homens — disse ela aEgbert, em voz leve e agradável.

— Senhora — respondeu Egbert —, minhasordens são para...

— Você vai lhe dar seus melhores homens! —subitamente a voz de A Ethelflaed soou duraenquanto ela saía de baixo de minha capa para a

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luz áspera das fogueiras. — Sou filha do rei! Eestou exigindo que dê seus melhores homens aUhtred! Agora!

Ela havia falado muito alto, de modo quehomens por toda a ilha a encaravam. Egbertpareceu ofendido, mas não disse nada. Em vezdisso, empertigou-se e pareceu teimoso. Pyrligcaptou meu olhar e deu um sorriso maroto.

— Nenhum de vocês tem coragem para lutar aolado de Uhtred? — perguntou A Ethelflaed aoshomens que olhavam. Ela estava com 14 anos,era uma garota magra e pálida, mas em sua vozhavia a linhagem de reis antigos.

— Meu pai gostaria que vocês mostrassemcoragem esta noite! Ou será que devo retornara Wintanceaster e dizer a meu pai que vocêsficaram sentados junto às fogueiras enquantoUhtred lutava? — Esta última pergunta foidirigida a Egbert.

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— Vinte homens — implorei a ele.

— Dê-lhe mais! — disse A Ethelflaed comfirmeza.

— Só há espaço nos barcos para mais quarenta—informei.

— Então lhe dê quarenta! — disse AEthelflaed.

— Senhora — respondeu Egbert hesitante, masparou quando A Ethelflaed estendeu a mãopequena. Em seguida, ela se virou para meolhar.

— Posso confiar em você, senhor Uhtred? —perguntou.

Parecia uma pergunta estranha vinda de umacrian-

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ça que eu conhecia durante toda a vida, e sorridaquilo.

— Pode confiar em mim — respondi em tomleve.

Seu rosto ficou mais duro e os olhos cortantes.

Talvez fosse o reflexo do fogo nas pupilas, massubitamente percebi que aquela era muito maisdo que uma criança, era a filha de um rei.

— Meu pai — disse ela em voz clara, para queos outros ouvissem — diz que você é o melhorguerreiro a serviço dele. Mas não confia emvocê.

Houve um silêncio incômodo. Egbert pigarreoue olhou para o chão.

— Nunca abandonei seu pai — faleiasperamente.

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— Ele teme que sua lealdade esteja à venda —disse ela.

— Ele tem meu juramento — respondi com avoz ainda áspera.

— E eu quero seu juramento agora — exigiuela, e estendeu a mão magra.

— Qual? — perguntei.

— De que você mantém o juramento a meu pai—disse A Ethelflaed — e que jura lealdade aossaxões acima dos dinamarqueses, e que lutarápela Mércia quando esta pedir.

— Senhora — comecei, pasmo com suasexigências.

— Egbert! — interrompeu A Ethelflaed. —Você

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não dará homens ao senhor Uhtred a não serque ele jure servir à Mércia enquanto eu viver.

— Não, senhora — murmurou Egbert.

Enquanto ela vivesse? Por que ela dizia isso?Lembro-me de ter pensado nessas palavras, eme lembro, também, de ter pensado que meuplano de capturar Lundene pendia na balança. AEthelred havia me despido das forças de que euprecisava, e A Ethelflaed tinha o poder derestaurar meus números, mas para conseguir avitória eu teria de me trancar em mais umjuramento que eu não queria fazer. O que meimportava a Mércia? Mas naquela noite eu meimportava em levar homens através de umaponte mortal para provar que poderia fazer isso.Eu me impor-

tava com a reputação, me importava com meunome, me importava com a fama.

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Desembainhei Bafo de Serpente, sabendo queera por isso que ela estava estendendo a mão, eentreguei-lhe a espada, pelo punho. Em seguidame ajoelhei e envolvi com as minhas mãos adela, que por sua vez estava apertando o punhode minha espada.

— Juro, senhora — disse eu.

— Você jura que servirá a meu pai fielmente?

— Sim, senhora.

— E que, enquanto eu viver, você servirá àMércia?

— Enquanto a senhora viver — respondiajoelhan-do-me na lama e pensando no idiotaque eu era. Queria estar no norte, queria estarlivre da religiosidade de Alfredo, queria estarcom meus amigos, mas aqui estava, juran-dolealdade às ambições de Alfredo e à sua filha

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de cabelos dourados. — Juro — falei, e aperteiligeiramente suas mãos em sinal de minhasinceridade.

— Dê-lhe homens, Egbert — ordenou AEthelflaed.

Ele me deu trinta e, para crédito de Egbert, medeu os homens em forma, os jovens, deixandoos guerreiros mais velhos e doentes paraguardar A Ethelflaed e o acampamento. Demodo que agora eu liderava mais de setentahomens, e entre eles estava o padre Pyrlig.

— Obrigado, senhora — falei a A Ethelflaed.

— Você poderia me recompensar — disse ela,e de novo pareceu infantil, tendo perdido asolenidade e recuperando a antiga malícia.

— Como?

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— Me levando?

— Jamais — respondi asperamente.

Ela franziu a testa diante do meu tom e meolhou nos olhos.

— Está com raiva de mim? — perguntou emvoz suave.

— De mim mesmo, senhora — respondi, e mevirei.

— Uhtred! — Ela pareceu infeliz.

— Manterei os juramentos, senhora —respondi, e estava com raiva por tê-los feito denovo, mas pelos menos eles me haviamproporcionado setenta homens para tomar umacidade, setenta homens a bordo de dois barcosque se afastaram do riacho entrando nacorrenteza forte do Temes.

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Eu estava no barco de Ralla, o mesmo navioque havíamos capturado de Jarrel, odinamarquês cujo corpo enforcado forareduzido há muito a um esqueleto. Ralla estavana popa, apoiando-se no remo-leme.

— Não sei bem se deveríamos fazer isso,senhor —disse ele.

— Por quê?

Ele cuspiu no rio negro.

— A água está correndo muito depressa. Vaiestar se derramando pela abertura como umacachoeira. Até

mesmo com água parada, senhor, aquelaabertura pode ser maligna.

— Vá direto e reze para qualquer deus em quevocê

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acredite.

— Se ao menos pudermos ver a abertura —disse ele em tom sombrio. Em seguida olhoupara trás, procurando um vislumbre do barco deOsric, mas este fora en-golido pela escuridão.— Já vi isso ser feito numa maré

vazante — disse Ralla —, mas foi à luz do dia eo rio não estava na cheia.

— A maré é vazante? — perguntei.

— Totalmente — disse Ralla, sombrio.

— Então reze.

Toquei o amuleto do martelo, depois o punhode Bafo de Serpente, enquanto o barco ganhavavelocidade na correnteza forte. As margensestavam distantes. Aqui e ali havia um brilho deluz, evidência de uma fogueira ar-dendo numa

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casa, ao passo que adiante, sob o céu sem lua,havia um brilho opaco manchado com um véupreto, e isso, eu sabia, era a nova Lundene saxã.O brilho vinha das fogueiras na cidade e o véuera a fumaça dessas fogueiras, e eu sabia queem algum lugar abaixo daquele véu A Ethelredestaria preparando seus homens para avançaratravessando o vale do Fleot e subir até a antigamuralha romana. Sigefrid, Erik e Haestensaberiam que ele estava ali porque alguém teriacorrido da cidade nova para alertar a antiga. Osdinamarqueses, os noruegueses e os frísios, atémesmo alguns saxões sem senhor, estariamacordando e correndo para as fortificações dacidade velha.

E nós corríamos rio abaixo.

Ninguém falava muito. Cada homem nos doisbarcos conhecia o perigo que iríamosenfrentar. Passei em direção à proa, por entre

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as figuras agachadas, e o padre Pyrlig devia tersentido minha aproximação, ou então umbrilho de luz se refletiu na cabeça de lobo queservia como crista de prata do meu elmo,porque ele me cumprimentou antes que eu ovisse.

— Aqui, senhor — disse ele.

Estava sentado na ponta de um banco deremador e eu parei junto dele, com as botaschapinhando na água do fundo do casco.

— Não parei de rezar — disse ele, sério. —Algumas vezes acho que Deus deve estarcansado de minha voz. E o irmão Osferth aquiestá rezando.

— Não sou irmão — disse Osferth,carrancudo.

— Mas suas orações podem funcionar melhor

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se Deus pensar que você é — respondeu Pyrlig.

O filho bastardo de Alfredo estava agachado aolado do padre Pyrlig. Finan havia equipadoOsferth com uma cota de malha remendadadepois que algum dinamarquês fora estripadopor uma lança saxã. Ele também tinha um elmo,botas altas, luvas de couro, um escudo redondo,uma espada comprida e outra curta, de modoque pelo menos parecia um guerreiro.

— Recebi ordens de mandá-lo de volta aWintanceaster — disse eu.

— Eu sei.

— Senhor — lembrou Pyrlig a Osferth.

— Senhor — disse Osferth, mas comrelutância.

— Não quero mandar seu cadáver ao rei —

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disse eu. — Portanto, fique perto do padrePyrlig.

— Muito perto, garoto — disse Pyrlig. —Finja que me ama.

— Fique atrás dele — ordenei a Osferth.

— Esqueça esse negócio de me amar — dissePyrlig rapidamente —, finja em vez disso que émeu cachorro.

— E reze — terminei. Não havia outroconselho útil que eu pudesse dar a Osferth, anão ser para tirar as roupas, nadar até a margeme voltar a seu mosteiro. Eu tinha tanta fé emsuas habilidades de luta quanto Finan, o quesignificava que não tinha nenhuma. Osferth eraazedo, inepto e desajeitado. Se não fosse porseu tio morto, Leofric, eu teria ficado alegreem mandá-lo de volta a Wintanceaster, masLeofric havia me tomado ainda garoto novo e

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cru e me transformado num guerreiro deespada, por isso eu suportaria Osferth, emnome de Leofric.

Agora estávamos na altura da cidade nova. Eupodia sentir o cheiro das fogueiras de carvãodos ferreiros e ver o brilho refletido de fogostremulando no fundo dos becos. Olhei adiante,para onde a ponte atravessava o rio, mas alitudo estava preto.

— Preciso ver a abertura — gritou Ralla daplataforma do leme.

Fui para a popa de novo, passando às cegas porentre os homens agachados.

— Não consigo ver — Ralla me ouviuchegando

—, portanto não posso tentar.

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— A que distância estamos?

— Perto demais. — Havia pânico em sua voz.

Subi a seu lado. Agora dava para ver a velhacidade, nas colinas, rodeada por sua muralharomana. Podia vê-la porque os fogos da cidadecriavam uma luz opaca, e Ralla tinha razão.Estávamos perto.

— Temos de tomar uma decisão — disse ele.—

Precisaremos desembarcar antes da ponte.

— Eles vão nos ver, se desembarcarmos ali.

Os dinamarqueses com certeza teriam homensguardando a muralha na parte anterior à ponte.

— Então você morre ali com uma espada namão

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— disse Ralla —, ou afogado.

Olhei adiante e não vi coisa alguma.

— Então escolho a espada — falei em tomchapado, vendo a morte de minha idéia surgidado desespero.

Ralla respirou fundo para gritar com osremadores, mas o grito não saiu, porque,subitamente e muito adiante, onde o Temes seabria e se esvaziava no mar, um retalho deamarelo apareceu. Não era um amareloluminoso, não era um amarelo de vespa, masum amarelo-escuro, azedo e leproso, queescorria por entre um rasgo nas nuvens. Era oamanhecer além do mar, um amanhecer escuro,um amanhecer relutante, mas era luz, e Rallanão gritou nem virou o remo-leme para noslevar à margem. Em vez disso, tocou o amuletono pescoço e manteve o barco no curso.

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— Agache-se, senhor — disse ele —, e segure-se com força em alguma coisa.

O barco estava corcoveando como um cavaloantes da batalha. Agora éramos impotentes,apanhados nas garras do rio. A água escorria dointerior da terra, alimentada por chuvas deprimavera e enchentes, e onde ela encontrava aponte, amontoava-se em grandes pilhas brancase tumultuadas. Borbulhava, rugia e espumavaentre os pilares de pedra, mas no centro daponte, onde ficava a abertura, derramava-senuma torrente borbulhante e brilhante que caíapelo equivalente à altura de um homem até onovo nível de água, onde o rio redemoinhava eresmungava antes de se acalmar de novo. Eupodia ouvir a água lutando contra a ponte, podiaouvir o trovão alto como ondas impelidas pelovento atacando uma praia.

E Ralla guiou o barco para a abertura, que ele

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mal podia ver delineada contra o amarelo opacodo céu partido a leste. Atrás de nós havianegrume, mas uma vez consegui ver aquela luzazeda da manhã se refletir na proa molhada donavio de Osric e soube que ele estava logoatrás de nós.

— Segurem firme! — gritou Ralla à nossatripula-

ção, e o navio estava sibilando, aindacorcoveando, e parecia correr mais depressa, evi a ponte vindo em nossa direção, erguer-senegra acima de nós enquanto eu me agachavajunto ao costado do navio e segurava a madeiracom força.

E então estávamos na abertura, e tive asensação de cair como se tivéssemosdespencado num abismo entre dois mundos. Oruído era ensurdecedor. Era o barulho de águalutando com pedra, água rasgando, água

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partindo, água se derramando, um ruído capazde encher os céus, um ruído mais alto ainda doque o trovão de Tor; o navio deu uma sacudidae pensei que devia ter batido em alguma coisa eemborcaria jogando-nos para a morte, mas dealgum modo ele se ajeitou e continuou emfrente. Havia escuridão acima, a escuridão dasextremidades da madeira quebrada da ponte, eentão o ruído se duplicou, a água espirravasobre o convés e estávamos despencando, onavio se inclinando, e houve um estrondo comoos portões do castelo de Odin se fechando e fuijogado para a frente enquanto a água cascateavasobre nós. Tínhamos batido em pedra, pensei,esperei me afogar e até me lembrei de seguraro punho de Bafo de Serpente para morrer coma espada na mão. Mas o navio estremeceu,erguendo-se de novo, e eu percebi que oestrondo fora da proa batendo no rio para alémda ponte, e que estávamos vivos.

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— Remem! — gritou Ralla. — Ah, seusdesgraçados sortudos, remem! A água estavafunda no casco, mas flutuávamos, o céu a lesteera cheio de rasgos e à sua luz sombreadapodíamos ver a cidade e o lugar onde a muralhaera partida.

— E o resto — disse Ralla com orgulho na voz—

é com o senhor.

— É com os deuses — disse eu, e olhei paratrás, vendo o barco de Osric sair flutuando doturbilhão onde o rio caía. Os dois naviostinham sobrevivido e a corrente nos varria paramais abaixo do que o lugar onde queríamosdesembarcar. Porém os remadores nos virarame lutaram contra a água, de modo a chegarmosao cais vindo do leste, e isso era bom, porquequalquer pessoa olhando presumiria quevínhamos subindo o rio a partir de Beamfleot.

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Pensariam que éramos dinamarqueses vindorefor-

çar a guarnição que agora se preparava para oataque de A Ethelred.

Havia um grande navio capaz de navegar emalto-mar, atracado na doca em que queríamosdesembarcar. Eu podia vê-lo claramente porquehavia tochas acesas na parede branca da mansãoà qual a doca servia. O navio era um negóciobonito, com a proa e a popa subindo altas eorgulhosas. Não havia cabeças de fera no navio,já que nenhum nórdico deixaria suas cabeçasesculpidas ame-drontarem os espíritos de umaterra amigável. Um único homem estava abordo do navio, e ficou olhando enquanto nosaproximávamos.

— Quem são vocês? — gritou ele.

— Ragnar Ragnarson! — gritei de volta. Atirei-

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lhe uma corda feita de couro de morsa. — Aluta começou?

— Ainda não, senhor — disse ele. Em seguidapegou a corda e enrolou-a na haste do outronavio. — E, quando começar, eles serãotrucidados!

— Então não chegamos muito tarde? —perguntei.

Em seguida cambaleei quando nosso naviobateu no outro, depois passei sobre as tábuasdo costado chegando a um dos bancos deremadores vazio. — De quem é este navio?

— perguntei ao homem.

— De Sigefrid, senhor. É o Domador de Ondas.

— É lindo — respondi, em seguida dei ascostas.

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— Desembarcar! — gritei em inglês e fiqueiolhando enquanto meus homens pegavamescudos e armas no casco inundado. O navio deOsric veio atrás de nós, baixo na água, epercebi que ele havia inundado um poucoenquanto passava pela abertura da ponte.Homens começaram a subir no Domador deOndas e o nórdico que havia apanhado a cordacomigo viu as cruzes penduradas no pesco-

ço deles.

— Vocês... — começou ele, e descobriu quenão tinha mais nada a dizer. Quase se virou paracorrer para a terra, mas eu havia bloqueado suafuga. Havia choque em seu rosto, choque eperplexidade.

— Ponha a mão no punho da espada — disseeu, desembainhando Bafo de Serpente.

— Senhor — disse ele, como se fosse

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implorar pela vida, mas então entendeu que suavida estava acabando porque eu não poderiadeixá-lo viver. Não podia deixá-lo ir, porqueele alertaria Sigefrid sobre nossa chegada, e seeu amarrasse suas mãos e os pés e o deixasse abordo do Domador de Ondas, alguma outrapessoa poderia encontrá-lo e soltá-lo. Elesoube de tudo isso, e seu rosto mudou deperplexidade para desafio e, em vez desimplesmente segurar o punho da espada,começou a tirar a arma da bainha.

E morreu.

Bafo de Serpente pegou-o na garganta. Comforça e rapidez. Senti-a rasgar músculo etecido duro. Vi o sangue.

Vi seu braço hesitar e a lâmina cair de volta nabainha, e estendi a mão direita para segurar suamão sobre o punho de sua espada. Certifiquei-me de que ele continuasse segurando a espada

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enquanto morria, porque então seria levado aosalão de festas dos mortos. Segurei sua mãocom força e o deixei desmoronar contra meupeito, onde seu sangue escorreu por minha cotade malha.

— Vá para o castelo de Odin — falei baixinho— e guarde um lugar para mim.

Ele não pôde falar. Engasgou enquanto osangue se derramava pela traquéia.

— Meu nome é Uhtred — disse eu — e um diavou festejar com você no castelo doscadáveres, vamos rir juntos, beber juntos e seramigos.

Deixei seu corpo cair, depois me ajoelhei eencontrei seu amuleto. O martelo de Tor, quecortei de seu pescoço usando Bafo deSerpente. Pus o martelo numa bolsa, limpei aponta da espada na capa do morto, em seguida

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enfiei a lâmina de volta em sua bainha forradade pele.

Peguei meu escudo com Sihtric, meu serviçal.

— Vamos desembarcar — disse eu — e tomaruma cidade. Porque era hora de lutar.

CINCO

Então, subitamente, tudo ficou quieto.

Não totalmente, claro. O rio sibilava correndopela ponte, pequenas ondas batiam nos cascosdos barcos, as tochas na parede da casaestalavam e eu podia ouvir os passos de meushomens desembarcando. Escudos e cabos delanças batiam nas tábuas dos navios, cãeslatiam na cidade e em algum lugar um gansoestava dando seu chamado áspero, mas tudoparecia quieto. Agora o amanhecer era de umamarelo mais pálido, meio escondido por

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nuvens escuras.

— E agora? — Finan apareceu a meu lado.Steapa estava junto dele, mas não disse nada.

— Vamos à porta — disse eu. — À Porta Ludd.—

Mas não me mexi. Não queria me mexer.Queria estar de volta em Coccham com Gisela.Não era covardia. A covardia está sempreconosco, e a coragem — a coisa que provocaos poetas a fazer canções sobre nós — émeramente a vontade de suplantar o medo. Erao cansaço que me fazia relutar em me mexer,mas não um cansaço físico.

Eu era jovem na época e os ferimentos daguerra ainda não haviam minado minha força.Acho que estava cansado de Wessex, cansadode lutar por um rei de quem eu não gostava, e,parado naquele cais de Lundene, não entendi

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por que lutava por ele. E agora, olhando paratrás, imagino se aquela lassidão foi causadapelo homem que eu havia acabado de matar e aquem havia prometido me juntar no castelo deOdin. Acredito que os homens que ma-

tamos são inseparavelmente unidos a nós. Osfios de suas vidas, agora fantasmagóricos, sãotecidos pelas Fiandeiras ao redor do nosso, e opeso deles permanece para nos as-sombrar atéque a lâmina afiada corte finalmente nossa vida.Senti remorso pela morte dele.

— Vai dormir? — perguntou o padre Pyrlig.Ele havia se juntado a Finan.

— Vamos para a porta — respondi.

Parecia um sonho. Eu estava andando, masminha mente se encontrava em outro lugar. Eraassim, pensei, que os mortos andavam emnosso mundo, porque os mortos não voltam.

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Não como Bjorn havia fingido retornar, masnas noites mais escuras, quando nenhum vivopode vê-los, eles caminham por nosso mundo.Pensei que eles deviam vê-lo apenas pelametade, como se os lugares que haviamconhecido estivessem velados numa névoa deinverno, e me perguntei se meu pai estaria meolhando.

Por que pensei nisso? Eu não gostava de meupai, nem ele de mim, e ele havia morridoquando eu era pequeno, mas fora um guerreiro.Os poetas cantavam a seu respeito. E o que elepensaria de mim? Eu estava andando através deLundene, em vez de atacar Bebbanburg, e eraisso que deveria ter feito. Deveria ter ido parao norte. Deveria ter gastado todo o meutesouro de prata para contratar homens eliderá-los num ataque pela faixa de terra deBebbanburg e subir pelas muralhas até o altocastelo em que poderíamos causar grande

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matança. Então poderia viver em minha casa, nacasa de meu pai, para sempre. Poderia viverperto de Ragnar e estar longe de Wessex.

Só que meus espiões, já que eu empregava umadúzia deles na Nortúmbria, haviam me contadoo que meu tio fizera com minha fortaleza. Elehavia fechado os por-

tões voltados para a terra. Havia tirado-ostotalmente e em seu lugar existiamfortificações recém-construídas, altas ereforçadas com pedra, e agora, se alguémquisesse entrar na fortaleza, precisava seguirum caminho que levava até a extremidade nortedo penhasco no qual a fortaleza era construída.E cada passo desse caminho estaria sob aquelasmuralhas altas, sob ataque, e então, naextremidade norte, onde o mar se partia esugava, havia um portão pequeno. Para alémdesse portão havia um caminho íngreme que

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levava a outra muralha e outro portão.Bebbanburg fora lacrada, e para tomá-la euprecisaria de um exército fora do alcance atémesmo de meu tesouro de prata.

— Boa sorte! — uma voz de mulher meespantou dos pensamentos. O povo da velhacidade estava acordado e nos viu passar, eachou que éramos dinamarqueses porque euhavia ordenado que meus homens escondessemas cruzes.

— Matem os desgraçados saxões! — gritououtra voz.

Nossos passos ecoavam nas casas altas quetinham pelo menos três andares. Algumaspossuíam um belo trabalho em pedra sobre ostijolos, e pensei em como o mundo já foracheio desse tipo de casa. Lembro-me daprimeira vez em que subi uma escadariaromana, de como a sensação era estranha, e

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soube que em tempos antigos os homensdeviam considerar comuns aquelas coisas.Agora o mundo era esterco, palha e madeiraestragada pela umidade. Tínhamos gente quetrabalhava com pedra, claro, mas era maisrápido construir com madeira, e a madeiraapodrecia, mas ninguém parecia se incomodar.O mundo inteiro apodrecia enquantoescorregávamos da luz para a escuridão,chegando cada vez mais perto do caos negroem que este mundo do meio terminaria, e osdeuses lutariam e todo o amor, a luz e os risosse dissolveriam.

— Trinta anos — falei alto.

— É a sua idade? — perguntou o padre Pyrlig.

— É quanto tempo um castelo dura, a não serque você fique consertando. Nosso mundo estácaindo aos pedaços, padre.

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— Meu Deus, você está mal-humorado —disse Pyrlig, achando divertido.

— E fico olhando Alfredo, vendo como eletenta ajeitar nosso mundo. Listas! Listas epergaminhos! Ele é

como alguém que coloca um monte de galhos ebarro diante de uma enchente.

— Se você firmar bem o monte de galhos ebarro

— Steapa estava escutando nossa conversa einterveio —, ele é capaz de alterar o curso deum rio.

— E é melhor lutar contra uma enchente doque se afogar — comentou Pyrlig.

— Olhem aquilo! — disse eu, apontando para acabeça de pedra de um animal, esculpida e fixa

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numa parede de tijolos. O animal não separecia com nada que eu tivesse visto, era umgrande felino peludo, e sua boca aberta ficavaacima de uma bacia de pedra rachada, sugerindoque a água já fluíra da boca para a tigela. —Nós poderíamos fazer aquilo? — pergunteicom amargura.

— Há artesãos que podem fazer esse tipo decoisa

— disse Pyrlig.

— Então onde eles estão? — pergunteiirritado, e pensei que todas essas coisas, asesculturas, os tijolos e o mármore, haviam sidofeitos antes que a religião de Pyrlig chegasse àilha. Seria esse o motivo para a decadência domundo? Será que os deuses verdadeirosestavam nos pu-

nindo porque tantos homens adoravam o deus

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pregado?

Não fiz a sugestão a Pyrlig, fiquei quieto. Ascasas se erguiam acima de nós, a não ser ondeuma havia desmoro-nado num monte deentulho. Um cão procurava alguma coisa juntoa uma parede, parou para levantar a perna,depois se virou e rosnou para nós. Um bebêchorou numa casa. Nossos passos ecoavam nasparedes. A maioria de meus homens estava emsilêncio, cautelosa com os fantasmas queacreditavam habitar aquelas relíquias de umtempo antigo.

O bebê chorou de novo, mais alto.

— Deve haver uma jovem mãe lá dentro —disse Rypere, animado. Rypere era seu apelido,e significava

“ladrão”. Ele era um anglo magricelo vindo donorte, inteligente e astuto, e pelo menos não

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estava pensando em fantasmas.

— Se fosse você, eu continuaria com as cabras—disse Clapa —, elas não se importam comseu fedor. —

Clapa era dinamarquês, havia feito juramento amim e me servia com lealdade. Era um garotoenorme, criado numa fazenda, forte como umboi, sempre alegre. Ele e Rypere eram amigosque jamais paravam de se espezinhar.

— Quietos! — falei antes que Rypere pudesseresponder. Sabia que devíamos estar chegandoperto das muralhas do oeste. No lugar em quehavíamos desembarcado, a cidade subia pelaampla colina em terraços até o palácio no topo,mas agora essa colina ia se aplainando, o quesignificava que nos aproximávamos do vale doFleot. Atrás de nós o céu ia clareando paraamanhecer e eu sabia que A Ethelred pensariaque eu havia fracassado no ataque logo antes da

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alvorada, e essa crença, eu temia, podia tê-loconvencido a abandonar seu próprio ataque.Talvez ele já

estivesse levando seus homens de volta à ilha.Nesse caso, estaríamos sozinhos, rodeadospelos inimigos e condenados.

— Deus nos ajude — disse Pyrlig subitamente.

Levantei a mão para fazer meus homenspararem porque, à nossa frente, no grandetrecho de rua antes de passar pelo arco de pedrachamado Porta Ludd, havia uma multidão dehomens. Homens armados. Homens cujoselmos, lâminas de machados e pontas de lançascaptavam e refletiam a luz fraca do sol nubladoe recém-nascido.

— Deus nos ajude — repetiu Pyrlig, e fez osinal-da-cruz. — Devem ser uns duzentos.

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— Mais — disse eu. Havia tantos homens quenem todos podiam ficar na rua, o que obrigavaalguns a ir para os becos dos dois lados. Todosos que podíamos ver estavam de frente para aporta, e isso me fez entender o que o inimigoestava fazendo, e minha mente se clareounaquele instante como se uma névoa tivesse sedissipado. Havia um pátio à esquerda e euapontei pela passagem que dava nele. — Ali —ordenei.

Lembro-me de um padre, um sujeitointeligente, que me visitou para fazer perguntassobre o que eu me lembrava de Alfredo,lembranças que ele queria colocar num livro.Jamais fez isso, porque morreu de desarranjopouco depois de falar comigo, mas era umhomem astuto e mais clemente do que amaioria dos padres, e me lembro de que elepediu para eu descrever o júbilo da batalha.

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— Os poetas da minha mulher vão lhe contar—disse eu.

— Os poetas de sua mulher nunca lutaram —observou ele —, e só pegam as canções sobreoutros heróis e mudam os nomes.

— É mesmo?

— Claro que é — disse ele. — O senhor nãofaria isso.

Gostei daquele padre, por isso falei com ele, ea resposta que eventualmente lhe dei foi que ojúbilo da batalha era o deleite de enganar ooutro lado. De saber o que ele fará, antes defazer, e de ter a reação pronta para que, quandofizer o movimento destinado a matar a gente,em vez disso ele morra. E naquele momento, nasemi-escuridão úmida da rua em Lundene, eusoube o que Sigefrid estava fazendo. E tambémsoube, mesmo que ele não soubesse, que ele ia

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me dar a Porta Ludd.

O pátio pertencia a um mercador de pedras.Suas pedreiras eram os antigos prédios deLundene, e havia pilhas de alvenariaamontoadas contra as paredes, prontas para sermandadas de navio à Frankia. Havia mais pedrasainda empilhadas de encontro ao portão quedava no cais, passando pela muralha do rio.Sigefrid, pensei, devia temer um ataque vindodo rio e havia bloqueado cada porta nasmuralhas a oeste da ponte, mas jamais haviasonhado que alguém atravessaria a ponte parachegar ao lado leste, não guardado. Mastínhamos feito isso, e meus homens estavamescondidos no pátio enquanto eu ficava paradona entrada, olhando o inimigo se amontoarjunto à Porta Ludd.

— Estamos nos escondendo? — perguntouOsferth. Sua voz tinha um tom de gemido,

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como se estivesse perpetuamente reclamando.

— Há centenas de homens entre nós e a porta—expliquei paciente —, e somos muitopoucos para passar por eles.

— Então fracassamos — disse ele, não comouma pergunta, mas como uma declaraçãopetulante.

Senti vontade de bater nele, mas conseguipermanecer paciente.

— Conte a ele o que está acontecendo — dissea Pyrlig.

— Deus, em Sua sabedoria — explicou o galês—, persuadiu Sigefrid a fazer um ataque saindoda cidade! Eles vão abrir aquela porta, garoto, ese espalhar pelos pântanos, e abrir caminho atéos homens do senhor A Ethelred. E como amaior parte dos homens do senhor A Ethelred é

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do fyrd, e a maioria dos de Sigefrid é deguerreiros de verdade, todos sabemos o que vaiacontecer!

— O padre Pyrlig tocou sua cota de malha,onde a cruz de madeira estava escondida. —Obrigado, Deus!

Osferth olhou o padre.

— Quer dizer que os homens do senhor AEthelred serão trucidados? — disse ele depoisde uma pausa.

— Alguns vão morrer! — admitiu Pyrlig,animado.

— E espero em Deus que morram em estadode graça, garoto, caso contrário nunca ouvirãoaquele coro celestial, não é?

— Odeio coros — resmunguei.

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— Não, não odeia — disse Pyrlig. — Vejabem, garoto — ele olhou de novo para Osferth.— Assim que eles tiverem saído pela porta, sóhaverá um punhado de homens guardando-a. E éentão que atacamos! E de repente Sigefrid vaise ver com um inimigo pela frente e outro portrás, e essa situação pode fazer um homemsentir vontade de ter ficado na cama.

Um postigo se abriu numa das janelas altasacima do pátio. Uma jovem olhou para o céuque ia clareando, depois estendeu as mãos parao alto e soltou um bocejo enorme. O gesto fezesticar a camisola de linho sobre os seios.Então ela viu meus homens embaixo einstintivamente cobriu os seios com os braços.Estava vestida, mas deve ter se sentido nua.

— Ah, obrigado, querido Salvador, por outradoce misericórdia — disse Pyrlig, olhando-a.

— Mas se tomarmos o portão — disse

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Osferth, preocupado com os problemas que via—, os homens que restarem na cidade vão nosatacar.

— Vão — concordei.

— E Sigefrid... — começou ele.

— Provavelmente vai se virar de volta para nostrucidar — terminei a frase para ele.

— E? — disse ele, depois parou, porque nãoviu nada além de sangue e morte em seu futuro.

— Tudo depende do meu primo — respondi. —

Se ele vier em nossa ajuda, deveremos vencer.Se não vier?

— Dei de ombros. — Segure firme sua espada.

Um rugido soou vindo da Porta Ludd e eusoube que ela fora aberta e que os homens

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estavam brotando aos montes pela estrada queia até o Fleot. A Ethelred, se ainda estivessepreparando seu ataque, iria vê-los e teria defazer uma escolha. Poderia ficar e lutar na novacidade saxã ou fugir. Eu esperava que eleficasse. Eu não gostava dele, mas nunca vi faltade coragem em sua postura. Via muitaestupidez, o que sugeria que ele provavelmentegostaria de uma luta.

Demorou muito tempo para os homens deSigefrid passarem pela porta. Fiquei olhandodas sombras na entrada do pátio e achei quepelo menos quatrocentos homens estariamsaindo da cidade. A Ethelred tinha mais detrezentos bons soldados, a maioria das tropasdomésticas de Alfredo, mas o restante de suasforças era do fyrd e jamais suportaria umataque forte e selvagem. A vantagem era deSigefrid, cujos homens estavam quentes,descansa-dos e alimentados, ao passo que as

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tropas de A Ethelred haviam caminhado comdificuldade durante a noite e estariam cansadas.

— Quanto mais cedo fizermos isso — falei aninguém em particular —, melhor.

— Então vamos agora? — sugeriu Pyrlig.

— Vamos simplesmente caminhar até a porta!—gritei aos meus homens. — Não corram!Finjam que são daqui!

E foi o que fizemos.

E assim, com um passeio por uma rua deLundene, a luta violenta começou.

Não restavam mais do que trinta homens naPorta Ludd. Alguns eram sentinelas postadaspara guardar o arco, mas a maioria era dehomens de folga que haviam subido àfortificação para assistir à investida de

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Sigefrid. Um grandalhão com uma perna sóestava subindo os degraus de pedra irregularesapoiado em muletas. Ele parou no meio docaminho e se virou para ver nossa aproximação.

— Se correr, senhor — gritou ele para mim —,poderá se juntar a eles! Ele me chamou desenhor porque viu um senhor. Viu um senhor daguerra.

Apenas um punhado de homens poderia ir àguerra como eu ia. Eram chefes tribais, earls,reis, senhores; homens que haviam matadooutros homens em quantidade suficiente a fimde juntar a fortuna necessária para comprarmalha, elmo e armas. E não era qualquer malha.Minha cota era feita na Frankia e custaria maisdo que o pre-

ço de um navio de guerra. Sihtric havia polido ometal com areia, logo, brilhava como prata. Abainha da cota ficava na altura dos joelhos e

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nela estavam pendurados 38

machados de Tor; alguns feitos de osso; outros,de marfim; alguns, de prata, mas todos jáhaviam pendido do pescoço de inimigoscorajosos que eu matara em batalha, e eu usavaos amuletos para que, quando chegasse aopalácio dos cadáveres, os ex-usuários meconhecessem, me recebessem e bebessemcerveja comigo.

Eu usava uma capa de lã tingida de preto na qualGisela havia bordado um raio branco que ia dopescoço aos calcanhares. A capa podiaatrapalhar em batalha, mas eu a usava agoraporque ela me tornava um alvo maior, e eu jáera mais alto e mais largo do que a maioria doshomens. O amuleto de Tor estava penduradoem meu pescoço, e tratava-se de uma peçapobre, um amuleto miserável feito de ferro queenferrujava constantemente, e de tanto ser

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raspado e limpado ficara fino e deformado como passar dos anos, mas eu havia tomado aquelepequeno martelo de ferro com meus punhosquando era garoto, e o amava. Uso até hoje.

Meu elmo era uma coisa gloriosa, polido atéum brilho de ofuscar os olhos, incrustado deprata e com uma cabeça de lobo, de prata, nacrista. As placas faciais eram decoradas comespirais de prata. Somente aquele elmo já

dizia ao inimigo que eu era um homem desubstância. Se um homem me matasse etomasse aquele elmo, estaria instantaneamenterico, mas meus inimigos prefeririam tomarmeus braceletes que, como os dinamarqueses,eu usava sobre as mangas da cota de malha.Meus braceletes eram de prata e ouro, e haviatantos que alguns tinham de ser usados acimados cotovelos. Eles falavam de homens mortose riqueza acumulada. Minhas botas eram de

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couro grosso e tinham placas de ferrocosturadas ao redor para defletir os golpes delança que vêm por baixo do escudo.

O escudo em si, com borda de ferro, erapintado com uma cabeça de lobo, meudistintivo, e no quadril esquerdo pendia Bafo deSerpente, e no direito, Ferrão de Vespa, ecaminhei para o portão com o sol se erguendopor trás, lançando minha sombra comprida narua coberta de imundícies.

Eu era um senhor da guerra em toda a glória,tinha vindo para matar, e ninguém no portãosabia disso.

Viram-nos chegando, mas presumiram quefôssemos dinamarqueses. A maior parte doinimigo estava em cima da muralha, mas haviacinco parados junto ao portão aberto e todosolhavam a força de Sigefrid que jorrou pelapequena encosta até o Fleot. O povoado saxão

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não ficava muito depois, e eu esperava que AEthelred ainda estivesse lá.

— Steapa — chamei, ainda suficientementelonge do portão para que ninguém me ouvissefalando inglês —, leve seus homens e mateaqueles bostas que estão na passagem em arco.

A cara de caveira de Steapa riu.

— Quer que eu feche a porta? — perguntouele.

— Deixe aberta. — Eu queria atrair Sigefrid devolta, para impedir que seus homensendurecidos se enfias-sem no meio do fyrd deA Ethelred, e se a porta estivesse abertaSigefrid ficaria mais inclinado a nos atacar.

A porta era construída entre dois enormesbastiões de pedra, cada um com sua própriaescada, e eu me lembrei de como, quando era

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criança, o padre Beocca me havia descrito océu cristão. Teria escadarias de cristal, afir-

mara ele, e descreveu com entusiasmo umgrande lance de degraus vítreos levando a umtrono de ouro coberto de branco, onde seu deusestava sentado. Anjos rodeariam esse trono,cada qual mais luminoso do que o sol, ao passoque os santos, como ele chamava os cristãosmortos, se reuniriam ao redor da escada ecantariam. Na época parecia um negócio chato,e ainda parece.

— No outro mundo — disse eu a Pyrlig —,todos seremos deuses. Ele me olhou comsurpresa, imaginando de onde viera aqueladeclaração.

— Estaremos com Deus — corrigiu ele.

— No seu céu, talvez, mas não no meu.

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— Só há um céu, senhor Uhtred.

— Então que o meu seja o único — disse eu, enaquele momento soube que minha verdade eraa verdade e que Pyrlig, Alfredo e todos osoutros cristãos estavam errados. Estavamerrados. Não íamos para a luz, nósdeslizávamos para longe dela. Íamos para ocaos. Íamos para a morte e para o céu da morte,e comecei a gritar enquanto nosaproximávamos do inimigo. — Um céu parahomens!

Um céu para guerreiros! Um céu em queespadas brilham!

Um céu para homens corajosos! Um céu deselvageria!

Um céu de deuses cadáveres! Um céu damorte!

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Todos me olharam, tanto amigos quantoinimigos.

Olharam e acharam que eu estava louco, etalvez estivesse, enquanto subia a escada dolado direito, onde o homem de muletas meolhava. Chutei uma de suas muletas, fazendo-ocair. A muleta fez barulho despencando pelaescada e um de meus homens pisou-a.

— O céu da morte! — gritei, e cada homem namuralha tinha os olhos em mim, mesmo assimachavam que eu era amigo porque soltei meuestranho grito de guerra em dinamarquês.

Sorri por trás das duas placas faciais, depoisdesembainhei Bafo de Serpente. Abaixo demim, fora de minhas vista, Steapa e seushomens haviam começado sua matan-

ça.

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Havia menos de dez minutos eu estivera numsonho acordado, e agora a loucura viera. Eudeveria ter esperado que meus homenssubissem a escada e formassem uma parede deescudos, mas algum impulso me impeliuadiante. Eu ainda estava gritando, mas agoragritava meu nome, e Bafo de Serpente cantavasua canção da fome, e eu era um senhor daguerra.

A felicidade da batalha. O êxtase. Não ésomente enganar um inimigo, mas sentir-se umdeus. Uma vez eu havia tentado explicar aGisela, e ela havia tocado meu rosto com seusdedos longos e sorrira.

— É melhor do que isto? — perguntou.

— Igual — disse eu.

Mas não é igual. Na batalha o homem arriscatudo para ganhar reputação. Na cama não

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arrisca nada. O júbilo é comparável, mas ojúbilo de uma mulher é fugaz, ao passo que areputação é para sempre. Homens morrem,mulheres morrem, todos morrem, mas areputação sobrevive ao homem, e era por issoque eu gritava meu nome enquanto Bafo deSerpente tirava sua primeira alma. Era umhomem alto com um elmo velho e uma lança delâmina comprida que ele projetouinstintivamente em minha direção e, tambéminstintivamente, afastei seu golpe com oescudo e cravei Bafo de Serpente em suagarganta. Havia um homem à minha direita e euo empurrei com o ombro, derrubando-o, e piseiem sua virilha enquanto meu escudo aparava umgiro de espada vindo da esquerda.

Passei por cima do homem cuja virilha eu haviaesmagado e a parede protetora do topo damuralha estava agora à

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minha direita, onde eu a queria, e à minhafrente estava o inimigo.

Enfiei-me no meio deles.

— Uhtred! — eu gritava. — Uhtred deBebbanburg!

Estava convidando a morte. Atacando sozinhoeu deixava o inimigo chegar atrás de mim, masnaquele momento eu era imortal. O tempohavia se ralentado de modo que os inimigos semoviam como lesmas e eu era rápido como oraio de minha capa. Ainda estava gritandoquando Bafo de Serpente se cravou no olho deum homem, enfiando-se até que o osso daórbita interrompeu o movimento, então a vireipara a esquerda para bater numa espada quevinha contra meu rosto, e meu escudo selevantou para aparar um golpe de machado.Bafo de Serpente baixou e eu a empurrei comforça à frente, rasgando o gibão de couro do

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homem cuja espada eu havia aparado.

Girei-a fazendo com que a lâmina não ficassepresa pela barriga dele enquanto abria suastripas, então me virei para a esquerda e acerteia bossa de ferro do escudo no sujeito domachado.

Ele cambaleou para trás. Bafo de Serpente saiuda barriga do espadachim e voou num giro paraa direita, chocando-se contra outra espada.Acompanhei-a, ainda gritando, e vi o terror norosto daquele inimigo, e o terror num inimigogera crueldade.

— Uhtred! — gritei, e encarei-o, e ele viu amorte chegando, e tentou recuar para longe demim, mas outros homens vieram por trásbloqueando sua retirada e eu es-

tava sorrindo enquanto passava Bafo deSerpente por seu rosto. O sangue espirrou no

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alvorecer, o giro de volta cortou sua garganta edois homens passaram por ele, aparei o golpede um com a espada e o do outro com oescudo.

Aqueles dois não eram idiotas. Vieram com osescudos se tocando e sua única ambição era meempurrar de costas contra a muralha e memanter ali, preso por seus escudos, a fim deque não pudesse usar Bafo de Serpente.

E assim que tivessem me prendido deixariamoutro homem me golpear com espadas até queeu perdesse sangue demais para ficar de pé.Aqueles dois sabiam como me matar, e vierampara isso.

Mas eu estava rindo. Estava rindo porque sabiao que eles planejavam, e eles pareciam lentosdemais. Golpeei com o escudo contra o deles eos dois pensaram que haviam me prendidoporque eu não podia ter esperanças de

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empurrar dois homens. Eles se agacharam atrásdos escudos e fizeram força, e eusimplesmente recuei, puxando meu escudo paratrás rapidamente, e eles cambalearam para afrente e minha resistência desapareceu. Seusescudos estavam ligeiramente abaixadosenquanto eles camba-leavam, e Bafo deSerpente saltou como uma língua de víbora,fazendo com que a ponta ensangüentadaacertasse a testa do homem à minha esquerda.Senti seu osso grosso se partir, em seguidagirei-a à direita e o segundo homem aparou ogolpe. Empurrou seu escudo contra mim,esperando me desequilibrar, mas nessemomento houve um grito enorme à minhaesquerda.

— Cristo Jesus e Alfredo! — Era o padrePyrlig, e agora o amplo bastião atrás de mimestava atulhado de meus homens. — Seu pagãodesgraçado! — gritou Pyrlig para mim.

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Ri. A espada de Pyrlig se cravou no braço demeu oponente, e Bafo de Serpente empurrou oescudo dele para baixo. Lembro-me de queentão ele olhou para mim.

Tinha um belo elmo com asas de corvo presasnas laterais.

A barba era dourada, os olhos, azuis, e naquelesolhos estava o conhecimento de sua morteiminente enquanto ele tentava levantar a espadacom o braço ferido.

— Segure sua espada com força! — disse eu.Ele assentiu.

Pyrlig matou-o, mas não vi. Estava passandopelo homem para atacar o restante dosinimigos, e a meu lado Clapa girava ummachado enorme com violência tão grande querepresentava perigo tanto para nosso ladoquanto para o inimigo, mas nenhum inimigo

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queria enfrentar nós dois. Fugiam ao longo dotopo da muralha, e a porta era nossa.

Apoiei-me no baixo muro externo eimediatamente me empertiguei, porque aspedras se mexeram sob meu peso. A alvenariaestava desmoronando. Bati nas pedras soltas eri alto, de alegria. Sihtric riu para mim. Eletinha uma espada sangrenta.

— Algum amuleto, senhor? — perguntou ele.

— Aquele — apontei para o homem cujo elmoera decorado com asas de corvo. — Ele morreubem, vou ficar com o dele.

Sihtric se abaixou para encontrar o amuleto domartelo do sujeito. Atrás dele Osferth olhava ameia dúzia de homens mortos caídos em poçasde sangue sobre as pedras. Estava segurandouma lança com a ponta vermelha.

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— Matou alguém? — perguntei.

Ele me olhou arregalado, depois assentiu.

— Sim, senhor.

— Bom — disse eu, e virei a cabeça na direçãodos cadáveres esparramados. — Qual?

— Não foi aqui, senhor. — Ele pareceuperplexo por um momento, depois olhou paraos degraus que havíamos subido. — Foi ali,senhor.

— Na escada?

— Foi.

Olhei-o por tempo suficiente para deixá-lodesconfortável.

— Diga — falei por fim. — Ele o ameaçou?

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— Era um inimigo, senhor.

— O que ele fez? Balançou para você a únicamuleta que sobrou?

— Ele — começou Osferth, depois pareceuficar sem palavras. Olhou para um homem queeu havia matado, depois franziu a testa. —Senhor?

— Sim.

— O senhor nos disse que deixar a parede deescudos era a morte. Curvei-me para limparBafo de Serpente na capa de um morto.

— E daí?

— O senhor deixou a parede de escudos —disse Osferth, quase me reprovando.

Empertiguei-me e toquei meus braceletes.

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— Você vive — falei rispidamente — seobedecer às regras. Você ganha reputação,garoto, violando-as. Mas não se ganhareputação matando aleijados. — Cuspi estasúltimas palavras, depois me virei e vi que oshomens de Sigefrid haviam atravessado o rioFleot, mas agora tinham percebido a agitaçãoatrás e parado para olhar em direção à porta.

Pyrlig apareceu a meu lado.

— Vamos nos livrar desse trapo — disse ele, eeu vi que havia um estandarte pendurado namuralha. Pyrlig puxou-o para cima e memostrou o distintivo do corvo, de Sigefrid. —Vamos mostrar a eles que a cidade tem umnovo senhor. — Ele levantou a cota de malha etirou um estandarte que fora dobrado e enfiadona cintura. Em seguida sacudiu-o, revelandouma cruz preta sobre um campo branco e semgraça. — Louvado seja Deus — disse Pyrlig,

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em seguida pendurou o estandarte na muralha,prendendo-o com o peso de armas de homensmortos sobre a borda superior. Agora Sigefridsaberia que a Porta Ludd estava perdida. Oestandarte cristão fora esfregado em seu rosto.

Pelos próximos instantes, no entanto, as coisasficaram quietas. Acho que os homens deSigefrid ficaram atônitos pelo que acontecera eestavam se recuperando da surpresa. Não semoviam mais na direção da nova cidade saxã,ainda olhavam de volta para a porta onde a cruzestava pendurada, ao passo que dentro da cidadegrupos de homens se reuniam nas ruas eolhavam para nós.

Eu estava olhando na direção da cidade nova.Não podia ver qualquer sinal dos homens de AEthelred. Havia uma paliçada de madeira nacrista da encosta baixa onde a cidade saxã eraconstruída, e era possível que as tropas de A

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Ethelred estivessem atrás da cerca que haviaapodrecido em alguns lugares e faltavatotalmente em outros.

— Se A Ethelred não vier — disse Pyrligbaixinho.

— Então estamos mortos — terminei por ele.À

minha esquerda o rio deslizava cinza como osofrimento na direção da ponte quebrada e domar distante. As gaivotas eram brancas contra ocinza. Longe, na margem sul, pude ver algumaschoupanas de onde subia fumaça. Aquilo eraWessex. Na minha frente, onde os homens deSigefrid permaneciam imóveis, ficava aMércia, enquanto atrás de mim, a norte do rio,era a Ânglia Oriental.

— Fechamos a porta? — perguntou Pyrlig.

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— Não. Mandei Steapa deixá-la aberta.

— Mandou?

— Queremos que Sigefrid nos ataque —respondi, e pensei que, se A Ethelred tivesseabandonado seu ataque, eu morreria na portaem que os três reinos se encontravam. Aindanão podia ver as forças de A Ethelred, noentanto contava com os homens de meu primopara nos dar a vitória. Se eu pudesse atrair osguerreiros de Sigefrid de volta à porta e mantê-los ali, A Ethelred poderia atacar por trás. Porisso eu tinha de deixar a porta aberta, como umconvite a Sigefrid. Se eu a tivesse fechado, elepoderia usar outra entrada para a cidade romanae seus homens não ficariam expostos ao ataquede meu primo.

O problema mais imediato era que osdinamarqueses que haviam ficado na cidadeestavam finalmente se recuperando da surpresa.

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Alguns estavam nas ruas enquanto outros sereuniam nas muralhas a cada lado da PortaLudd. As muralhas eram mais baixas do que obasti-

ão da porta, o que significava que qualquerataque contra nós teria de ser feito subindo aescada estreita que ia da muralha ao bastião.Cada uma daquelas escadas precisaria de cincohomens para ser sustentada, assim como asduas que subiam da rua. Pensei em abandonar otopo do basti-

ão, mas se a luta corresse mal na passagem emarco, a alta fortificação era nosso melhorrefúgio.

— Você terá vinte homens para sustentar estebastião — disse eu a Pyrlig. — E pode ficarcom ele também

— assenti para Osferth. Não queria o filho de

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Alfredo, matador de aleijados, no arcoembaixo, onde a luta seria mais feroz. Era láembaixo que formaríamos duas paredes deescudos, uma virada para a cidade e a outra nadireção do Fleot, e ali as paredes de escudosiriam se chocar, e ali, pensei, morreríamosporque eu ainda não podia ver o exército de AEthelred.

Senti-me tentado a fugir. Teria sido bastantesimples ter recuado por onde tínhamos vindo,empurrando para o lado os inimigos queestivessem nas ruas. Poderíamos pegar o barcode Sigefrid, o Domador de Ondas, e usá-lo paraatravessar até a margem saxã do oeste. Mas euera Uhtred de Bebbanburg, estufado de orgulhode guerreiro, e havia jurado tomar Lundene.Ficamos.

Cinqüenta de nós descemos a escada epreenche-mos a porta. Vinte homens estavam

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virados para a cidade, e o restante ficou nadireção de Sigefrid. Dentro do arco da portahavia apenas espaço para oito homens lado alado com seus escudos se tocando, por issofizemos nossas duas paredes de escudos sob assombras da pedra. Steapa comandava os vinte, eeu fiquei na fileira da frente, virada para ooeste.

Deixei a parede de escudos e dei alguns passosna direção do vale do Fleot. O riacho, tornadoimundo pelos poços dos curtumes rio acima,corria sujo e lento na dire-

ção do Temes. Do outro lado do rio Sigefrid,Haesten e Erik haviam finalmente virado suasforças, e o que haviam sido suas fileiras deretaguarda de guerreiros nórdicos estava agoravadeando de volta pelo raso Fleot paraempurrar de lado minha pequena força.

Mantive-me no horizonte deles. O sol velado

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por nuvens estava atrás de mim, mas sua luzpálida estaria se refletindo na prata de meuelmo e no brilho enfumaçado da lâmina deBafo de Serpente. Eu a havia desembainhado denovo, e agora estava parado com a espadaestendida à

direita e o escudo, à esquerda. Estava acimadeles, um senhor em toda a glória, um homemcom cota de malha, um guerreiro convidandoguerreiros a lutar, e não vi tropas amigáveis nacolina mais distante.

E se A Ethelred havia ido embora, pensei,morreríamos.

Apertei o punho de Bafo de Serpente. Olhei oshomens de Sigefrid, depois bati Bafo deSerpente contra o escudo. Bati três vezes e osom ecoou nas muralhas atrás de mim, depoisme virei e voltei à minha pequena parede deescudos.

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E, com um rugido de raiva e o uivo de homensque vêem a vitória, o exército de Sigefrid veionos matar.

Um poeta deveria ter escrito sobre aquela luta.Para isso é que servem os poetas.

Minha mulher atual, que é uma idiota, paga aospoetas para cantar sobre Cristo Jesus, que é seudeus, mas seus poetas caem em silêncioembaraçado quando entro mancando no salão.Eles sabem montes de canções sobre seussantos e cantam músicas melancólicas sobre odia em que seu deus foi pregado à cruz, masquando estou presente eles cantam os poemasde verdade, aqueles poemas que o padreinteligente me disse que foram escritos sobreoutros homens cujos nomes eles haviam tirado,para inse-rir o meu.

São poemas sobre chacinas, poemas sobreguerreiros, poemas de verdade.

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Os guerreiros defendem o lar, defendem ascrianças, defendem as mulheres, defendem acolheita e matam os inimigos que vêm roubaressas coisas. Sem guerreiros a terra seria umlugar devastado, desolado e repleto delamentos. No entanto, a verdadeira recompensade um guerreiro não é a prata e o ouro que elepode ganhar nos braços, e sim a reputação, e épor isso que existem poetas.

Os poetas contam as histórias dos homens quedefendem a terra e matam os inimigos da terra.É para isso que servem os poetas, no entantonão existe nenhum poema sobre a luta na PortaLudd, de Lundene.

Há um poema cantado em que antigamente eraa Mércia, contando sobre como o senhor AEthelred captu-rou Lundene, e é um bompoema, mas não menciona meu nome, nem ode Steapa, nem o de Pyrlig, nem o nome dos

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homens que realmente lutaram naquele dia.Seria de pensar, ouvindo aquele poema, que AEthelred veio e que aqueles que os poetaschamam de “os pagãos” simplesmente fugiram.

Mas não foi assim.

Não foi nem um pouco assim.

Digo que os nórdicos vieram num jorro, evieram, mas Sigefrid não era idiota quando setratava de uma luta.

Ele podia ver como poucos de nós bloqueavama porta e sabia que, se pudesse romper minhaparede de escudos rapidamente, todosmorreríamos sob aquele antigo arco romano.

Eu havia retornado a minhas tropas. Meuescudo se sobrepunha aos dos homens àesquerda e à direita, e foi no instante em queme acomodei, pronto para o ataque, que vi o

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que Sigefrid planejava.

Seus homens não haviam simplesmente estadoolhando para a Porta Ludd, e sim sereorganizando — oito guerreiros haviam sidopostos na vanguarda de seu ataque.

Quatro deles levavam lanças pesadas e longasque precisavam de ambas as mãos para seremmantidas na posição.

Aqueles quatro não tinham escudos, mas aolado de cada lanceiro havia um guerreiroenorme armado com escudo e machado, e atrásdeles havia mais homens com escudos, lanças eespadas longas. Eu soube o que estava paraacontecer. Os quatro homens viriam correndo ecravariam as lanças em quatro de nossosescudos. O peso das lanças e a potência doataque iria empurrar quatro de nós para asfileiras de trás, e então os homens dosmachados atacari-am. Não tentariam

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despedaçar nossos escudos, em vez dissoalargariam as aberturas feitas pelos quatrolanceiros, enganchariam e puxariam os escudosde nossa segunda fileira, assim nos expondo àsarmas longas dos homens que seguiam osguerreiros dos machados. Sigefrid tinha apenasuma ambição: romper rapidamente nossaparede, e eu não tinha dúvida de que os oitohomens eram não somente treinados pararomper uma parede de escudos rapidamente,mas já haviam feito isso antes.

— Firmem-se! — gritei, mas era um grito semsentido. Meus homens sabiam o queprecisavam fazer. Tinham de ficar firmes emorrer. Era o que haviam jurado a mim.

E eu soube que morreríamos a não ser que AEthelred viesse. A força do ataque de Sigefridse chocaria contra nossa parede de escudos eeu não tinha lanças suficientemente longas para

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se contrapor aos quatro que vinham.

Só podíamos tentar ficar firmes, mas éramosem menor número e a confiança do inimigo eraóbvia. Estavam gritando insultos, prometendo amorte, e a morte vinha chegando.

— Fecho o portão, senhor? — sugeriu Cerdicnervoso, ao meu lado.

— É tarde demais — respondi. E o ataquechegou.

Os quatro lanceiros gritaram correndo paranós.

Suas armas eram longas como remos e tinhampontas do tamanho de espadas curtas. Elesmantinham as lanças baixas e eu soube queprocuravam acertar a parte mais baixa denossos escudos, fazendo a ponta de cimatombar para a frente para que os homens dos

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machados pudessem enganchá-las com maisfacilidade e assim arrancar nossa defesa numinstante.

E eu soube que daria certo porque os homensque nos atacavam eram os rompedores deparedes de escudos de Sigefrid. Era isso quehaviam treinado para fazer, e que haviam feito,e o castelo dos cadáveres devia estar repleto desuas vítimas. Eles gritavam seu desafioincoerente enquanto corriam para nós. Pude verseus rostos distorcidos.

Oito homens, homens grandes, barbudos e comcota de malha, guerreiros temíveis, e firmeimeu escudo e tossi ligeiramente, esperandoque uma lança batesse na pesada bossa de metaldo centro.

— Empurrem a gente! — gritei para minhasegunda fileira.

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Pude ver que uma das lanças estava apontadapara meu escudo. Se batesse suficientementebaixa, meu escudo seria inclinado para a frentee o homem do machado golpearia para baixocom sua lâmina enorme. A morte numa manhãde primavera, e assim pus minha perna esquerdacontra o escudo, esperando que isso oimpedisse de ser empurrado para trás, massuspeitei de que a lança despedaçaria a madeirade tília de qualquer modo e que a lâmina secravaria em minha virilha.

— Firmes! — gritei de novo.

E as lanças vieram para nós. Vi o lanceirofazendo careta enquanto se preparava para jogaro peso do corpo contra meu escudo. E aqueleestrondo de metal contra madeira estava a umátimo de acontecer quando, em vez disso,Pyrlig atacou.

A princípio eu não soube o que aconteceu.

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Estava esperando o golpe da lança e mepreparando para aparar uma machadada comBafo de Serpente, quando algo caiu do céusobre os atacantes. As lanças longas tombarame suas lâminas se cravaram na estrada, poucospassos à minha frente, e os oito homenscambalearam, tendo perdido toda a coesão e oímpeto. A princípio achei que dois dos homensde Pyrlig haviam pulado da alta fortificaçãoacima da porta, mas então vi que o galês haviajogado dois cadáveres do topo do bastião. Oscorpos, ambos de homens grandes, aindaestavam vestidos com cota de malha e seu pesobateu contra os cabos das lanças, impelindo asarmas para baixo e provocando o caos naprimeira fila do inimigo. Num momento elesestavam enfileirados, ameaçando, e agoraestavam tropeçando em cadáveres.

Agi sem pensar. Bafo de Serpente sibilou umgiro para trás e sua lâmina se chocou contra o

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elmo de um homem com machado, e puxei-a devolta, vendo o sangue aparecer através do metalpartido. Aquele sujeito caiu enquanto eu batiacom a bossa pesada do escudo no rosto de umlanceiro e senti seus ossos se partindo.

— Parede de escudos! — gritei dando umpasso atrás.

Finan havia avançado como eu e tinha matadooutro lanceiro. Agora a estrada estava obstruídapor três cadáveres e pelo menos um homematordoado, e quando recuei para o arco daporta, mas dois corpos foram atira-dos dobastião. Os cadáveres caíam com ruído surdona estrada, ricocheteavam, depois ficavamcomo mais estorvo para o avanço de Sigefrid, efoi então que o vi.

Estava na segunda fileira, uma figura malignacom sua grossa capa de urso. Simplesmenteaquela pele poderia aparar a maioria dos golpes

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de espada, e por baixo ele usava uma brilhantecota de malha. Estava rugindo com seushomens para avançarem, mas a súbita queda decadáveres os havia feito parar.

— Em frente! — berrou Sigefrid, em seguidaabriu caminho até a primeira fila e veio diretopara mim. Estava me olhando e gritando, masnão me lembro do que ele gritava.

O ataque de Sigefrid havia perdido todo oímpeto.

Em vez de nos acertar na corrida, eles seaproximaram caminhando e me lembro de terempurrado o escudo adiante, e do estrondoquando nossos dois escudos se encontraram, edo choque do peso de Sigefrid, mas ele deviater sentido o mesmo porque nenhum de nós sedesequilibrou.

Ele mandou a espada contra mim e senti um

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golpe oco no escudo, e fiz o mesmo com ele.Eu havia embainhado Bafo de Serpente. Ela era,e é, uma bela arma, mas uma espada longa nãotem utilidade quando as paredes de escudo sejuntam como amantes. Tinha desembainhadoFerrão de Vespa, minha espada curta, e tateeicom sua lâmina procurando uma abertura entreos escudos dos inimigos e im-pulsionei-a. Elanão acertou nada.

Sigefrid fez força contra mim. Fizemos forçade volta. Uma fileira de escudos havia sechocado contra outra, e atrás delas, dos doislados, homens empurravam e xingavam,grunhiam e arfavam. Um machado veio na di-

reção de minha cabeça, brandido por umhomem atrás de Sigefrid, mas atrás de mimClapa estava com o escudo levantado e recebeuo golpe, que teve força suficiente para baterseu escudo contra meu elmo. Por um momento

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não pude ver nada, mas balancei a cabeça e avisão clareou.

Outro machado havia enganchado a lâmina naborda superior de meu escudo e o homemtentava puxá-lo para baixo, mas ele estava tãoapertado contra o de Sigefrid que não queria semexer. Sigefrid me xingava, cuspindo emminha cara, e eu o chamei de filho de uma putaque forni-cava com bodes e o golpeei comFerrão de Vespa. Ela havia encontrado algosólido atrás da parede inimiga e abri caminhocom ela, depois empurrei-a com força à frentee abri caminho de novo. Mas até hoje não seique dano a lâmina causou.

Os poetas falam sobre aquelas batalhas, masnenhum poeta que eu conheça já esteve naprimeira fila de uma parede de escudos. Elesalardeiam as proezas de um guerreiro eregistram quantos homens ele matou.

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Luminosa relampejou sua espada, cantam eles,e grande foi o mor-ticínio trazido por sualança, mas nunca foi assim. Não morriammuitos homens quando os escudos se tocavame o empurra-empurra começava, porque nãohavia espaço suficiente para girar uma espada.A verdadeira matança tinha início quando umaparede de escudos se rompia, mas a nossasuportou aquele primeiro ataque. Vi poucacoisa porque meu elmo fora empurrado parabaixo sobre os olhos, mas me lembro da bocaaberta de Sigefrid, toda de dentes podres ecuspe amarelo. Ele estava me xingando e eu oestava xingando, e meu escudo estremecia porcausa dos golpes e homens gritavam. Um estavagritando de dor. Então ouvi outro berro e derepente Sigefrid deu um passo atrás. Toda a suafileira estava se movendo para longe de nós epor um momento pensei que estavam tentandonos provocar para sair do arco da porta, masfiquei onde estava. Não ousava tirar minha

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pequena parede de escudos fora do arco,porque as grandes muralhas de pedra de cadalado protegiam meus flancos. Então houve umterceiro grito e finalmente vi por que oshomens de Sigefrid estavam hesitando. Grandesblocos de pedra caíam do topo da muralha.Evidentemente, Pyrlig não estava sendoatacado, de modo que seus homens arrancavampedaços da alvenaria e jogavam sobre oinimigo, e o homem atrás de Sigefrid foraacertado na cabeça e Sigefrid cambaleou sobreele.

— Fiquem aqui! — gritei para meus homens.Eles estavam tentados a avançar e aproveitar adesorganização do inimigo, mas issosignificaria sair da segurança da porta.

— Fiquem! — berrei com raiva, e elesobedeceram.

Foi Sigefrid quem recuou. Estava raivoso e

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perplexo. Havia esperado uma vitória fácil, masem vez disso perdera homens enquantopermanecíamos incólumes. O

rosto de Cerdic estava coberto de sangue, masele balan-

çou a cabeça quando perguntei se tinha sidomuito ferido.

Então, de trás, ouvi um rugido de vozes e meushomens, apinhados no arco, estremeceram paraa frente quando um inimigo atacou vindo dasruas. Steapa estava lá, e nem me incomodei emme virar para ver a luta, porque sabia que Steapairia agüentar. Podia ouvir o choque de lâminasacima e soube que Pyrlig também estavalutando pela vida.

Sigefrid viu os homens de Pyrlig lutando ededuziu que seria poupado da chuva de pedras,por isso gritou para seus homens se

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prepararem.

— Matem os desgraçados! — berrou. —Matem!

Mas peguem o grandão vivo. Eu quero ele. —Em seguida girou a espada apontando para mim,e me lembrei do nome de sua arma: Espalha-Medo. — Você é meu! — gritou para mim. —E ainda tenho de crucificar um homem! E ohomem é você! — Ele riu, embainhou Espalha-Medo e pegou um machado de guerra, de cabocomprido, com um de seus seguidores.Ofereceu-me um riso malévolo, cobriu o corpocom seu escudo decorado com um corvo egritou para seus homens avançarem. — Matemtodos!

Todos, menos o desgraçado grandão! Matem!

Mas desta vez, em lugar de empurrar de pertopara nos pressionar contra o portão como uma

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rolha sendo forçada por um gargalo de garrafa,ele fez seus homens pararem à distância deuma espada e tentar puxar nossos escudos comseus machados de cabo comprido. E assim otrabalho se tornou desesperador.

Um machado é uma arma maligna numa lutaentre paredes de escudos. Se ele não seengancha num escudo para puxá-lo para baixo,ainda pode despedaçar as tábuas.

Senti os golpes de Sigefrid batendo no escudo,vi a lâmina do machado aparecer numa fenda damadeira de tília e tudo o que podia fazer erasuportar o assalto. Não ousava avançar porqueisso romperia nossa parede, e se toda a nossaparede avançasse, os homens nos flancosficariam expostos e morreríamos.

Uma lança estava cutucando meus tornozelos.Um segundo machado bateu no escudo. Aolongo de toda a nossa pequena fileira os golpes

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choviam, os escudos estavam se partindo e amorte espreitava. Eu não tinha machado parausar, porque nunca gostei desse tipo de arma,mas reconhecia como era letal. Mantive Ferrãode Vespa na mão, esperando que Sigefridchegasse perto e eu pudesse passar a lâminapor seu escudo e cravar fundo em sua barrigagrande, mas Sigefrid se encontrava à distânciade um machado, e meu escudo estava partido, eeu sabia que logo um golpe iria arrebentar meuantebraço, trans-formando-o numa massa inútilde sangue e osso despeda-

çado.

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Arrisquei um passo adiante. Fiz isso de repente,de modo que o próximo golpe de Sigefrid sedesperdiçou, mas o cabo do machado roçou emmeu ombro esquerdo.

Ele tinha de baixar o escudo para empurrar omachado, e estoquei com Ferrão de Vespacruzando seu corpo. A lâmina bateu fortecontra seu ombro direito, mas a malha caraagüentou. Ele se encolheu. Fiz um movimentode corte com a espada contra seu rosto, masele chocou o escudo contra o meu, meimpulsionando para trás, e um instante depoisseu machado bateu de novo contra meu escudo.

Então ele fez uma careta, todos os dentespodres, olhos furiosos e barba eriçada.

— Quero você vivo — disse. Em seguida girouo machado de lado e eu consegui puxar oescudo para dentro apenas o suficiente para quea lâmina batesse na bossa.

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— Vivo — repetiu ele —, e você terá umamorte digna de um homem que viola ojuramento.

— Não fiz juramento a você — disse eu.

— Mas vai morrer como se tivesse feito —disse ele —, com as mãos e os pés pregadosnuma cruz, e seus gritos não vão parar até queeu me canse. — Ele fez outra careta enquantorecuava o machado para um último golpe capazde despedaçar escudos. — E vou esfolar seucadáver, Uhtred, o Traidor, e cobrir meuescudo com sua pele bronzeada. Vou mijar emsua garganta morta e dançar em seus ossos. —Ele girou o machado e o céu caiu.

Todo um trecho de alvenaria pesada havia sidosolta da muralha e bateu contra as fileiras deSigefrid. Havia poeira, gritos e homenspartidos. Seis guerreiros estavam no chão ousegurando ossos despedaçados. Todos estavam

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atrás de Sigefrid, e ele se virou, atônito. Enesse momento Osferth, o filho bastardo deAlfredo, pulou de cima da porta.

Ele deveria ter quebrado os tornozelos comaquele salto desesperado, mas de algum modosobreviveu. Pousou em meio às pedrasquebradas e os corpos esmagados do que haviasido a segunda fileira de Sigefrid, e gritoucomo uma garota enquanto girava a espadacontra a cabe-

ça do enorme norueguês. A lâmina acertou oelmo de Sigefrid. Não rompeu o metal, masdeve ter atordoado Sigefrid por um instante. Euhavia rompido minha parede de escudos ao dardois passos à frente, bati com o escudo partidono sujeito atordoado e cravei Ferrão de Vespaem sua coxa esquerda. Desta vez ela rompeu oselos de sua malha e eu torci-a, rasgandomúsculos. Sigefrid cambaleou e foi então que

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Osferth, cujo rosto era uma imagem de puroterror, cravou sua espada na parte inferior dascostas do norueguês. Não creio que Osferthsoubesse o que estava fazendo. Havia se mijadode medo, estava atordoado, confuso, o inimigoia recuperando os sentidos e vinha para matá-lo, e Osferth simplesmente cravou a espadacom desespero suficiente para furar a capa depele de urso, a cota de malha e em seguida opróprio Sigefrid.

O grandalhão gritou de agonia. Finan estavajunto de mim, dançando como sempre dançavaem batalha, e enganou o homem ao lado deSigefrid com uma estocada que era uma finta,girou a espada de lado, pelo rosto do sujeito,depois gritou para Osferth vir para nós.

Mas o filho de Alfredo estava imobilizado peloterror. Não teria vivido mais do que uminstante se eu não tivesse jogado fora os restos

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de meu escudo despedaçado, estendido a mãopara além de Sigefrid, que berrava, e puxadoOsferth. Empurrei-o para a segunda fileira e,sem escudo para me proteger, esperei o ataqueseguinte.

— Meu Deus, obrigado, obrigado, senhor Deus—estava dizendo Osferth. Era patético.

Sigefrid estava de joelhos, gemendo. Doishomens o arrastaram para longe, e vi Erikolhando pasmo para o irmão ferido.

— Venha e morra! gritei para ele, e Erik reagiuà

minha raiva com um olhar triste. Assentiu paramim, como se reconhecesse que o costume meobrigava a ameaçá-lo, mas que a ameaça nãodiminuía sua consideração por mim. — Venha!— aticei. — Venha e conheça Bafo deSerpente.

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— No devido tempo, senhor Uhtred — gritouErik de volta, e sua cortesia era uma censura ameu rosnado.

Em seguida parou junto ao irmão ferido, e osofrimento de Sigefrid convencera o inimigo ahesitar antes de nos atacar de novo. Hesitou portempo suficiente para eu me virar e ver queSteapa havia vencido o ataque feito por dentroda cidade.

— O que está acontecendo no bastião? —perguntei a Osferth. Ele me encarou com puroterror.

— Obrigado, senhor Jesus — gaguejou.

Dei um soco com o punho direito em suabarriga.

— O que está acontecendo lá em cima! —gritei.

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Ele me olhou boquiaberto, gaguejou de novo,depois conseguiu falar com coerência.

— Nada, senhor. Os pagãos não conseguemsubir a escada.

Virei-me de novo para encarar o inimigo.Pyrlig estava sustentando o topo do bastião,Steapa segurava o lado interno da porta, logo,eu precisava me agüentar ali.

Toquei o amuleto do martelo, passei a mãoesquerda no punho de Bafo de Serpente eagradeci aos deuses por ainda estar vivo.

— Dê-me seu escudo — falei a Osferth.Arranquei o escudo dele, passei o braçomachucado pelas alças de couro e vi que oinimigo estava formando uma nova linha.

— Você viu os homens de A Ethelred? —perguntei a Osferth.

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— A Ethelred? — respondeu ele, como senunca tivesse escutado o nome.

— Meu primo! — rosnei. — Você o viu?

— Ah, sim, senhor, ele está vindo. — Osferthdeu a notícia como se fosse absolutamente semimportância, como se estivesse dizendo que viuchuva ao longe.

Arrisquei-me a me virar para encará-lo.

— Ele está vindo?

— Sim, senhor.

E estava mesmo, e veio. Nossa luta acaboumais ou menos ali, porque A Ethelred não haviaabandonado o plano de atacar a cidade, e agoratrouxe seus homens atravessando o Fleot paragolpear a retaguarda do inimigo, que fugiu parao norte na direção da porta seguinte. Nós o

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perseguimos por um tempo. DesembainheiBafo de Serpente porque era uma espadamelhor para uma luta aberta, e peguei umdinamarquês que era gordo demais para cor-

rer depressa. Ele se virou, deu uma estocadacom uma lança e eu desviei o golpe com meuescudo emprestado, e o mandei para o castelode cadáveres com uma estocada.

Os homens de A Ethelred estavam uivandoenquanto lutavam encosta acima, e eu achei queeles poderiam facilmente confundir meushomens com o inimigo, por isso chameiminhas tropas para retornar à Porta Ludd.Agora o arco estava vazio, mas de cada ladohavia cadáveres ensangüentados e escudosquebrados. O sol estava mais alto, mas asnuvens continuavam fazendo-o parecer umamarelo sujo por trás de seu véu.

Alguns homens de Sigefrid morreram do lado

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de fora das muralhas, e tamanho foi seu pânicoque alguns até mesmo foram trucidados comenxadas afiadas. A maioria conseguiu passarpela porta seguinte entrando na velha cidade, eali nós os caçamos.

Foi uma caçada selvagem, cheia de uivos. Astropas de Sigefrid, os guerreiros que nãohaviam investido para fora das muralhas,demoraram a descobrir sua derrota.

Permaneceram nas fortificações até que virama morte chegando, e então fugiram para as ruase os becos já atulhados de homens, mulheres ecrianças que fugiam do ataque saxão. Desceramcorrendo as colinas da cidade, indo para osbarcos amarrados no cais abaixo da ponte.Alguns, os idiotas, tentaram salvar seuspertences, e isso foi fatal porque, atrapalhadospelas posses, foram apanhados nas ruas emortos. Uma jovem gritou enquanto era

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arrastada para uma casa por um lanceiromércio. Havia homens mortos nas sarjetas,farejados pelos cães. Algumas casasmostravam uma cruz, denotando que alimoravam cristãos, mas a proteção nãosignificava nada se houvesse uma jovem bonitalá dentro. Um padre levantou alto um crucifi-

xo de madeira do lado de fora de uma portabaixa e gritou que havia mulheres cristãsabrigadas em sua pequena igreja, mas o padrefoi morto por um machado e os gritoscomeçaram. Uns vinte nórdicos foramapanhados no palácio onde guardavam otesouro reunido por Sigefrid e Erik, e todosmorreram ali, o sangue escorrendo entre ospequenos ladrilhos do piso de mosaico dosalão romano.

Foi o fyrd que provocou a maior destruição. Astropas domésticas tinham disciplina e se

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mantinham juntas, e foram essas tropastreinadas que expulsaram os nórdicos deLundene. Eu fiquei na rua perto da muralha dorio, a rua por onde havíamos passado ao sair denossos navios meio inundados, e arrebanhamosos fugitivos como se fossem ovelhas fugindode lobos. O padre Pyrlig havia prendido seuestandarte da cruz a uma lança dinamarquesa ebalançava-a acima de nossas cabeças paramostrar aos homens de A Ethelred que éramosamigos. Gritos e uivos soavam nas ruas maisaltas. Passei por cima de uma crian-

ça morta, com os cachos dourados sujos dosangue de seu pai, que havia morrido ao ladodela. O último ato dele fora segurar o braço dafilha, e sua mão morta continuava enrolada nocotovelo da menina. Pensei em minha filha,Stiorra.

— Senhor! — gritou Sihtric. — Senhor! — Ele

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estava apontando com a espada.

Tinha visto que um grande grupo de nórdicos,pre-sumivelmente isolados quando recuavampara os navios, havia se refugiado na pontequebrada. A extremidade norte da ponte eraguardada por um bastião romano através doqual passava um arco, mas o este havia perdidohá

muito o portão. Em vez disso, a passagem paraa pista de madeira da ponte estava bloqueadapor uma parede de escudos. Estavam na mesmaposição que eu havia assumido na Porta Ludd,com os flancos protegidos pela alta alvenaria.Os escudos preenchiam o arco, e pude ver pelomenos seis fileiras de homens atrás da linha defrente, feita de escudos redondos sobrepostos.

Steapa soltou um grunhido baixo e levantou seumachado.

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— Não — disse eu, pondo a mão em seuenorme braço que segurava o escudo.

— Vamos fazer uma presa de javali — disse eleem tom vingativo —, matar os desgraçados.Matar todos.

— Não — repeti. Uma presa de javali era umacunha de homens que se chocaria contra umaparede de escudos como uma ponta de lançahumana, mas nenhuma presa de javali romperiaaquela parede de nórdicos. Estavam muitoapinhados na passagem em arco e estavamdesesperados, e homens desesperados lutamfanaticamente pela chance de viver. No fimmorreriam, verdade, mas muitos de meushomens sucumbiriam com eles.

— Fiquem aqui — ordenei a meus homens.Entreguei meu escudo emprestado a Sihtric,depois lhe dei meu elmo. Embainhei Bafo deSerpente. Pyrlig me imitou, tirando o elmo. —

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Você não precisa ir — disse eu.

— E por que não iria? — perguntou ele,sorrindo.

Em seguida entregou seu estandarteimprovisado a Rypere, pousou o escudo nochão. E como eu estava feliz com a companhiado galês, nós dois fomos até o portão da ponte.

— Sou Uhtred de Bebbanburg — anunciei aoshomens de rostos duros que olhavam por cimadas bordas dos escudos —, e se vocêsquiserem festejar no castelo de cadáveres deOdin esta noite, estou disposto a mandá-los.

Atrás de mim a cidade gritava, a fumaça pairavadensa pelo céu. Os nove homens na primeirafila do inimigo me olhavam, mas nenhum falou.

— Mas se querem provar por mais tempo asalegrias deste mundo — continuei —, falem

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comigo.

— Nós servimos a nosso earl — disse final-mente um dos homens.

— E ele é?

— Sigefrid Thurgilson — disse o homem.

— Que lutou bem — respondi. Eu estiveragritando insultos contra Sigefrid havia menosde duas horas, mas agora era o momento de umdiscurso mais suave.

Momento de arranjar para que o inimigocedesse e assim salvar a vida de meus homens.— O earl Sigefrid vive? —perguntei.

— Vive — disse o homem secamente,balançando a cabeça para indicar que Sigefridestava em algum lugar atrás dele, na ponte.

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— Então lhe diga que Uhtred de Bebbanburgquer falar com ele, para decidir se ele vive ounão.

Essa escolha não era minha. As fiandeiras jáhaviam tomado a decisão, e eu não passava deseu instrumento. O

homem que havia falado comigo gritou amensagem para os homens atrás, na ponte, e euesperei. Pyrlig estava rezando, mas nãoperguntei se estaria implorando misericórdiapara as pessoas que gritavam atrás de nós oumorte para os homens à nossa frente.

Então a parede de escudo apertada no arco seseparou enquanto homens faziam umapassagem pelo centro da pista.

— O earl Erik falará com o senhor — disse ohomem. E Pyrlig e eu fomos encontrar oinimigo.

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SEIS

— Meu irmão diz que devo matar você —cumprimentou-me Erik. O mais novo dosirmãos Thurgilson estivera esperando por mimna ponte e, ainda que suas palavras contivessemameaça, não havia nenhuma no rosto. Ele estavaplácido, calmo e aparentemente despreocupadocom a situação difícil. Seu cabelo preto estavaenfiado sob um elmo simples e a bela cota demalha tinha manchas de sangue. Havia um rasgona bainha da malha, e achei que aquilo marcavao local em que uma lança havia passado sob seuescudo, mas ele evidentemente não estavamachucado. Porém, Sigefrid havia se feridoterrivelmente.

Eu podia vê-lo na ponte, deitado em sua capa depele de urso, retorcendo-se com espasmos dedor e recebendo cuidados de dois homens.

— Seu irmão acha que a morte é a resposta

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para tudo — disse eu, ainda olhando paraSigefrid.

— Então, nesse aspecto, ele é como você —respondeu Erik com um sorriso triste —, sevocê é o que os homens dizem.

— O que eles dizem sobre mim? — perguntei,curioso.

— Que mata como um nórdico. — Erik sevirou para olhar rio abaixo. Uma pequena frotade barcos dinamarqueses e norueguesesconseguira escapar dos molhes, mas algunsremavam de volta rio acima, numa tentativa desalvar os fugitivos que se apinhavam namargem, porém os saxões já estavam em meioàquela multidão condenada.

Uma luta furiosa era travada no cais, ondehomens golpeavam uns aos outros, irados.Alguns, para escapar da fúria, saltavam no rio.

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— Algumas vezes acho que a morte é overdadeiro sentido da vida — disse Erik comtristeza. —

Nós cultuamos a morte, nós a distribuímos,acreditamos que ela leva ao júbilo.

— Eu não cultuo a morte — respondi.

— Os cristãos cultuam — observou Erik,olhando para Pyrlig, cujo peito coberto pelamalha mostrava a cruz de madeira.

— Não — disse Pyrlig.

— Então por que a imagem de um morto? —perguntou Erik.

— Nosso senhor Jesus Cristo voltou dosmortos

— disse Pyrlig energicamente —, ele dominou

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a morte!

Morreu para nos dar a vida e recuperou aprópria vida ao morrer. A morte, senhor, éapenas um portão para mais vida.

— Então por que tememos a morte? —perguntou Erik numa voz sugerindo que nãoesperava resposta. Virou-se para olhar o caosrio abaixo. Os dois navios que tínhamos usadopara atravessar a fenda na ponte haviam sidotomados por homens em fuga, e um daquelesnavios tinha afundado a metros do cais, ondeagora estava em-borcado, meio submerso.Homens haviam caído na água em que muitosdeviam ter se afogado, mas outros tinhamconseguido chegar à margem lamacenta ondeestavam sendo mortos por alegres homens comlanças, espadas, machados e enxadas. Ossobreviventes se agarravam aos destroços,tentando se abrigar de um punhado de arqueiros

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saxões cujas longas flechas de caça secravavam nas tábuas do navio. Havia mortedemais naquela manhã. As ruas da cidadepartida fediam a sangue e estavam cheias comas mulheres que uivavam sob o céu amarelomanchado de fumaça. — Nós confiamos emvocê, senhor Uhtred — disse Erik em tomchapado, ainda olhando rio abaixo. — Você irianos trazer Ragnar, seria rei na Mércia e nosdaria toda a ilha da Britânia.

— O morto mentiu — disse eu. — Bjornmentiu.

Erik se virou de volta para mim, com o rostosério.

— Eu disse que não deveríamos tentar enganá-lo, mas o earl Haesten insistiu. — Erik deu deombros, depois olhou para o padre Pyrlig,notando a cota de malha e os punhos gastos desuas espadas. — Mas você também nos

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enganou, senhor Uhtred, porque acho que sabiaque esse homem não era padre, e simguerreiro.

— Ele é as duas coisas.

Erik fez uma careta, talvez se lembrando dahabilidade com que Pyrlig havia derrotado seuirmão na arena.

— Você mentiu — disse ele com tristeza — enós mentimos, mas ainda poderíamos tertomado Wessex juntos. E agora? — Ele sevirou e olhou para a pista da ponte.

— Agora não sei se meu irmão vai viver oumorrer. —

Fez uma careta. Sigefrid estava imóvel e porum momento pensei que ele já poderia ter idopara o castelo dos cadáveres, mas então elegirou devagar a cabeça e me lançou um olhar

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maligno.

— Vou rezar por ele — disse Pyrlig.

— Sim — disse Erik simplesmente. — Porfavor.

— E o que devo fazer? — perguntei.

— Você? — Erik franziu a testa, perplexo comminha pergunta.

— Deixo você viver, Erik Thurgilson? Oumato?

— Vai achar difícil nos matar.

— Mas matarei, se for preciso — respondi.Essa era a verdadeira negociação, naquelas duasfrases. A verdade era que Erik e seus homensestavam presos e condenados, mas para matá-los teríamos de abrir caminho através de uma

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feroz parede de escudos, depois derrubarhomens desesperados cujo único pensamentoseria levar muitos de nós com eles, para ooutro mundo. Eu perderia vinte homens oumais, e outros de minhas tropas domésticasficariam aleijados pelo resto da vida. Era umpreço que eu não queria pagar, e Erik sabiadisso, mas também sabia que o preço seriapago, caso ele não fosse razoável.

— Haesten está aqui? — perguntei olhandopara a ponte quebrada.

Erik balançou a cabeça.

— Eu o vi ir embora — disse assentindo rioabaixo.

— Que pena, porque ele violou um juramentofeito a mim. Se estivesse aqui eu deixaria todosvocês irem em troca da vida dele.

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Erik me encarou durante alguns instantes,avaliando se eu teria falado a verdade.

— Então me mate, em vez de Haesten — dissefinalmente —, e deixe todos esses outrospartirem.

— Você não violou nenhum juramento a mim,portanto não me deve a vida.

— Quero que estes homens vivam — disseErik com paixão súbita —, e minha vida é umpreço pequeno a pagar pela deles. Eu pagarei,senhor Uhtred, e em troca o senhor dá a vida demeus homens e lhes dá o Domador de Ondas.

— Ele apontou para o navio do irmão, aindaamarrado na pequena doca onde havíamosdesembarcado.

— É um preço justo, padre? — perguntei aPyrlig.

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— Quem pode estabelecer o valor de uma vida?—perguntou Pyrlig, em troca.

— Eu posso — respondi com aspereza, e mevirei de novo para Erik.

— O preço é o seguinte. Vocês deixarão nestaponte cada arma que carregam. Vão deixar seusescudos. Vão deixar suas cotas de malha e oselmos. Vão deixar os braceletes, as correntes,os broches, as moedas e as fivelas.

Vão deixar tudo de valor, Erik Thurgilson, eentão podem pegar um navio que eu optar porlhes dar, e podem ir.

— Um navio que você escolher — disse Erik.

— É.

Ele deu um sorriso triste.

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— Eu fiz o Domador de Ondas para meu irmão.

Primeiro encontrei a quilha na floresta. Era umcarvalho com tronco reto como um remo, e eumesmo o cortei.

Usamos mais 11 carvalhos, senhor Uhtred, paraas costelas e as cruzetas, para a proa, as tábuas.A calafetagem foi com pêlos de sete ursos quematei com minha própria lança, e fiz pregoscom minha própria forja. Minha mãe fez a vela,eu teci as cordas e o dediquei a Tor matandoum cavalo que eu amava e derramando o sanguena proa.

Ele levou meu irmão e me conduziu através detempestades, névoa e gelo. Ele — Erik se viroupara o Domador de Ondas —, ele é lindo. Euamo esse navio.

— Mais do que ama sua vida?

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Ele pensou por um instante, depois balançou acabeça.

— Não.

— Então será um navio de minha escolha —falei com teimosia, e isso poderia ter acabadocom a negocia-

ção, mas houve uma agitação sob o arco onde aparede de escudos dos nórdicos ainda encaravaminhas tropas.

A Ethelred havia chegado à ponte e estavaexigindo passar pelo portão. Erik me lançouum olhar interrogativo quando a notícia foitrazida, e eu dei de ombros.

— Ele comanda aqui — falei.

— Então precisarei da permissão dele para irembora?

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— Precisará.

Erik mandou avisar que a parede de escudosdeveria deixar A Ethelred entrar na pista, e meuprimo caminhou pela ponte com sua petulânciacostumeira. Aldhelm, o comandante de suaguarda, era seu único companheiro.

A Ethelred ignorou Erik, e em vez disso meencarou com expressão beligerante.

— Você presume negociar em meu nome?

— Não — respondi.

— Então o que está fazendo aqui?

— Negociando em meu nome. Este é o earlErik Thurgilson — apresentei o norueguês eminglês, mas agora mudei para dinamarquês. — Eeste — disse a Erik — é

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o ealdorman da Mércia, o senhor A Ethelred.

Erik respondeu à apresentação oferecendo a AEthelred uma pequena reverência, mas acortesia foi desperdiçada. A Ethelred olhou aponte ao redor, contando os homens quehaviam se refugiado ali.

— Não são muitos — disse bruscamente. —Todos devem morrer.

— Eu já lhes ofereci suas vidas — informei. AEthelred se virou para mim.

— Nós tínhamos ordens de capturar Sigefrid,Erik e Haesten, e entregá-los como cativos aorei A Ethelstan

— disse ele em tom cortante. — Vi os olhosde Erik se arregalarem ligeiramente. Eupresumia que ele não falasse inglês, mas agorapercebi que devia ter aprendido o suficiente

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para entender as palavras de A Ethelred. — Estádesobedecendo meu sogro? — perguntou AEthelred quando não respondi.

Mantive a cabeça no lugar.

— Você pode lutar com eles aqui — expliqueicom paciência — e vai perder muitos homensbons. Demais.

Pode prendê-los aqui, mas com a água alta umnavio vai remar até a ponte e resgatá-los. —Isso seria difícil de fazer, mas eu haviaaprendido a jamais subestimar a capacidade denavegação dos nórdicos. — Ou pode livrarLundene da presença deles — falei —, e é issoque eu opto por fazer. — Aldhelm deu umrisinho, dando a entender que eu havia feito aopção do covarde. Olhei-o e ele desafiou meuolhar, recusando-se a virar o rosto.

— Mate-os, senhor — disse Aldhelm a A

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Ethelred, mas continuou me encarando.

— Se querem lutar contra eles — falei —, oprivilégio é seu, mas eu não terei nada a vercom isso.

Por um momento, A Ethelred e Aldhelm sesenti-ram tentados a me acusar de covardia.Dava para ver o pensamento em seus rostos,mas eles também podiam ver algo em meurosto e deixaram o pensamento sem ser dito.

— Você sempre amou os pagãos — zombou AEthelred, em vez disso.

— Eu os amei tanto — respondi com raiva —que passei com dois navios por aquela fenda nonegrume da noite — apontei para onde oscotocos serrilhados da ponte acabavam. —Trouxe homens para dentro da cidade, primo, ecapturei a Porta Ludd, e travei uma batalha na-

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quela ponte como nunca mais desejo travar denovo, e naquela luta matei pagãos para você. Esim, eu os amo.

A Ethelred olhou para a fenda. Os borrifos deágua apareciam continuamente ali, lançadospelo borbulhar da água caindo pela aberturacom tamanha força que a antiga pista demadeira tremia e o ar se enchia do barulho dorio.

— Você não tinha ordens de vir por navio —disse A Ethelred indignado, e eu soube que elese ressentia de meus atos porque poderiamdiminuir a glória que ele esperava obter com acaptura de Lundene.

— Eu tinha ordens de lhe dar a cidade —retruquei

—, e aí está! — Sinalizei para a fumaçapairando sobre o morro cheio de gritos. — Seu

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presente de casamento —falei, zombando delecom uma reverência.

— E não somente a cidade, senhor — disseAldhelm a A Ethelred —, mas tudo o que hánela.

— Tudo? — perguntou A Ethelred, como senão acreditasse em sua sorte.

— Tudo — disse Aldhelm em tom lupino.

— E se estiver grato por isso — exclameiazedo —, agradeça à sua esposa.

A Ethelred girou bruscamente para me encarar.Algo em minhas palavras o haviam deixadoatônito, porque parecia que eu lhe desferira umsoco. Havia incredulidade em seu rosto largo, eraiva, e por um momento ele ficou incapaz defalar.

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— Minha esposa? — perguntou final-mente.

— Se não fosse A Ethelflaed — expliquei —,não poderíamos ter tomado a cidade. Ontem ànoite ela me deu homens.

— Você a viu ontem à noite? — perguntou ele,incrédulo. Olhei-o, imaginando se ele estarialouco.

— Claro que a vi ontem à noite! Voltamos àilha para pegar os navios! Ela estava lá! Elaameaçou envergo-nhar seus homens se nãoviessem comigo.

— E ela fez o senhor Uhtred lhe prestarjuramento

— acrescentou Pyrlig —, um juramento dedefender sua Mércia, senhor A Ethelred.

A Ethelred ignorou o galês. Ainda estava me

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olhando, mas agora com expressão de ódio.

— Você entrou em meu navio? — ele malpodia falar, de tanto desprezo e ódio. — E viuminha esposa?

— Ela desembarcou com o padre Pyrlig —respondi.

Com isso eu não queria dizer nada especial.Meramente havia informado o que acontecera eesperava que A Ethelred admirasse a esposapela iniciativa, mas no momento em que falei vique havia cometido um erro.

Por um instante achei que A Ethelred iria mebater, tão violenta era a fúria súbita em seurosto largo, mas então ele se controlou, virou-se e foi andando. Aldhelm correu atrás dele econseguiu conter a pressa de meu primo osuficiente para falar com ele. Vi A Ethelredfazer um gesto furioso, descuidado, depois

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Aldhelm se virou de novo para mim.

— Você deve fazer o que achar melhor —gritou, depois seguiu seu senhor passando peloarco onde a parede de escudos dos nórdicosabriu passagem para eles.

— Sempre faço — respondi a ninguém emparticular.

— Faz o quê? — perguntou o padre Pyrlig,olhando para o arco onde meu primo haviadesaparecido subitamente.

— O que acho melhor — respondi, depoisfranzi a testa. — O que aconteceu ali? —perguntei a Pyrlig.

— Ele não gosta que outros homens falem coma esposa — disse o galês. — Notei isso quandoestava no navio com eles, descendo o Temes.Ele tem ciúme.

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— Mas eu conheço A Ethelflaed desde que elanas-ceu! — exclamei.

— Ele teme que você a conheça bem demais, eisso o deixa louco.

— Mas é idiotice! — falei com raiva.

— É ciúme, e todo ciúme é idiota.

Erik também havia observado A Ethelred seafastando e estava tão confuso quanto eu.

— Ele é seu comandante? — perguntou onorueguês.

— É meu primo — respondi com amargura.

— E é seu comandante? — perguntou ele denovo.

— O senhor A Ethelred ordena — explicouPyrlig

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— e o senhor Uhtred desobedece.

Erik sorriu disso.

— Então, senhor Uhtred, temos um acordo? —

Ele fez a pergunta em inglês, hesitandoligeiramente com as palavras.

— Seu inglês é bom — falei, surpreso. Elesorriu.

— Uma escrava saxã me ensinou.

— Espero que tenha sido bonita. E sim, temosum acordo, mas com uma mudança.

Erik se eriçou, mas permaneceu cortês.

— Pode levar o Domador de Ondas — disseeu.

Achei que Erik iria me beijar. Por um instante

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não acreditou em minhas palavras, depois viuque eu era sincero e deu um sorriso largo.

— Senhor Uhtred — começou.

— Pegue-o — interrompi, não querendo suagratidão. — Simplesmente pegue-o e váembora!

As palavras de Aldhelm é que haviam mudadomeu pensamento. Ele estivera certo; tudo nacidade agora pertencia à Mércia, e A Ethelredera o governante da Mércia, e meu primo tinhauma luxúria por tudo o que fosse belo e, sedescobrisse que eu desejava o Domador deOndas, o que era verdade, iria se certificar detirá-lo de mim. Assim mantive o navio longe deseu alcance, devolvendo-o aos irmãosThurgilson.

Sigefrid foi levado a seu navio. Os nórdicos,despidos das armas e dos objetos valiosos,

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foram guardados por meus homens enquantoiam até o Domador de Ondas.

Demorou muito tempo, mas finalmenteestavam todos a bordo e se afastaram do cais, eeu fiquei olhando enquanto eles remavam rioabaixo em direção às pequenas névoas queainda pairavam acima da foz do rio.

E em algum lugar em Wessex o primeiro cucopiou.

Escrevi uma carta a Alfredo. Sempre odieiescrever, e faz anos desde que usei uma penapela última vez. Agora os padres de minhamulher rabiscam as cartas para mim, mas elessabem que sei ler o que escrevem, portanto têmo cuidado de escrever o que dito. Mas na noiteda queda de Lundene escrevi de próprio punhoa Alfredo. “Lundene é

sua, senhor rei, e vou ficar aqui para reconstruir

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as muralhas”.

Escrever até mesmo essa quantidade exauriuminha paciência. A pena arranhava, opergaminho era irregular e a tinta, que eu haviaencontrado num baú de madeira contendosaque evidentemente roubado de um mosteiro,cuspia gotas no pergaminho.

— Agora chame o padre Pyrlig e Osferth —ordenei a Sihtric.

— Senhor — disse Sihtric, nervoso.

— Eu sei — respondi impaciente —, você querse casar com sua puta, Mas primeiro chame opadre Pyrlig e Osferth. A puta pode esperar.

Pyrlig chegou um instante depois e euempurrei a carta para ele, por cima da mesa.

— Quero que vá a Alfredo e lhe dê isso, e

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conte o que aconteceu aqui.

Pyrlig leu minha mensagem e eu vi um pequenosorriso brilhar em seu rosto feio, um sorrisoque desapareceu rapidamente para que eu nãome ofendesse com sua opinião sobre minhaletra. Ele não falou nada sobre minha curtamensagem, mas olhou ao redor com surpresaenquanto Sihtric trazia Osferth para a sala.

— Estou mandando o irmão Osferth com você—expliquei ao galês. Osferth se enrijeceu.Odiava ser chamado de irmão.

— Quero ficar aqui, senhor — disse ele.

— O rei quer você em Wintanceaster —respondi sem dar importância —, e nósobedecemos ao rei. — Peguei a carta de voltacom Pyrlig, mergulhei a pena na tinta que haviase desbotado até um marrom ferrugem e acres-centei mais palavras. “Sigefrid”, escrevi

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laboriosamente,

“foi derrotado por Osferth, que eu gostaria demanter em minha guarda doméstica”.

Por que escrevi isso? Eu não gostava deOsferth, assim como não gostava de seu pai,mas ele havia saltado do bastião e demonstradocoragem. Coragem idiota, talvez, mas mesmoassim era coragem, e se Osferth não tivessesaltado, Lundene poderia estar em mãosnorueguesas ou dinamarquesas até hoje.Osferth havia merecido seu lugar na parede deescudos, mesmo que suas perspectivas desobreviver ali ainda fossem desesperadamentepequenas.

— O padre Pyrlig — falei a Osferth enquantosoprava a tinta — contará ao rei suas açõeshoje, e esta carta pede que você seja devolvidoa mim. Mas você deve deixar essa decisão paraAlfredo.

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— Ele vai recusar — disse Osferth,carrancudo.

— O padre Pyrlig vai convencê-lo. — O galêslevantou uma sobrancelha numa perguntasilenciosa e eu fiz um gesto minúsculo com acabeça para mostrar que falava a verdade. Dei acarta a Sihtric e fiquei olhando-o dobrar opergaminho, depois lacrar com cera. Aperteimeu sinete da cabeça do lobo no lacre, depoisentreguei a carta a Pyrlig. — Conte a Alfredo averdade do que aconteceu hoje aqui, porque eleouvirá uma versão diferente de meu primo. Eviaje rápido!

Pyrlig sorriu.

— Quer que eu chegue ao rei antes domensageiro de seu primo?

— Quero.

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Essa era uma lição que eu havia aprendido: aprimeira notícia geralmente é a versãoacreditada. Eu não tinha dúvida de que AEthelred mandaria uma mensagem triunfante aseu sogro, e não tinha dúvida de que, em suanarrativa, nossa participação na vitória seriadiminuída até

o nada. O padre Pyrlig garantiria que Alfredoouvisse a verdade, mas se o rei acreditaria noque ouvisse era outra questão.

Pyrlig e Osferth partiram antes do amanhecer,usando dois cavalos dos muitos que havíamoscapturado em Lundene. Fiz o circuito dasmuralhas enquanto o sol nascia, observando oslugares que ainda precisavam de conserto.Meus homens montavam guarda. A maioria erado fyrd de Berrocscire, que havia lutado sob ocomando de A Ethelred no dia anterior, e suaempolgação diante da vitória aparentemente

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fácil ainda não havia acabado.

Alguns homens de A Ethelred também estavampostados nas muralhas, mas a maioria serecuperava da cerveja e do hidromel que haviabebido durante a noite.

Numa das portas do norte, que dava para colinasverdes cobertas de névoa, encontrei Egbert, ovelho que havia cedido às exigências de AEthelflaed e me dera seus melhores homens.Recompensei-o com o presente de umbracelete de prata que eu havia tirado de um dosmuitos cadáveres. Aqueles mortos aindaestavam desenterrados e, ao amanhecer, corvose milhafres se refestelavam.

— Obrigado — disse eu.

— Eu deveria ter confiado no senhor — disseele, sem jeito.

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— Você confiou em mim. Ele deu de ombros.

— Por causa dela, sim.

— A Ethelflaed está aqui?

— Ainda está na ilha.

— Achei que você estava guardando-a.

— Estava — disse Egbert em tom opaco —,mas o senhor A Ethelred mandou me substituirontem à noite.

— Mandou substituir você? — perguntei,depois vi que sua corrente de prata, o símbolode que ele comandava homens, lhe fora tirada.

Ele deu de ombros, como quisesse dizer quenão entendia a decisão.

— Ordenou que eu viesse para cá — disse ele—, mas quando cheguei ele não quis me ver.

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Estava doente.

— Alguma coisa séria, espero.

Um meio sorriso surgiu e morreu no rosto deEgbert.

— Ele estava vomitando, pelo que medisseram.

Provavelmente não era nada.

Meu primo havia tomado o palácio no topo dacolina de Lundene como quartel-general,enquanto eu ficava na casa romana junto ao rio.Gostei disso. Sempre apreciei construçõesromanas porque suas paredes possuem a grandevirtude de manter o vento, a chuva e a neve dolado de fora. Aquela casa era grande. Entrava-sepor um arco que vinha da rua para um pátiorodeado por uma varanda com colunas. Em trêslados do pátio havia pequenos cômodos que

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deviam ter sido usados por serviçais ou comodepósito. Um deles era uma cozinha e tinha umforno tão grande que dava para assar pãessuficientes para alimentar três tripulações aomesmo tempo. O quarto lado do pátio dava paraseis cômodos, dois com tamanho suficientepara reunir toda a minha guarda pessoal. Paraalém desses dois cômodos grandes havia umterraço pavimen-tado voltado para o rio, e ànoite aquele era um lugar agradável, se bem quena maré baixa o fedor do Temes podia seravassalador.

Eu poderia ter voltado a Coccham, mas fiqueiassim mesmo, e os homens do fyrd deBerrocscire também ficaram, mas estavaminfelizes porque era primavera e havia trabalhoa fazer em seus campos. Mantive-os emLundene para reforçar as muralhas da cidade.Eu teria ido para casa se achasse que A Ethelredfaria esse trabalho, mas ele parecia ter uma

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ignorância abençoada da triste condição dasdefesas da cidade. Sigefrid havia remendadoalguns lugares e reforçado as portas, mas aindahavia muito a fa-

zer. A antiga alvenaria estava desmoronando eem alguns lugares até mesmo havia caído nosfossos externos, e meus homens cortaram eapararam árvores para fazer novas paliçadasonde quer que a muralha estivesse fraca. Emseguida limpamos o fosso do lado de fora damuralha, tirando a imundície amontoada eenfiando estacas afiadas para receber qualqueratacante.

Alfredo mandou ordens para que toda a antigacidade fosse reconstruída. Qualquer prédioromano em boas condições deveria sermantido, e as ruínas dilapidadas seriamderrubadas e substituídas por madeira e palhafortes, mas não havia homens nem dinheiro

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para tentar esse trabalho. A idéia de Alfredo eraque os saxões da nova cidade sem defesas iriamse mudar para a antiga Lundene, para ficar emsegurança atrás das fortificações, mas aquelessaxões ainda temiam os fantasmas dosconstrutores romanos e resistiamteimosamente a cada convite para assumir aspropriedades desertas. Meus homens do fyrdde Berrocscire estavam igualmenteamedrontados com os fantasmas, mas tinhammais medo ainda de mim, por isso ficaram etrabalharam.

A Ethelred não tomou conhecimento do que eufiz.

Sua doença devia ter passado, porque ele seocupava ca-

çando. A cada dia cavalgava até as florestas nascolinas ao norte da cidade, onde perseguiacervos. Nunca levava menos de quarenta

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homens, porque sempre havia uma chance deque algum bando de dinamarquesessaqueadores se aproximasse de Lundene. Haviamuitos bandos assim, mas o destino decretouque nenhum chegasse perto de A Ethelred. Acada dia eu via cavaleiros a leste, abrindocaminho pelos pântanos escuros e desoladosentre a cida-

de e o mar. Eram dinamarqueses, vigiando-nos,e sem dúvida levando notícias a Sigefrid.

Recebi notícias de Sigefrid. Ele vivia, segundoos informes, mas estava tão afetado peloferimento que não conseguia andar nem ficarde pé. Havia se refugiado em Beamfleot comseu irmão e Haesten, e de lá mandavamatacantes para a foz do Temes. Os naviossaxões não ousavam navegar para a Frankia,porque os nórdicos estavam num climavingativo depois da derrota em Lundene.

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Um navio dinamarquês, com proa de dragão,chegou a remar subindo o Temes para nosprovocar da água borbulhante logo abaixo daabertura na ponte quebrada. Tinhamprisioneiros saxões a bordo e os mataram, um aum, certificando-se de que víssemos asexecuções sangrentas.

Também havia mulheres cativas a bordo epodíamos ouvi-las gritando. Mandei Finan euma dúzia de homens para a ponte, levando umpote de argila com fogo, e assim que estavamna ponte usaram arcos de caça para dispararflechas de fogo contra o intruso. Todos oscomandantes de navio temem o fogo, e asflechas, a maioria das quais errou totalmente oalvo, os convenceram a descer rio abaixo atéque elas não pudessem mais alcançá-los, maseles não foram longe e seus remadoresmantiveram o navio contra a corrente enquantomais prisioneiros eram mortos. Só

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partiram quando juntei uma tripulação paraencher um dos barcos capturados que estavampresos ao cais, e só

então eles deram a volta e remaram rio abaixo,indo para a tarde que escurecia.

Outros navios vindos de Beamfleotatravessavam o largo estuário do Temes edesembarcavam homens em Wessex. Aquelaparte de Wessex era um lugar estranho. Já

fora o reino de Cent até ser conquistado pelossaxões do oeste e, ainda que os homens deCent fossem saxões, falavam com sotaqueestranho. Sempre fora um lugar selvagem,perto das outras terras junto ao mar, e semprecom possibilidades de ser atacado por vikings.Agora os homens de Sigefrid mandavam umnavio depois do outro, através do estuário, parapilhar o interior de Cent. Faziam escravos equeimavam aldeias. Veio um mensageiro de

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Swithwulf, bispo de Hrofeceastre, implorarminha ajuda.

— Os pagãos estão em Contwaraburg — disseo mensageiro, um jovem padre, em tomsoturno.

— Eles mataram o arcebispo? — pergunteianimado.

— Ele não estava lá, senhor, graças a Deus. —O

padre fez o sinal-da-cruz. — Os pagãos estãoem toda parte, senhor, e ninguém está seguro.O bispo Swithwulf implora sua ajuda.

Mas eu não podia ajudar o bispo. Precisava dehomens para guardar Lundene, e não Cent, eoutros para guardar minha família também,porque, uma semana depois da queda da cidade,Gisela, Stiorra e meia dúzia de aias chegaram.

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Eu havia mandado Finan e trinta homensescoltá-las em segurança rio abaixo, e a casajunto ao Temes pareceu ficar mais quente comos ecos dos risos das mulheres.

— Você poderia ter limpado a casa —provocou Gisela.

— Eu varri!

— Rá! — ela apontou para o teto. — O que éaquilo?

— Teias de aranha — respondi. — Elas estãosegurando os caibros no lugar.

As teias de aranha foram varridas e os fogõesda cozinha acesos. No pátio, sob um canto emque os telhados da varanda se encontravam,havia uma velha urna de pedra atulhada de lixo.Gisela limpou a sujeira, depois ela e duas aiaslavaram o exterior da urna, revelando mármore

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branco esculpido com delicadas mulheres quepareciam estar perseguindo umas às outras ebalançando harpas.

Gisela adorava essas esculturas. Agachou-se aolado, acompanhando com o dedo o cabelo dasmulheres romanas, depois ela e suas aiastentaram copiar o penteado. Ela adorava a casa,também, e até suportava o fedor do rio parasentar-se no terraço à tarde e olhar a águacorrendo.

— Ele bate nela — disse-me uma noite.

Eu sabia de quem ela falava, e fiquei quieto.

— Ela está machucada — disse Gisela — eestá

grávida, e ele bate nela.

— Ela está o quê? — perguntei, surpreso.

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— A Ethelflaed — disse Gisela com paciência—está grávida. — Quase todo dia Gisela ia aopalácio e passava um tempo com esta, mas AEthelflaed nunca tinha permissão de visitarnossa casa.

Fiquei surpreso com a notícia da gravidez de AEthelflaed. Não sei por que deveria estar, masestava. Acho que ainda pensava em A Ethelflaedcomo uma criança.

— E ele bate nela? — perguntei.

— Porque acha que ela ama outros homens.

— E ama?

— Não, claro que não, mas ele teme isso. —Gisela parou para juntar mais lã que estavafiando numa roca. —

Ele acha que ela ama você.

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Pensei na súbita raiva de A Ethelred na ponte deLundene.

— Ele é louco!

— Não, ele tem ciúme — disse Gisela, pondoa mão em meu braço. — E sei que ele não temdo que sentir ciúme. — Ela sorriu para mim,depois voltou a juntar sua lã. — É um modoestranho de demonstrar amor, não é?

A Ethelflaed viera para a cidade um dia depoisda queda. Viajou de barco até a cidade saxã, ede lá um carro de boi havia levado-aatravessando o Fleot até o novo palácio de seumarido. Homens ladeavam o caminho balan-

çando galhos cheios de folhas, um padre iaadiante dos bois espalhando água bentaenquanto um coro de mulheres seguia acarroça, que, como os chifres dos bois, estavaenfeitada com flores de primavera. A

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Ethelflaed, segurando a lateral da carroça parase firmar, parecera desconfortável, mas haviame dado um sorriso triste enquanto os bois aarrastavam pelas pedras irregulares no interiorda porta da cidade.

A chegada de A Ethelflaed foi comemoradacom uma festa no palácio. Tenho certeza deque A Ethelred não queria me convidar, masmeu posto lhe dava pouca opção, e umamensagem de má vontade havia chegado natarde anterior à comemoração. A festa não foranada especial, mas a cerveja era em quantidadesuficiente. Uma dúzia de padres compartilhou amesa do alto com A Ethelred e A Ethelflaed, eeu recebi um banco no fim daquela tábuacomprida. A Ethelred fez cara feia para mim, ospadres me ignoraram, e eu saí cedo, dizendoque tinha de fazer a ronda nas muralhas e mecertificar de que as sentinelas estivessemacordadas. Lembro-me de que naquela noite

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meu primo estava pálido, mas havia sido logodepois do ataque de vômito. Eu perguntei porsua saúde e ele descartou a pergunta como sefosse irrelevante.

Gisela e A Ethelflaed ficaram amigas emLundene.

Eu consertei a muralha e A Ethelred caçavaenquanto seus homens saqueavam a cidade paraequipar seu palácio. Um dia cheguei em casa eencontrei seis de seus seguidores no pátio deminha casa. Egbert, o homem que havia medado as tropas na véspera do ataque, era umdeles. Cinco usavam cota de malha e espadas, osexto usava um gibão lin-damente bordado quemostrava cães perseguindo cervos.

Esse sexto homem também usava corrente deprata, sinal de nobreza. Era Aldhelm, amigo demeu primo e comandante de suas tropasdomésticas.

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— Isto — respondeu Aldhelm. Ele estavaparado junto à urna que Gisela havia limpado.Agora ela servia para captar água da chuva quecaía do telhado, e essa água era doce e de gostolimpo, uma raridade em qualquer cidade.

— Duzentos xelins de prata — disse eu aAldhelm

— e ela é sua.

Ele deu um riso de desprezo. O preço eraultrajante.

Os quatro homens mais jovens haviamconseguido virar a urna, fazendo a água cair, eagora estavam lutando para endireitá-la denovo, mas haviam interrompido os esfor-

ços quando apareci.

Gisela veio da casa principal e sorriu para mim.

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— Eu disse a eles que não poderiam levá-la —disse ela.

— O senhor A Ethelred a quer — insistiuAldhelm.

— Você se chama Aldhelm — disse eu. — SóAldhelm, e eu sou Uhtred, senhor deBebbanburg, e você

me chama de “senhor”.

— Este, não — Gisela falou com voz sedosa.—

Ele me chamou de cadela intrometida.

Meus homens, que eram quatro, moveram-separa meu lado e puseram a mão no punho daespada.

— Você chamou minha mulher de cadela? —

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perguntei a Aldhelm.

— Meu senhor requisita esta estátua — disseele, ignorando minha pergunta.

— Você vai pedir desculpas à minha mulher —disse eu — e depois a mim. — E coloquei ocinto com as duas espadas pesadas sobre aspedras do piso.

Ele me deu as costas.

— Deixe-a de lado — disse aos quatro homens—e rolem para a rua.

— Quero dois pedidos de desculpas — disseeu.

Ele ouviu a ameaça em minha voz e se virou devolta, agora alarmado.

— Esta casa — explicou Aldhelm — pertence

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ao senhor A Ethelred. Se você vive aqui é pelapermissão graciosa dele. — Aldhelm ficouainda mais alarmado à medida que eu meaproximava. — Egbert! — disse ele em vozalta, mas a única reação de Egbert foi ummovimento pedindo calma com a mão direita,sinal de que seus homens deveriam manter asespadas nas bainhas. Egbert sabia que se umaúnica espada saísse da bainha longa haveria umaluta entre seus homens e os meus, e teve o bomsenso de evitar aquela matança, mas Aldhelmnão tinha bom senso.

— Seu desgraçado impertinente — disse ele,em seguida tirou uma faca de uma bainha nacintura e tentou acertar minha cintura.

Quebrei o queixo de Aldhelm, o nariz, as duasmãos e talvez duas costelas antes que Egbertme afastasse.

Quando Aldhelm pediu desculpas a Gisela, fez

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isso cuspindo dentes através do sangue queborbulhava, e a urna permaneceu no pátio. Deisua faca às garotas que traba-lhavam na cozinha,onde ela se mostrou útil para cortar cebolas. Eno dia seguinte Alfredo chegou.

O rei veio silenciosamente, seu navio chegandonum cais acima da ponte partida. O Haligastesperou que um navio mercante do riodesatracasse, depois se aproximou em remadascurtas e eficientes. Alfredo, acompanhado poruma vintena de padres e monges e guardado porseis homens usando cotas de malha,desembarcou sem arautos nem anúncios.Desviou-se das mercadorias empilhadas nocais, passou por cima de um bêbado dormindoà sombra e se abaixou passando pelo pequenoportão na muralha, que dava no pátio de ummercador.

Ouvi dizer que ele foi ao palácio. A Ethelred

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não estava lá, fora caçar de novo, mas o rei foiao aposento de sua filha e ficou lá por muitotempo. Depois desceu de novo o morro e, aindacom seu séquito de sacerdotes, veio à nossacasa. Eu estava com um dos grupos que faziaconsertos nas muralhas, mas Gisela foraalertada da presença de Alfredo em Lundene e,suspeitando de que ele poderia vir à nossa casa,havia preparado uma refeição de pão, cerveja,queijo e lentilha cozida. Não ofereceu carne,porque Alfredo não tocava carne. Seuestômago era fraco e as entranhas viviam emtormento perpétuo, e de algum modo ele haviase convencido de que a carne era uma a-bominação.

Gisela havia mandado um serviçal me alertar davinda do rei, mas mesmo assim cheguei à casamuito depois de Alfredo, encontrando meuelegante pátio preto de tantos padres, dentre osquais estava Pyrlig e, perto dele, Osferth, que

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de novo vestia mantos de monge. Osferth medeu um olhar azedo, como se me culpasse porseu retorno à Igreja, enquanto Pyrlig meabraçava.

— A Ethelred não disse nada sobre você noinforme dado ao rei — murmurou ele com bafode cerveja em minha cara.

— Nós não estávamos aqui quando a cidadecaiu?

— perguntei.

— Segundo seu primo, não — disse Pyrlig,depois deu um risinho. — Mas contei a verdadea Alfredo. Ande, ele está esperando por você.

Alfredo estava no terraço do rio. Seus guardasse mantinham atrás dele, enfileirados deencontro à casa, enquanto o rei ocupava umacadeira. Parei junto à porta, surpreso porque o

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rosto de Alfredo, geralmente tão pálido esolene, tinha uma expressão animada. Estavaaté mesmo sorrindo. Gisela sentava-se ao ladodele e o rei estava inclinado adiante, falando, eGisela, de costas para mim, ouvia. Fiquei ondeestava, olhando aquela visão raríssima, Alfredofeliz. Ele bateu o dedo comprido e branco nojoelho dela uma vez, para enfatizar algumargumento. Não havia nada de estranho nogesto, a não ser que aquilo não era muito doestilo dele.

Mas, claro, talvez fosse do estilo dele. Alfredofora um famoso mulherengo antes de serapanhado nas garras do cristianismo, e Osferthera produto dessa antiga luxúria principesca.Alfredo gostava de mulheres bonitas, e eraóbvio que gostava de Gisela. Ouvi-a rirsubitamente e Alfredo, lisonjeado por suadiversão, deu um sorriso tímido.

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Parecia não se importar que ela não fossecristã e que usasse um amuleto pagão nopescoço, estava simplesmente feliz nacompanhia dela e fiquei tentado a deixá-los asós.

Nunca o vira feliz na companhia de A Elswith,sua esposa com língua de doninha, cara dearminho e voz de pica-pau.

Então, por acaso, ele olhou por cima do ombrode Gisela e me viu.

Seu rosto mudou imediatamente. Ele seenrijeceu, sentou-se empertigado e, relutante,sinalizou para eu me aproximar.

Peguei um banco que nossa filha usava e ouvium som sibilante enquanto os guardas deAlfredo desembai-nhavam espadas. Alfredosinalizou para largarem as armas, sensível obastante para saber que, se eu quisesse atacá-lo,

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não usaria um banco de ordenha, de três pernas.Ficou olhando enquanto eu dava minhas espadasa um dos guardas, sinal de respeito, e emseguida carregava o banco pelo terraço.

— Senhor Uhtred — cumprimentou ele comfrieza.

— Bem-vindo à nossa casa, senhor rei. — Fizuma reverência, depois me sentei de costaspara o rio.

Ele ficou em silêncio por um momento. Estavausando uma capa marrom apertada ao redor docorpo magro. Uma cruz de prata pendia dopescoço, e no cabelo que ia rareando havia umaro de bronze, o que me surpreendeu, porqueele raramente usava símbolos do reinado,pensando que eram badulaques vaidosos, masdevia ter decidido que Lundene precisava verum rei. Sentiu minha surpresa, porque tirou oaro da cabeça.

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— Eu havia esperado — disse friamente — queos saxões da nova cidade tivessem abandonadosuas casas.

Que estariam vivendo aqui. Eles poderiam serprotegidos pelas muralhas! Por que não semudam?

— Eles temem os fantasmas, senhor.

— E você não teme? Pensei por um tempo.

— Temo — falei depois de pensar na resposta.

— No entanto, mora aqui? — ele indicou acasa.

— Nós propiciamos os espíritos, senhor —explicou Gisela em voz baixa e, quando o reilevantou uma das sobrancelhas, contou quecolocávamos comida e bebida no pátio parareceber qualquer fantasma que chegasse à

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nossa casa.

Alfredo esfregou os olhos.

— Poderia ser melhor se nossos padresexorcizas-sem as ruas — disse ele. — Oraçõese água benta! Vamos expulsar os fantasmas.

— Ou então me deixe levar trezentos homenspara saquear a cidade nova — sugeri. — Sequeimarmos as casas, senhor, eles terão deviver na cidade velha.

Um meio sorriso tremulou no rosto dele, esumiu tão rapidamente quanto havia surgido.

— É difícil obrigar a obediência sem encorajaro ressentimento — disse ele. — Algumasvezes acho que a única autoridade verdadeiraque tenho é sobre minha família, e mesmoassim fico em dúvida! Se eu soltá-lo comespadas e lanças na cidade nova, senhor Uhtred,

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eles aprenderão a odiá-lo. Lundene deve serobediente, mas também deve ser um bastiãopara os cristãos saxões, e se eles nos odiarem,irão receber bem um retorno dosdinamarqueses, que os deixaram em paz. — Elebalançou a cabeça abruptamente. — Vamosdeixá-los em paz, mas não construa umapaliçada para eles. Agora, desculpe —estasúltimas palavras eram para Gisela —, masdevemos falar de coisas ainda mais sombrias.

Alfredo sinalizou para um guarda que abriu aporta do terraço. O padre Beocca apareceu ecom ele veio um segundo padre; uma criaturacarrancuda, de cabelos pretos, rosto fundo,chamada padre Erkenwald. Ele me odiava.

Uma vez tentou fazer com que eu fosse mortoacusando-me de pirataria e, ainda que aacusação fosse totalmente verdadeira, eu haviaescapado de suas garras mal-humoradas. Ele

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me lançou um olhar azedo enquanto Beoccacumprimentava solene com a cabeça, depois osdois olharam atentamente para Alfredo.

— Conte — disse Alfredo, olhando para mim— o que Sigefrid, Haesten e Erik fazem agora.

— Estão em Beamfleot, senhor — respondi—, reforçando seu acampamento. Eles têm 32navios e homens suficientes para tripulá-los.

— Você já viu esse lugar? — perguntou opadre Erkenwald. Os dois padres, eu sabia,tinham sido chamados ao terraço para servircomo testemunhas da conversa.

Alfredo, sempre cauteloso, gostava de ter umregistro, escrito ou memorizado, de todasessas discussões.

— Não vi — respondi com frieza.

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— Seus espiões, então? — Alfredo retomou asperguntas.

— Sim, senhor.

Ele pensou por um momento.

— Os navios podem ser queimados? Balancei acabeça.

— Estão num riacho, senhor.

— Eles devem ser destruídos — disse ele emtom vingativo, e eu vi suas mãos longas e finasse apertando no colo. — Eles atacaramContwaraburg! — Alfredo parecia muitoperturbado.

— Ouvi falar, senhor.

— Queimaram a igreja! — disse ele comindignação.

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— E roubaram tudo! Evangelhos, cruzes, até asrelíquias!

— e estremeceu. — A igreja possuía uma folhada figueira que nosso Senhor Jesus Cristosecou! Eu a toquei uma vez, e senti sua força.— Ele parecia a ponto de chorar.

Não falei nada. Beocca havia começado aescrever, sua pena raspando um pergaminhoseguro desajeitada-mente na mão aleijada. Opadre Erkenwald estava segurando um pote detinta e tinha expressão de desdém como se essatarefa lhe fosse indigna.

— Trinta e dois navios, foi o que você disse?—perguntou Beocca.

— Foi o que ouvi pela última vez.

— Pode-se entrar em riachos — disse Alfredocom azedume, tendo perdido subitamente a

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perturbação.

— O riacho em Beamfleot seca na maré baixa,senhor — expliquei —, e para chegar aosnavios inimigos temos de passar peloacampamento deles, que fica num morro acimado atracadouro. E pelo último relatório querecebi, senhor, um navio fica permanentementeancorado no meio do canal. Poderíamosdestruir esse navio e abrir caminho lutando,mas o senhor precisaria de mil homens paraisso e perderia pelo menos duzentos.

— Mil? — perguntou ele com ceticismo.

— Pelo que ouvi falar da última vez, senhor,Sigefrid tinha quase dois mil homens.

Ele fechou os olhos brevemente.

— Sigefrid vive?

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— Por pouco — respondi. Eu havia recebido amaior parte dessas notícias de Ulf, meucomerciante dinamarquês, que adorava a prataque eu lhe pagava. Não tinha dúvida de que Ulfrecebia prata de Haesten e Erik para lhes contaro que eu fazia em Lundene, mas esse era umpreço que valia a pena. — O irmão Osferth oferiu seriamente.

Os olhos astutos do rei pousaram em mim.

— Osferth — disse ele em tom opaco.

— Venceu a batalha, senhor — respondi com omesmo tom. Alfredo só ficou me olhando,ainda inexpressivo. — O senhor foi informadopelo padre Pyrlig? —perguntei, e recebi umacurta afirmação de cabeça. — O

que Osferth fez, senhor, foi corajoso, e não seise eu teria a coragem para fazer isso. Ele saltoude uma grande altura e atacou um guerreiro

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temível, e sobreviveu para lembrar o feito. Senão fosse por Osferth, senhor, Sigefrid estariahoje em Lundene e eu estaria em minhasepultura.

— Você o quer de volta? — perguntou Alfredo.

A resposta, claro, era não, mas Beocca assentiude modo quase imperceptível com a cabeçagrisalha, e eu entendi que Osferth não eradesejado em Wintanceaster. Eu não gostava dogaroto e, a julgar pela mensagem silenciosa deBeocca, ninguém gostava dele emWintanceaster também, no entanto suacoragem fora exemplar. Pensei que Osferth eraum guerreiro no coração.

— Sim, senhor — respondi, e vi o sorrisosecreto de Gisela.

— Ele é seu — disse Alfredo, curto e grosso.Beocca revirou o olho bom para o céu, em

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agradecimento.

— E quero os nórdicos fora do estuário doTemes —continuou Alfredo.

Dei de ombros e perguntei:

— Isso não é problema de Guthrum? —Beamfleot ficava no reino da Ânglia Orientalcom o qual, oficialmente, estávamos em paz.

Alfredo ficou irritado, provavelmente porqueeu usara o nome dinamarquês de Guthrum.

— O rei A Ethelstan foi informado doproblema —disse ele.

— E não faz nada?

— Faz promessas.

— E os vikings usam suas terras comimpunidade

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— observei. Alfredo se eriçou.

— Está sugerindo que eu declare guerra contrao rei A Ethelstan?

— Ele permite que os saqueadores entrem emWessex, senhor, então por que não devolvemoso favor?

Por que não mandamos navios à ÂngliaOriental para pre-judicar os domínios do rei AEthelstan?

Alfredo se levantou, ignorando minha sugestão.

— O mais importante — disse ele — é que nãopercamos Lundene. — Em seguida estendeu amão para o padre Erkenwald, que abriu umasacola de couro e tirou um rolo de pergaminholacrado com cera marrom. Alfredo estendeu opergaminho para mim. — Nomeei você

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governador militar desta cidade. Não deixe oinimigo tomá-la de volta.

Peguei o pergaminho.

— Governador militar? — pergunteiobjetivamente.

— Todas as tropas e os membros do fyrdestarão sob seu comando.

— E a cidade, senhor?

— Será um lugar de Deus.

— Vamos limpá-la da iniqüidade — exclamouo padre Erkenwald — e lavá-la até ficar maisbranca do que a neve.

— Amém — disse Beocca com fervor.

— Estou nomeando o padre Erkenwald bispode Lundene — disse Alfredo — e o governo

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civil ficará com ele.

Senti um aperto no coração. Erkenwald? Queme odiava?

— E quanto ao ealdorman da Mércia? Não terá

comando civil aqui?

— Meu genro — disse Alfredo sem darimportância — não contrariará minhas ordens.

— E quanta autoridade ele tem aqui?

— Isto é a Mércia! — disse Alfredo, batendocom o pé no terraço. — E ele governa aMércia.

— Então pode nomear um novo governadormilitar?

— Ele fará o que eu mandar — disse Alfredo, ehavia uma raiva súbita em sua voz. — E dentro

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de quatro dias vamos todos nos reunir — elehavia recuperado rapidamente a postura — ediscutir o que precisa ser feito para tornar estacidade segura e cheia de graça. — Ele assentiubruscamente para mim, inclinou a cabeça paraGisela e se virou.

— Senhor rei. — Gisela falou baixo, contendoa partida de Alfredo. — Como está sua filha?Eu a vi ontem, e ela estava machucada.

O olhar de Alfredo foi até o rio, onde seiscisnes nadavam abaixo do tumulto da pontequebrada.

— Ela está bem — respondeu em voz distante.

— Os machucados... — começou Gisela.

— Ela sempre foi uma criança travessa —interrompeu Alfredo.

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— Travessa? — a resposta de Gisela foihesitante.

— Eu a amo — disse Alfredo, e pela paixãoinesperada em sua voz não podia haver dúvidadisso —, mas ainda que a travessura numacriança possa ser divertida, num adulto épecaminosa. Minha cara A Ethelflaed deveaprender a obediência.

— Para que aprenda a odiar? — perguntei,ecoando as palavras anteriores do rei.

— Agora ela é casada — disse Alfredo —, eseu dever diante de Deus é obedecer ao marido.Ela vai aprender isso, tenho certeza, eagradecer a lição. É difícil castigar uma criançaque nós amamos, mas é pecado não dar essecastigo. Rezo a Deus para que ela chegue a umestado de boa graça.

— Amém — disse o padre Erkenwald.

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— Louvado seja Deus — completou Beocca.Gisela não disse nada, e o rei saiu.

Eu deveria saber que a convocação ao paláciono topo da colina de Lundene envolveriapadres. Tinha esperado um conselho de guerrae uma discussão intensa sobre o melhor modode limpar o Temes dos bandoleiros queinfestavam o estuário, mas, em vez disso, assimque me livraram de minhas espadas, fui levadoao salão com colunas no qual fora erguido umaltar. Finan e Sihtric estavam comigo. Finan,bom cristão, fez o sinal-da-cruz, mas Sihtric,como eu, era pagão, e me olhou alarmadocomo se temesse alguma magia religiosa.

Suportei a missa. Monges cantaram, padresrezaram, sinos tocaram e homens seajoelharam. Havia cerca de quarenta homens nosalão, na maioria padres, mas somente umamulher. A Ethelflaed estava sentada junto do

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marido. Usava um vestido branco, preso àcintura por uma faixa azul, e o cabelo ouro-trigo tinha verônicas trançadas no coque. Euestava atrás dela, mas uma vez, quando ela sevirou para olhar o pai, vi o hematoma arroxeadoem volta do olho direito. Alfredo não olhoupara ela, mas permaneceu de joelhos. Eu oobservei, observei os ombros caídos de AEthelflaed, e pensei em Beamfleot e em comoaquele ninho de vespas poderia ser queimado.Primeiro, pensei, eu precisava levar um naviorio abaixo e ver Beamfleot pessoalmente.

Alfredo se levantou de repente e eu presumique o serviço religioso havia finalmenteterminado, mas em vez disso o rei se virou paranós e fez uma homília misericor-diosamentebreve. Encorajou-nos a ponderar as palavras doprofeta Ezequiel, quem quer que ele fosse.

— “Então os gentios que restarem perto de

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vocês”

— leu o rei — “saberão que eu, o Senhor,construí os lugares arruinados, e que plantei oque estava desolado”. —

O rei pousou o pergaminho com as palavras deEzequiel.

— Lundene é de novo uma cidade saxã, emesmo estando em ruínas, com a ajuda de Deusiremos reconstruí-la. Vamos torná-la um lugarde Deus, uma luz para os pagãos. — Ele fezuma pausa, deu um sorriso grave e sinalizoupara o bispo Erkenwald, que, vestido com umacapa branca com tiras vermelhas nas quaishaviam sido bordadas cruzes de prata, levantou-se para fazer um sermão. Gemi. Deveríamosestar discutindo como livrar o Temes denossos inimigos, e em vez disso éramos tortu-rados com devoção maçante.

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Há muito tempo eu havia aprendido a ignorarsermões. Fora meu destino infeliz ouvirmuitos, e as palavras da maioria deles passavamsobre mim como chuva caindo em telhado compalha nova, mas depois de alguns minu-

tos da arenga rouca de Erkenwald comecei aprestar aten-

ção.

Porque ele não estava pregando sobrereconstruir cidades arruinadas, nem mesmosobre os pagãos que ameaçavam Lundene, emvez disso estava pregando a A Ethelflaed.

Ficou parado junto ao altar e gritou. Ele era umhomem sempre raivoso, mas naquele dia deprimavera, no velho salão romano, estava cheiode uma fúria passional.

Disse que Deus estava falando por intermédio

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dele. Deus tinha uma mensagem, e a palavra deDeus não podia ser ignorada, caso contrário asfogueiras de enxofre do céu consumiriam todaa humanidade. Em nenhum momento usou onome de A Ethelflaed, mas encarava-a, enenhum homem no salão podia duvidar damensagem que o deus cristão estava mandandopara a pobre garota. Parecia que Deus havia atémesmo escrito a mensagem num evangelho, eErkenwald pegou uma cópia no altar, ergueu-apara que a luz do buraco da fumaça no telhadobatesse na página, e leu em voz alta.

— “Ser discretas”. — Ele ergueu a cabeça paraolhar A Ethelflaed, furioso. — “Castas!Mantenedoras do lar! Boas! Obedientes aomarido!” Essas são as palavras de Deus! É oque Deus exige da mulher! Ser discreta, casta,mantenedora do lar, obediente! Deus falouconosco! —

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Ele quase se retorceu de êxtase ao dizer estasúltimas palavras. — Deus ainda fala conosco!— Ele olhou para o teto como se pudessevislumbrar seu deus espiando pelo teto. —Deus fala conosco!

Pregou durante mais de uma hora. Seu cuspegirava através do raio de sol lançado peloburaco de fumaça. En-colhia-se, gritava,estremecia. E repetidamente voltava às palavrasdo livro do evangelho, dizendo que as mulheresdevem obedecer aos maridos.

— Obedecer! — gritou ele, e fez uma pausa.

Ouvi uma pancada na sala externa quando umguarda pousou seu escudo.

— Obedecer! — berrou Erkenwald de novo.

A cabeça de A Ethelflaed estava erguida. Demeu ponto de vista, atrás dela, parecia que a

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garota estava olhando direto para aquele padrelouco e maligno que agora era bispo egovernante de Lundene. Ao lado dela, AEthelred se remexia, mas os poucos vislumbresque tive de seu rosto mostravam uma expressãopresunçosa e satisfeita. A maioria dos homensparecia entediada, e só um, o padre Beocca,aparentava desaprovar o sermão do padre.Captou meu olhar uma vez e me fez sorrir aoerguer uma sobrancelha indignada. Tenhocerteza de que Beocca não desgostava damensagem, mas sem dúvida acreditava que nãodeveria ser pregada de modo tão público.Quanto a Alfredo, simplesmente olhavaserenamente para o altar enquanto o bispoarengava, no entanto sua passividade escondia oenvolvimento, porque aquele sermão amargojamais poderia ter sido feito sem oconhecimento e a permissão do rei.

— Obedecer! — gritou Erkenwald de novo, e

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olhou para o céu como se uma palavra fosse asolução para todos os problemas dahumanidade. O rei assentiu apro-vando, eocorreu-me que Alfredo não somente haviaaprovado a arenga de Erkenwald, mas devia terrequisitado-a. Talvez ele achasse que umacensura pública salvaria A Ethelflaed de surrasfuturas. A mensagem certamente combinavacom a filosofia de Alfredo, porque eleacreditava que um reino só podia prosperar sefosse governado pela lei, ordenado pelogoverno e obediente à vontade do rei e deDeus. No entanto, podia olhar para a filha, veros machucados e aprovar? Ele sempre haviaamado os filhos.

Eu os tinha visto crescer, e tinha visto Alfredobrincar com eles, entretanto sua religião lhepermitia humilhar a filha que ele amava?Algumas vezes, quando rezo a meus deuses,agradeço fervorosamente por terem deixado

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que eu escapasse do deus de Alfredo.

Por fim Erkenwald ficou sem mais palavras.Houve uma pausa, depois Alfredo se levantou ese virou para nós.

— A palavra de Deus — disse ele, sorrindo. Ospadres murmuraram orações breves, depoisAlfredo balançou a cabeça como se a limpassedas questões religiosas.

— Agora a cidade de Lundene é uma parteverdadeira da Mércia — disse, e um murmúriomais alto de aprovação ecoou pela sala. —Confiei o governo civil ao bispo Erkenwald —ele se virou e sorriu para o bispo, que deu umrisinho e fez uma reverência —, e o senhorUhtred será

responsável pela defesa da cidade — disseolhando para mim. Não fiz reverência.

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Então A Ethelflaed se virou. Acho que ela nãosabia que eu estava na sala, mas se virou quandomeu nome foi falado e me encarou. Pisqueipara ela, e seu rosto machucado sorriu. AEthelred não viu a piscadela. Estavaobjetivamente me ignorando.

— A cidade, claro — continuou Alfredo, com avoz subitamente gélida porque tinha vistominha piscadela

—, fica sob a autoridade e o governo de meuamado genro. Com o tempo ela irá se tornaruma parte valiosa de suas posses, mas porenquanto ele concordou gentilmente queLundene deve ser administrada por homensexperientes no governo. — Em outras palavras,Lundene podia fazer parte da Mércia, masAlfredo não tinha intenção de deixar que saíssedas mãos saxãs do oeste. — O bispo Erkenwaldtem a autoridade para estabelecer e cobrar

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impostos — explicou Alfredo — e um terço dodinheiro será

gasto no governo civil, um terço com a Igreja eum terço com a defesa da cidade. E sei que, soba orientação do bispo e com a ajuda de DeusTodo-Poderoso, podemos erguer uma cidadeque glorifique Cristo e Sua Igreja.

Eu não conhecia a maioria dos homens nosalão porque eram quase todos thegns mérciosconvocados a Lundene para se encontrar comAlfredo. Aldhelm estava entre eles, o rostoainda preto e sangrado por minhas mãos. Elehavia me olhado uma vez e se viradorapidamente para o outro lado. As convocaçõestinham sido inesperadas e apenas uns poucosthegns haviam feito a viagem a Lundene, eagora esses homens ouviam Alfredoeducadamente, mas quase todos estavamdivididos entre dois senhores. O norte da

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Mércia estava sob domínio dinamarquês, e só aparte sul, que fazia fronteira com Wessex,podia ser chamada de terra saxã livre, e mesmoessa terra vivia sob ameaça constante. Umthegn mércio que desejasse ficar vivo, quedesejasse ver suas filhas livres da escravidão eseus animais livres dos ladrões de gado, faziabem em pagar tributo aos dinamarqueses alémdos impostos a A Ethelred, que, em virtude desuas posses herdadas, do casamento e dalinhagem, era reconhecido como o mais nobrethegn da Mércia. Ele podia ser chamado de rei,se quisesse, e não tenho dúvidas de que queria,mas Alfredo não queria, e sem AlfredoAEthelred não era nada.

— É nossa intenção — disse Alfredo — livrara Mércia de seus invasores pagãos. Para issoprecisamos tomar Lundene e, assim, acabarcom os ataques dos navi-

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os nórdicos subindo o Temes. Agora temos desustentar Lundene. Como isso pode ser feito?

A resposta era óbvia, mas não impediu umadiscussão geral que serpenteou sem objetivoenquanto os homens discutiam sobre quantossoldados seriam necessários para defender asmuralhas. Não participei. Encostei-me naparede dos fundos e observei quais dos thegnsestavam entusiasmados e quais seresguardavam. O bispo Erkenwald me olhava devez em quando, obviamente imaginando por queeu não contribuía com meu grão de trigo para adebulha, mas fiquei quieto. A Ethelred ouviaatentamente e, por fim, resumiu a discussão.

— A cidade, senhor rei — disse ele animado—, precisa de uma guarnição de dois milhomens.

— Mércios — disse Alfredo. — Esses homensdevem vir da Mércia.

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— Claro — concordou A Ethelredrapidamente.

Notei que muitos thegns ficaram em dúvida.

Alfredo viu isso também e olhou para mim.

— Isso é sua responsabilidade, senhor Uhtred.Não tem opinião? Quase bocejei, mas conseguiresistir ao impulso.

— Tenho mais do que uma opinião, senhor rei.

Posso lhe dar fatos. Alfredo levantou uma dassobrancelhas e conseguiu parecer quedesaprovava, ao mesmo tempo.

— E então? — perguntou irritado quando fizuma pausa muito longa.

— Quatro homens para cada vara — disse eu.—

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Uma vara equivalia a seis passos, mais oumenos, e a alo-cação de quatro homens parauma vara não era minha, e sim de Alfredo.Quando ordenou que os burhs fossemconstruídos, havia deduzido, de seu modometiculoso, quantos homens seriamnecessários para defender cada um, e adistância das muralhas determinava aquantidade final. Os muros de Coccham tinham1. 400 passos de cumprimento, de modo queminha guarda doméstica e o fyrd precisavamsuprir mil homens para a defesa. Mas Cocchamera um burh pequeno, e Lundene era umacidade.

— E qual o tamanho das muralhas de Lundene?—perguntou Alfredo. Olhei para A Ethelred,como se esperasse que ele respondesse. EAlfredo, vendo para onde eu olhava, tambémolhou para o genro. A Ethelred pensou por uminstante e, em vez de dizer a verdade, que não

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sabia, tentou adivinhar.

— Oitocentas varas, senhor rei?

— A muralha voltada para terra — interrompiasperamente — tem 692 varas. A muralha dorio tem mais 358. As defesas, senhor rei,estendem-se por 1. 050 varas.

— Quatro mil e duzentos homens — disseimediatamente o bispo Erkenwald, e confessoque fiquei impressionado. Eu havia demoradoum longo tempo para descobrir o número, enão tive certeza de que minha compu-taçãoestava correta até que Gisela também resolveuo problema.

— Nenhum inimigo, senhor rei, pode atacar emtodos os lugares ao mesmo tempo — disse eu.— Portanto, acho que a cidade pode serdefendida por uma guarni-

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ção de 3.400 homens.

Um dos thegns mércios sibilou, como se essenúmero fosse uma impossibilidade.

— Somente mil homens a mais do que aguarnição de Wintanceaster, senhor rei —observei. A diferença, cla-

ro, era que Wintanceaster ficava num lealdistrito saxão do oeste, acostumado a ter seushomens servindo por períodos no fyrd.

— E onde o senhor encontra esses homens? —perguntou um mércio.

— Com vocês — respondi asperamente.

— Mas... — começou o homem, e hesitou. Eleia observar que o fyrd mércio era inútil,enfraquecido pela falta de uso, e que qualquertentativa de juntar o fyrd poderia atrair a

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atenção malévola dos earls dinamarqueses quegovernavam o norte da Mércia, e que por issoesses homens haviam aprendido a ficarabaixados e quietos. Eram como cãescaçadores de cervos que tremem no mato baixopor medo de atrair os lobos.

— Mas nada — disse eu, mais alto e ásperoainda.

— Porque se um homem não contribui para adefesa de seu país, é traidor. Deve perder aposse de suas terras, ser morto, e sua família,reduzida à escravidão.

Pensei que Alfredo poderia questionar essaspalavras, mas ele ficou quieto. Na verdade,assentiu concordando. Eu era a espada dentrode sua bainha, e ele estava evidentementesatisfeito por eu ter mostrado o aço por uminstante. Os mércios não disseram nada.

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— Também precisamos de homens para osnavios, senhor rei — prossegui.

— Navios? — perguntou Alfredo.

— Navios? — ecoou Erkenwald.

— Precisamos de tripulantes — expliquei.Tínhamos capturado 21 navios quandotomamos Lundene, dos quais 17 eramembarcações de luta. Os outros tinham bocamais larga, eram construídos para o comércio,mas também podiam ser úteis. — Eu tenho osnavios, mas eles precisam de tripulações, eessas tripulações precisam ser de bonslutadores.

— Você defende a cidade com navios? —perguntou Erkenwald, desafiando.

— E de onde virá seu dinheiro? — perguntei.—

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Das taxas de alfândega. Mas nenhum mercanteousa navegar aqui, por isso tenho de livrar oestuário dos navios inimigos. Isso significamatar os piratas, e para isso preciso detripulações de guerreiros. Posso usar minhastropas domésticas, mas elas têm de sersubstituídas na guarnição da cidade por outroshomens.

— Eu preciso de navios — interveio A Ethelredsubitamente. A Ethelred precisava de navios?Fiquei tão atônito que não falei nada.

O trabalho de meu primo era defender o sul daMércia e empurrar os dinamarqueses para onorte, afastando-os do restante de seu país, eisso significaria lutar em terra. Agora, derepente, precisava de navios? O que eleplanejava? Remar através das pastagens?

— Eu sugeriria, senhor rei — A Ethelred estavasorrindo enquanto falava, a voz macia e

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respeitosa —, que todos os navios a oeste daponte fossem dados a mim, para uso a seuserviço — e ele fez uma reverência a Alfredoenquanto falava isso —, e que meu primoficasse com os navios que estão a leste daponte.

— Isso... — comecei, mas fui interrompidopor Alfredo.

— Isso é justo — disse o rei com firmeza. Nãoera justo, era ridículo. Só havia dois navios deguerra no trecho de rio a leste da ponte, e 15acima da obstrução. A presença daqueles 15navios sugeria que Sigefrid estivera planejandoum grande ataque contra o território de Alfre-

do antes que o atacássemos, e eu precisavadaqueles navios para expulsar os inimigos doestuário. Mas Alfredo, ansioso para ser vistoapoiando o genro, varreu para o lado minhasobjeções. — Você usará os navios que tem,

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senhor Uhtred — insistiu ele —, e eu colocareisetenta homens de minha guarda doméstica sobseu comando para tripular um navio.

Assim eu deveria expulsar os dinamarqueses doestuário com dois navios? Desisti e meencostei na parede enquanto a discussãocontinuava, principalmente sobre os impostosalfandegários a serem cobrados, e em quantoos distritos vizinhos deveriam ser taxados, efiquei me per-guntando mais uma vez por quenão estava no norte, onde a espada de umhomem era livre e havia pouca lei e muitosrisos.

O bispo Erkenwald me acuou no fim dareunião.

Eu estava prendendo o cinto da espada quandoele me espiou com seus olhos pequenos.

— Você deveria saber que eu me opus à sua

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nomeação — cumprimentou ele.

— Assim como eu teria me oposto à sua —respondi amargo, ainda com raiva do roubo dos15 navios de guerra por A Ethelred.

— Deus pode não olhar com bênçãos umguerreiro pagão — explicou-se o bispo recém-nomeado —, mas o rei, em sua sabedoria,considera você um soldado hábil.

— E a sabedoria de Alfredo é famosa —respondi em tom chapado.

— Falei com o senhor A Ethelred — continuouele, ignorando minhas palavras — e eleconcordou que posso emitir mandados dereunião para os distritos adjacentes a Lundene.Você não tem objeção?

Erkenwald queria dizer que agora tinha poderde juntar o fyrd. Era um poder que teria sido

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melhor se ficasse comigo, mas duvidei de queA Ethelred concordasse com isso. Nem achavaque Erkenwald, mesmo tremendamentemaldoso, fosse qualquer coisa que não leal aAlfredo.

— Não tenho objeção — respondi.

— Então informarei sua concordância aosenhor A Ethelred — disse ele formalmente.

— E quando falar com ele, diga para parar debater na mulher. Erkenwald pulou como se eutivesse acabado de lhe dar um tapa no rosto.

— É o dever cristão dele — disse rigidamente—disciplinar a esposa, e o dever dela é sesubmeter. Não ouviu o que eu preguei?

— Cada palavra.

— Ela mesma provocou isso — rosnou

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Erkenwald.

— Ela tem um espírito feroz, o desafia!

— Ela é pouco mais do que uma criança —disse eu —, e uma criança grávida.

— E a tolice se aloja no fundo do coração dascrianças — reagiu Erkenwald — e aquelasforam as palavras de Deus! E o que Deus dizque deve ser feito sobre a tolice das crianças?Que a vara da correção deve arrancá-la apancadas! — Ele estremeceu de repente. — Éisso que a gente faz, senhor Uhtred! Bate nacriança até que ela obedeça! A criança aprendepor meio da dor, sendo espanca-da, e aquelacriança grávida deve aprender seu dever. Deusquer isso! Louvado seja Deus!

Semana passada mesmo, ouvi dizer que queremtornar Erkenwald santo. Padres vêm à minhacasa junto ao mar do norte onde encontram um

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velho, e dizem que estou a apenas alguns passosdo fogo do inferno. Que só

preciso me arrepender, dizem eles, para ir aocéu e viver para sempre na abençoadacompanhia dos santos.

E prefiro queimar até que o tempo se queimede vez.

SETE

A água pingava das pás dos remos, as gotasespalhando ondulações num mar feito de lajesbrilhantes de luz que se mexiam e se partiamlentamente, juntavam-se e deslizavam.

Nosso navio estava sobre aquela luz mutável,silencioso.

O céu a leste era ouro derretido se derramandoao redor de um agrupamento de nuvens

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encharcado de sol, enquanto o restante era azul.Azul-claro a leste e azul-escuro a oeste, onde anoite corria em direção às terrasdesconhecidas além do oceano distante.

Ao sul eu podia ver o litoral baixo de Wessex.Era verde e marrom, sem árvores e não muitodistante, mas eu não iria mais perto porque omar de luzes deslizantes escondia bancos deareia e baixios. Nossos remos repousa-vam e ovento estava morto, mas íamos nos movendoimplacavelmente para o leste, carregados pelamaré e pela corrente forte do rio. Esse era oestuário do Temes; uma ampla região de água,lama, areia e terror.

Nosso navio não tinha nome e não levavacabeças de feras na proa nem na popa. Era umnavio mercante, um dos dois que eu haviacapturado em Lundene, e tinha boca larga, eralento, barrigudo e desajeitado. Levava uma vela,

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mas ela estava enrolada na verga, que mantinha-se presa com suas forquilhas. Deslizávamos namaré em direção ao amanhecer dourado.

Eu estava de pé com o remo-leme na mãodireita.

Usava cota de malha, mas sem elmo. Minhasduas espadas estavam presas à cintura, mas,como a cota, ficavam escondidas por uma capade lã marrom. Havia 12 remadores nos bancos,Sihtric estava a meu lado, havia um homem naplataforma da proa e todos eles, como eu, nãomostravam armaduras nem armas.

Parecíamos um navio mercante deslizando pelacosta de Wessex na esperança de que ninguémdo lado norte do estuário nos visse.

Mas tinham visto.

E um lobo do mar nos espreitava.

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Vinha remando a norte de nós, desviando-separa sul e para leste, esperando que virássemose tentássemos escapar rio acima, contra amaré. Devia estar a um quilômetro e meio dedistância, e eu podia ver a linha preta e curta desua proa, que terminava numa cabeça de fera.

Não estava com pressa. Seu comandante podiaver que não remávamos e devia entender essainatividade como sinal de pânico. Devia pensarque estávamos discutindo o que fazer. Seusbancos de remadores iam se movendolentamente, mas cada remada levava aquelebarco distante à

frente, para cortar nossa fuga em direção aomar.

Finan, que estava com um dos remos de popade nosso navio, olhou por cima do ombro.

— Tripulação de cinqüenta? — sugeriu.

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— Talvez mais — respondi. Ele riu.

— Quanto mais?

— Uns setenta? — supus.

Éramos 43. E todos, menos 15, estávamosescondidos no lugar aonde o navionormalmente levaria mercadorias. Aqueleshomens escondidos estavam cobertos por umavela antiga, fazendo parecer que carregávamossal ou grãos, alguma carga que precisasse serprotegida da chuva ou dos borrifos do mar.

— Vai ser uma luta rara, se forem setenta —disse Finan, adorando aquilo.

— Não haverá luta nenhuma — disse eu —,porque eles não estarão preparados para nós.— E era verdade. Parecíamos uma vítima fácil,um punhado de homens num navio gorducho. Olobo do mar viria junto ao costado e uma dúzia

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de homens saltaria a bordo enquanto o restanteda tripulação apenas olhava a matança. Isso,pelo menos, era o que eu esperava. A tripulaçãoque olhava estaria armada, claro, mas nãoesperaria batalha, e meus homens estavam maisdo que preparados.

— Lembrem-se — gritei alto para que oshomens embaixo da vela me escutassem —,vamos matar todos!

— Até mulheres? — perguntou Finan.

— Mulheres, não. — Eu duvidava de quehouvesse mulheres a bordo daquele naviodistante.

Sihtric estava ajoelhado perto de mim e agoraolhou para cima.

— Por que matar todos, senhor?

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— Para que aprendam a nos temer.

O ouro no céu estava clareando e sedesbotando. O

sol subia acima do banco de nuvens e o martremeluzia com o brilho novo. A imagemrefletida do inimigo era longa sobre a água quebrilhava lenta.

— Remos de estibordo! — gritei. — Para trás.Desajeitados, agora! Os remadores riramenquanto sacudiam deliberadamente a águacom movimentos ineptos que lentamenteviraram nossa proa rio acima, para parecer queestávamos tentando escapar. A coisa sensatapara fazer-

mos, se fôssemos inocentes e vulneráveiscomo parecíamos, seria remar para a margemsul, encalhar o barco e correr para salvar a vida,mas em vez disso nos viramos e começamos a

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remar contra a maré e a correnteza. Nossosremos se chocavam uns nos outros, fazendocom que parecêssemos idiotas incompetentese apavorados.

— Ele engoliu a isca — falei a nossosremadores, mas, como agora nossa proaapontava para oeste, eles podiam ver por simesmos que o inimigo havia começado a remarcom força. O viking vinha direto para nós, comas fileiras de remos subindo e baixando comoasas e a água branca inchando e se encolhendona proa enquanto cada batida de remo impelia onavio.

Continuamos fingindo pânico. Nossos remosbatiam uns nos outros de modo que fazíamospouca coisa além de agitar a água ao redor docasco desajeitado. Duas gaivotas circularam omastro baixo, com os gritos tristes na manhãlímpida. Longe, no oeste, onde o céu era escu-

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recido pela fumaça de Lundene que ficava alémdo horizonte, eu podia ver apenas umaminúscula risca preta, que eu sabia ser omastro de outro navio. Ele vinha em nossadireção, e eu sabia que o navio viking também oteria visto e estaria imaginando se era amigo ouinimigo.

Não que isso importasse, porque o inimigolevaria apenas cinco minutos para capturarnosso cargueiro pequeno e com poucostripulantes, e iria se passar quase uma horaantes que a maré vazante e remadas firmestrouxessem aquele navio do oeste até onde nóslutávamos.

O barco viking veio rápido, os remostrabalhando num sincronismo lindo, mas avelocidade do navio significava que seusremadores estariam cansados, além dedespreparados, quando nos encontrassem. Sua

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cabeça de fera, or-

gulhosa na proa alta, era uma águia com o bicoaberto pintado de vermelho, como se o pássarotivesse acabado de rasgar a carne sangrenta deuma vítima, enquanto embaixo da cabeça umadúzia de homens armados se apinhava naplataforma da proa. Eram os que supostamentedeveriam nos abordar e matar.

Vinte remos de cada lado somavam quarentahomens. A equipe de abordagem acrescentavamais uma dúzia, ainda que fosse difícil contaros homens tão apinhados, e dois estavam aolado do remo-leme.

— Entre cinqüenta e sessenta — gritei. Osremadores inimigos não usavam cota de malha.Não esperavam lutar, e a maioria devia estarcom as espadas junto aos pés e os escudosempilhados no fundo do casco.

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— Parem os remos! — gritei. — Rema-dores,le-vantem-se!

Agora o navio com proa de águia estava perto.Eu podia ouvir os estalos dos toletes dosremos, o chapinhar das pás e o sibilar da águano talhamar. Podia ver lâminas de machadobrilhantes, os rostos cobertos por elmos doshomens que pensavam que iriam nos matar, e aansiedade no rosto do piloto tentando encostarsua proa diretamente na nossa. Meusremadores estavam se amontoando, fingindopânico. Os remadores vikings fizeram umúltimo esforço e ouvi seu comandante ordenarque parassem de remar e puxassem os remospara dentro. O navio veio em nossa direção,com a água deslizando para longe da proa, eagora estava muito perto, o suficiente parasentirmos o cheiro, e os homens em suaplataforma de proa sopesaram os escudosenquanto o piloto apontava a proa para deslizar

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ao longo de nosso flanco. Seus remos estavampuxados para bordo enquanto o navio partia paraa presa.

Esperei um instante, esperei até que o inimigonão pudesse mais nos evitar, depois acioneinossa emboscada.

— Agora! — gritei.

A vela foi puxada e de repente nosso pequenonavio estava eriçado de homens armados.Joguei longe minha capa e Sihtric me trouxe oelmo e o escudo. Um homem gritou um alertano navio inimigo e o piloto jogou todo o pesosobre o remo longo, e a embarcação se virouligeiramente, mas era tarde demais e houve umestalo enquanto sua proa se chocava contra oscabos de nossos remos.

— Agora! — gritei de novo.

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Clapa era meu homem na proa e atirou umarpéu para atrair o inimigo para nosso abraço.O arpéu bateu sobre a tábua superior docostado, Clapa fez força e o ímpeto do navioinimigo o fez balançar na corda e se chocarcontra nosso flanco. Meus homens saltaramimediatamente por cima do costado. Aquelaseram minhas tropas domésticas, guerreirostreinados, vestidos com malha e famintos pelamatança, e saltaram em meio aos remadoressem armadura, absolutamente despreparadospara uma luta. Os inimigos a postos para aabordagem, os únicos armados e estimuladospara a batalha, hesitaram enquanto os doisnavios se chocavam. Poderiam ter atacadomeus homens que já estavam matando, mas emvez disso seu líder gritou para pularem emnosso navio. Ele esperava pegar meus homensna popa, e era uma tática bastante hábil, masainda tínhamos homens suficientes a bordopara impedi-los.

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— Matem todos! — gritei.

Um dinamarquês, presumo que fossedinamarquês, tentou pular em minha plataformae simplesmente bati com meu escudo e eledesapareceu entre os navios, onde sua cota demalha levou-o instantaneamente para o leito domar. Os outros vikings que nos abordaramchegaram aos bancos dos remadores de popa,onde golpearam e xingaram meus homens. Euestava atrás e acima deles, tinha apenas Sihtricpor companhia e nós dois poderíamos terficado em segurança permanecendo naplataforma do leme, mas um homem não liderapermanecendo fora da luta.

— Fique onde está — disse eu a Sihtric, epulei.

Gritei um desafio enquanto pulava, e umhomem alto se virou para me encarar. Tinhauma asa de águia no elmo, e sua malha era boa,

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seus braços, cheios de braceletes, o escudo erapintado com uma águia e eu soube que deviaser o dono do navio inimigo. Era um viking debarba clara e olhos castanhos, levava ummachado de cabo comprido, com a lâmina jávermelha. Girou-o para mim e eu o aparei como escudo, mas o machado baixou no últimoinstante para cortar meus tornozelos e, por umpresente de Tor, o navio estremeceu e omachado perdeu sua força numa costela donavio mercante. Ele manteve meu golpe deespada longe usando o escudo, enquantolevantava o machado de novo e eu o atacavacom o escudo, jogando-o para trás com meupeso.

Ele deveria ter caído, mas trombou em seuspróprios homens e com isso permaneceu de pé.Tentei cortar seu tornozelo, mas Bafo deSerpente bateu em metal. Suas botas eramprotegidas por tiras de metal, como as minhas.

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O machado girou e bateu em meu escudo, e odele se chocou contra minha espada e fuilançado para trás pelo golpe duplo. Bati com asomoplatas na borda da plataforma do leme e eleme atacou de novo, tentando me der-

rubar, e percebi sorrateiramente Sihtric aindade pé na pequena plataforma de popa, batendocom uma espada em meu inimigo, mas a lâminaresvalou no elmo do dinamarquês e o golpe foidesperdiçado nos ombros cobertos com a cotade malha. Ele chutou meus pés, sabendo que euestava desequilibrado, e caí.

— Seu bosta — rosnou ele, depois recuou umpasso. Atrás dele seus homens estavammorrendo, mas ele teria tempo de me matarantes de morrer também. — Sou Olaf Garra-de-Águia — disse com orgulho — e vouencontrar você no castelo dos cadáveres.

— Uhtred de Bebbanburg — respondi, e ainda

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estava caído no convés enquanto ele erguia seumachado.

E Olaf Garra-de-Águia gritou.

Eu havia caído de propósito. Ele era maispesado do que eu, havia me acuado, e eu sabiaque ele continuaria batendo em mim, que euficaria sem condições de empurrá-lo paralonge, por isso havia caído. As espadas sedesperdiçavam em sua boa cota de malha e noelmo brilhante, mas agora impeli Bafo deSerpente para cima, por baixo da bainha de suamalha, cravando a lâmina enquanto o sangueencharcava o convés entre nós. Ele estava meolhando, arregalado e boquiaberto, enquanto omachado caía de sua mão. Agora eu estava depé, ainda empurrando Bafo de Serpente, e elecaiu para longe, estremecendo, e arranquei-a deseu corpo e vi sua mão direita tentando pegar ocabo do machado. Chutei-o na direção dele e vi

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seus dedos se enrolando na madeira, antes dematá-lo cravando rapidamente a espada em suagarganta. Mais sangue espirrou nas tábuas donavio.

Faço aquela pequena luta parecer fácil. Nãofoi. É

verdade que caí de propósito, mas Olaf me fezcair, e em vez de resistir eu me deixei tombar.Algumas vezes, na velhice, acordo tremendo ànoite quando me lembro dos momentos em quedeveria ter morrido e não morri. Aquele é um.Talvez eu me lembre errado, não é? A idadenubla as coisas antigas. Deve ter havido o somde pés raspando o convés, o grunhido dehomens golpeando, o fedor do casco imundo, oarfar dos feridos. Lembro-me do medoenquanto sentia o pânico que azeda as tripas efaz a mente gritar, o pânico da morte iminente.Era apenas um momento da vida, que logo se

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foi, um jorro de golpes e pânico, uma luta quemal valeria ser lembrada, mas ainda assim OlafGarra-de-Águia pode me acordar na escuridãoe eu fico deitado, ouvindo o mar bater na areia,e sei que ele estará me esperando no castelodos cadáveres, onde desejará saber se eu omatei por pura sorte ou se planejei aquelegolpe fatal. Também vai se lembrar de quechutei o machado de volta para sua mão, paraque ele pudesse morrer segurando uma arma, epor isso irá me agradecer.

Estou ansioso para vê-lo.

Quando Olaf estava morto seu navio foi tomadoe sua tripulação, trucidada. Finan havia lideradoo ataque contra o Águia do Mar. Eu sabia que onome era esse porque estava gravado em letrasrúnicas no poste de proa.

— Não foi uma luta — informou Finan,parecendo enojado.

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— Eu lhe disse.

— Alguns remadores encontraram armas —disse ele, desconsiderando o esforço com umaencolhida de ombros. Depois apontou para ocasco do Águia do Mar que estava encharcadode sangue. Cinco homens estavam agachadosali, tremendo, e Finan viu meu olhar interroga-

tivo. — São saxões, senhor — explicou porque os homens ainda estavam vivos.

Os cinco homens eram pescadores quecontaram que viviam num lugar chamadoFughelness. Eu mal conseguia entendê-los.Falavam inglês, mas de modo tão estranho queera como uma língua estrangeira, mas entendiquando disseram que Fughelness era uma ilhaestéril numa vastidão de pântanos e riachos.Um local de pássaros, vazio e com algumaspessoas pobres que viviam na lama pegandopássaros, enguias e peixes. Disseram que Olaf

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os havia capturado havia uma semana e osobrigara a ficar nos remos. Tinham sido 11,mas seis haviam morrido com a fúria do ataquede Finan antes que aqueles sobreviventesconseguissem convencer meus homens de queeles eram prisioneiros, e não inimigos.

Tiramos tudo dos inimigos, depois empilhamossuas cotas de malha, armas, braceletes e roupasao pé do mastro do Águia do Mar. No devidotempo, dividiríamos esses espólios. Cadahomem receberia uma parte — Finan ficariacom três e eu tomaria cinco. Eu deveria dar umterço a Alfredo e outro terço ao bispoErkenwald, mas raramente lhes entregava meussaques de batalha.

Jogamos os mortos nus no navio mercante, noqual formaram uma carga medonha de corpossujos de sangue.

Lembro-me de ter pensado em como aqueles

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corpos pareciam brancos e ao mesmo tempoem como seus rostos eram escuros. Umanuvem de gaivotas gritava para nós, querendodescer e bicar os cadáveres, mas os pássarosestavam nervosos demais com nossaproximidade, para ousar a tentativa. Agora onavio que estivera descendo do oeste com amaré havia nos alcançado. Era um belo navio deguerra, com a proa coroada por uma cabeça dedragão, a popa mostrando uma cabeça de lobo eo topo do mastro decorado com um cata-ventoem forma de corvo. Era um dos dois navios deguerra que havíamos capturado em Lundene, eRalla o havia batizado de Espada do Senhor.

Alfredo teria aprovado. Ele parou, e Ralla, seucomandante, pôs as mãos em concha.

— Muito bem!

— Perdemos três homens — gritei de volta.Todos os três haviam morrido na luta contra a

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equipe de abordagem de Olaf, e esses homensnós carregávamos a bordo do Águia do Mar. Euos teria jogado na água e deixado queafundassem para o abraço da deusa do mar, maseles eram cristãos e seus amigos queriam levá-los de volta a um cemitério cristão emLundene.

— Quer que eu o reboque? — gritou Ralla,indicando o navio mercante.

Respondi que sim, e houve uma pausa enquantoele fixava um cabo ao poste de proa docargueiro. Então, juntos, remamos para o nortepelo estuário do Temes. As gaivotas, agora sesentindo corajosas, estavam bicando os olhosdos mortos.

Era quase meio-dia e a maré havia afrouxado. Oestuário arfava oleoso e lento sob o sol altoenquanto remávamos lentamente, conservandoas forças, deslizando pelo mar prateado pelo

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sol. E lentamente, também, a costa norte doestuário surgiu.

Morros baixos tremeluziam no calor do dia. Eujá

havia remado por aquele litoral e sabia daexistência de morros cobertos de florestas paraalém daquela prateleira plana de terraencharcada. Ralla, que conhecia o litoral muitomelhor do que eu, nos guiou, e memorizei osmarcos enquanto nos aproximávamos. Noteium morro ligei-

ramente mais alto, um penhasco e umagrupamento de árvores, e soube que veriaessas coisas de novo porque estávamosremando nossos navios na direção deBeamfleot. Esse era o covil dos lobos do mar,a toca da serpente marinha, o refúgio deSigefrid.

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Esse também era o antigo reino dos saxões doleste, um reino desaparecido há muito, mashistórias antigas diziam que eles haviam sidotemidos. Era um povo do mar, saqueadores,mas os anglos, ao norte, os haviam conquistadoe agora esse litoral fazia parte do reino deGuthrum, a Ânglia Oriental.

Era um litoral sem lei, longe da capital deGuthrum.

Aqui, nos riachos que secavam durante a marébaixa, navios podiam esperar e, quando a marésubia, podiam sair de seus braços de mar paraatacar os navios mercantes que levavammercadorias subindo o Temes. Era o ninho dospiratas, e aqui Sigefrid, Erik e Haesten tinhamseu acampamento.

Deviam ter visto enquanto nos aproximávamos,mas o que viram? Viram o Águia do Mar, um deseus navios, e com ele outro navio

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dinamarquês, ambos orgulho-samentedecorados com cabeças de feras. Viram umterceiro navio, um cargueiro gorducho, eteriam presumido que Olaf estava retornandode um ataque bem-sucedido.

Deviam pensar que o Espada do Senhor era umnavio nórdico recém-chegado à Inglaterra.Resumindo, eles nos viram, mas nãosuspeitaram de nada.

Enquanto nos aproximávamos da terra ordeneique as cabeças de feras fossem retiradas dospostes de proa e popa. Essas coisas jamaiseram deixadas enquanto um navio entrava naságuas de seu lar, porque os animais estavam alipara amedrontar espíritos hostis, e Olaf teriapre-

sumido que os espíritos que habitavam osriachos de Beamfleot eram amigáveis, portantonão admitiria amedrontá-los. Assim, os vigias

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do acampamento de Sigefrid viram as cabeçasesculpidas serem retiradas e devem ter pensadoque éramos amigos remando para casa.

E fiquei olhando para aquela costa, sabendo queo destino iria me trazer de volta, e toquei opunho de Bafo de Serpente, porque a espadatambém tinha um destino e eu sabia que elavoltaria a este local. Este era um local paraminha espada cantar.

Beamfleot ficava abaixo de uma colina quedescia íngreme até o riacho. Um dospescadores, um homem mais novo que pareciaabençoado com mais inteligência do que oscompanheiros, ficou de pé a meu lado e deu onome dos lugares enquanto eu ia apontando.Aquele povoado sob o morro, confirmou ele,era Beamfleot, e o riacho que ele insistia emque era um rio era o Hothlege. Beamfleotficava na margem norte do Hothlege enquanto a

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margem sul era uma ilha baixa, escura, larga efeia.

— Caninga — disse o pescador.

Repeti os nomes, decorando-os enquantomemori-zava a terra que via.

Caninga era um lugar encharcado, uma ilha depântanos e junco, aves selvagens e lama. OHothlege, que mais me parecia um riacho doque um rio, era um emaranhado de bancos delama através do qual um canal serpenteava nadireção do morro acima de Beamfleot, e agora,enquanto rodeávamos a ponta leste de Caninga,pude ver o acampamento de Sigefrid coroandoaquele morro.

Era um morro verde, e suas muralhas, feitas deterra e en-cimadas por uma paliçada demadeira, pareciam uma cicatriz marrom nocume arredondado. A encosta junto à mu-

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ralha leste era um precipício, caindo até ondeum monte de navios estava encalhado na lamaexposta pela maré

baixa. A foz do Hothlege era guardada por umnavio que bloqueava o canal. Ele estava paradotransversalmente ao caminho d’água, contidocontra as marés por correntes na proa e napopa. Uma corrente levava até um enormeposte afundado na beira de Caninga, e a outraestava presa numa árvore que crescia solitáriana ilha menor que formava o banco norte daboca do canal.

— Ilha das Duas Árvores. — O pescador viupara onde eu estava olhando e disse o nome.

— Mas só há uma árvore lá — observei.

— No tempo de meu pai eram duas, senhor.

A maré havia virado. A enchente ia começando

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e as grandes águas jorravam para o estuário demodo que nossos três navios eram carregadosna direção do acampamento inimigo.

— Virar! — gritei para Ralla, e vi o alívio norosto dele. — Mas primeiro ponha de volta acabeça de dragão!

Assim os homens de Sigefrid viram a cabeça dedragão ser reposta, e a cabeça de águia sercolocada no alto da proa do Águia do Mar, edeviam saber que havia algo errado, nãosomente porque pusemos nossas feras, masporque viramos os navios e Ralla soltou opequeno cargueiro. E, enquanto eles olhavamde sua alta fortaleza, devem ter visto meuestandarte ser desenrolado no mastro do Águiado Mar. Gisela e suas aias tinham feito aquelabandeira com a cabeça de lobo, e eu a pendureipara que os homens de vigia soubessem quemhavia matado a tripulação do Águia do Mar.

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Então remamos para longe, fazendo forçacontra aquela maré montante. Viramos ao sul ea oeste ao redor de Caninga, depois deixamos anova maré forte nos levar rio acima atéLundene.

E o navio cargueiro, com o casco cheio decadáveres sangrentos bicados por gaivotas,subiu na mesma maré

pelo riacho até bater no navio longo ancoradode través no canal.

Agora eu tinha três navios de guerra, enquantomeu primo possuía 15. Ele havia levado aquelesbarcos capturados rio acima, onde, pelo que eusabia, estariam apodrecendo. Se eu possuíssemais dez navios e tivesse tripula-

ções para eles, poderia tomar Beamfleot, mastinha apenas três navios e o riacho sob afortaleza no alto estava atulhado de mastros.

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Mesmo assim eu estava mandando umamensagem.

A morte ia chegar a Beamfleot.

Primeiro a morte visitou Hrofeceastre, umacidade perto de Lundene, na margem sul doestuário do Temes, no antigo reino de Cent. Osromanos haviam feito uma fortaleza ali, e agorauma cidade de tamanho razoável havia crescidoao redor da velha fortificação. Cent, claro,fazia parte de Wessex havia muito tempo eAlfredo orde-nara que as defesas da cidadefossem reforçadas, o que foi feito comfacilidade, porque as antigas muralhas de terrada fortaleza romana continuavam de pé, e tudoo que precisava ser acrescentado era umaprofundamento do fosso, uma paliçada decarvalho e a destruição de algumas construçõesque ficavam do lado de fora e muito perto dafortificação. E era bom que o trabalho

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estivesse terminado porque, no início daqueleverão, uma grande frota de naviosdinamarqueses veio da Frankia. Elesencontraram refúgio na Ânglia Oriental, deonde navegaram para o sul, subiram a maré doTemes e encalharam seus navios no rioMedwaeg, afluente onde ficava Hrofeceastre.Haviam esperado invadir a cidade, saqueá-lacom fogo e terror, mas as novas muralhas e aforte guarnição os desafiou.

Recebi notícia da chegada deles antes deAlfredo.

Mandei um mensageiro para lhe contar sobre oataque e, no mesmo dia, levei o Águia do Marpelo Temes e subi o Medwaeg até descobrirque a situação era insustentável.

Pelo menos sessenta navios de guerra estavamancorados na margem lamacenta do rio, e doisoutros haviam sido acorrentados juntos

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atravessando o Medwaeg para deter qualquerataque por parte de navios saxões do oeste. Namargem dava para ver os invasores levantandoum barranco de terra, sugerindo que pretendiamcercar Hrofeceastre com sua própria muralha.

O líder dos invasores era um homem chamadoGunnkel Rodeson. Mais tarde fiquei sabendoque ele havia partido de uma temporada magrana Frankia, com esperança de tomar a prata quesupostamente estaria na grande igreja e nomosteiro de Hrofeceastre. Remei para longe deseus navios e, num rápido vento sudeste,levantei a vela do Águia do Mar e atravessei oestuário. Esperava encontrar Beamfleotdeserta, mas mesmo sendo óbvio que muitosnavios de Sigefrid tinham ido se juntar aGunnkel, 16 embarcações continuavam ali e aalta muralha do forte continuava apinhada dehomens e pontas de lanças. E assim retornamosa Lundene.

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— Você conhece Gunnkel? — perguntou-meGisela. Falávamos em dinamarquês, comoquase sempre.

— Nunca ouvi falar nele.

— Um novo inimigo? — perguntou ela,sorrindo.

— Eles não param de vir do norte. A gentemata um, e mais dois navegam para o sul.

— Um bom motivo para parar de matá-los,então.

— Isso foi o mais perto que Gisela chegou deme censu-rar por matar seu povo.

— Sou jurado a Alfredo — falei comoexplicação vazia.

No dia seguinte acordei e encontrei navios

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atravessando a ponte. Uma trompa me alertou.Ela foi tocada por uma sentinela nas muralhasde um pequeno burh que eu estava construindona extremidade sul da ponte. Chamamos aqueleburh de Suthriganaweorc, que significavasimplesmente defesa sul, e estava sendoconstruído e guardado por homens do fyrd deSuthrige. Quinze navios de guerra vinham rioabaixo, e remaram através da abertura durante aágua alta, quando o tumulto no meio ficavamais calmo. Todos os 15 navios passaram emsegurança, e vi que o terceiro tinha o estandartede meu primo A Ethelred, com o cavalo brancoempinando. Assim que estavam abaixo daponte, os navios remaram para os cais, nosquais atracaram em filas triplas. Parecia que AEthelred estava retornando a Lundene. Noinício do verão ele havia levado A Ethelflaed devolta às suas propriedades no oeste da Mércia,para lutar contra os ladrões de gado galeses queadoravam penetrar nas terras gordas da Mércia.

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Agora estava de volta.

Foi para seu palácio. A Ethelflaed, claro, estavacom ele, já que A Ethelred se recusava a deixá-la fora de suas vistas, mas não creio que issofosse amor. Era ciúme.

Meio esperei receber uma convocação à suapresença, mas isso não aconteceu e, na manhãseguinte, quando Gisela caminhou até opalácio, foi mandada embora. Foi informadaque a senhora A Ethelflaed não estava bem.

— Eles não foram grosseiros comigo — disseela.

— Apenas insistentes.

— Será que ela não está bem? — perguntei.

— Mais motivo ainda para ver uma amiga —disse Gisela, olhando pela janela aberta para

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onde o sol de verão cobria o Temes de pratabrilhante. — Ele a pôs numa jaula, não é?

Fomos interrompidos pelo bispo Erkenwald, oumelhor, por um de seus padres, anunciando achegada iminente do bispo. Sabendo queErkenwald nunca falaria abertamente diantedela, Gisela foi para a cozinha enquanto eu orecebia à porta.

Jamais gostei do sujeito. Com o tempo iríamosnos odiar, mas ele era leal a Alfredo, eficientee consciencioso.

Não perdeu tempo com amenidades, mas disseque havia emitido um mandato para juntar ofyrd local.

— O rei — disse ele — ordenou que homensde sua guarda pessoal se juntassem aos naviosde seu primo.

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— E eu?

— O senhor ficará aqui — disse ele brusca-mente

—, assim como eu.

— E o fyrd?

— É para a defesa da cidade. Eles substituem astropas reais.

— Por causa de Hrofeceastre?

— O rei está decidido a punir os pagãos, masenquanto ele está fazendo a obra de Deus emHrofeceastre, há uma chance de outros pagãosatacarem Lundene. Vamos impedir que umataque assim tenha sucesso.

Nenhum pagão atacou Lundene, assim fiqueisentado na cidade enquanto os acontecimentos

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em Hrofeceastre se desdobravam e,estranhamente, aqueles aconteci-

mentos ficaram famosos. Hoje em dia oshomens costu-mam me procurar e perguntamsobre Alfredo, porque sou um dos poucos vivosque se lembram dele. São todos homens daIgreja, claro, e querem ouvir falar de sua devo-

ção, da qual finjo não saber nada, e alguns, unspoucos, perguntam sobre suas guerras. Sabemsobre seu exílio nos pântanos e a vitória emEthandun, mas também querem ouvir falar deHrofeceastre. É estranho. Alfredo obteriamuitas vitórias sobre seus inimigos e semdúvida Hrofeceastre era uma delas, mas não foio grande triunfo que os homens hoje acreditamter sido.

Claro que foi uma vitória, mas deveria ter sidouma grande vitória. Havia a chance de destruirtoda uma frota de vikings e deixar o Medwaeg

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escuro com o sangue deles, mas a chance foiperdida. Alfredo confiou em que os defensoresde Hrofeceastre segurariam os invasores nolugar, e as muralhas e a guarnição fizeram oserviço enquanto ele juntava um exército decavaleiros. Ele tinha as tropas de sua realguarda doméstica, às quais acrescentou osguerreiros domésticos de cada ealdorman entreWintanceaster e Hrofeceastre, e todoscavalgaram para o leste, com o exércitoaumentando de tamanho à medida que viajavam,e se reuniram em Maeides Stana, logo ao sul daantiga fortaleza romana que agora era a cidadede Hrofeceastre.

Alfredo havia se movido rápido e bem. Acidade derrotara dois ataques dinamarqueses, eagora os homens de Gunnkel se viamameaçados não somente pela guarni-

ção de Hrofeceastre, mas por mais de mil dos

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melhores guerreiros de Wessex. Gunnkel,sabendo que perdera o jogo, mandou umenviado a Alfredo, que concordou emconversar. O que Alfredo esperava era achegada dos navios de A Ethelred na foz doMedwaeg, porque então Gunnkel ficaria preso,por isso Alfredo falou e falou, e os navioscontinuavam não chegando. E quando Gunnkelpercebeu que Alfredo não iria pagar para ele irembora, que a conversa era um ardil e que o reisaxão do oeste planejava lutar, fugiu. À meia-noite, depois de dois dias de negociaçõesevasivas, os invasores deixaram as fogueiras doacampamento acesas para sugerir que aindaestavam em terra, depois embarcaram nosnavios e partiram na vazante do Temes. Assim ocerco de Hrofeceastre terminou, e foi umagrande vitória no sentido de que um exércitoviking fora ignominiosamente expulso deWessex, mas as águas do Medwaeg nãoficaram densas de sangue.

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Gunnkel vivia, e os navios que tinham vindo deBeamfleot retornaram para lá, e alguns outrosnavios foram com eles, de modo que oacampamento de Sigefrid foi reforçado comnovas tripulações de guerreiros famintos. Orestante da frota de Gunnkel foi procurarpresas mais fáceis na Frankia ou encontrourefúgio na costa da Ânglia Oriental.

E, enquanto tudo isso acontecia, A Ethelredainda estava em Lundene. Reclamou que acerveja em seus navios estava azeda. Disse aobispo Erkenwald que seus homens não podiamlutar se tinham a barriga borbulhando e as tripasse esvaziando, por isso insistiu em que osbarris fossem esvaziados e enchidos de novocom cerveja recém-preparada. Isso demoroudois dias, e no dia seguinte ele insistiu emfazer julgamento no tribunal, um trabalho quepertencia propriamente a Erkenwald, mas que AEthelred, como ealdorman da Mércia, tinha

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todo o direito de fazer. Podia não ter desejadofalar comigo, e Gisela podia ter sido mandadaembora do palácio quando tentara visitar AEthelflaed, mas nenhum cidadão livre poderiaser proibido de testemunhar os julgamentos,assim nos juntamos à multidão no grande salãocom colunas.

A Ethelred estava esparramado numa cadeiraque poderia muito bem ser um trono. Tinhaencosto alto, bra-

ços esculpidos e era estofada com pele. Nãosei se nos viu e não quis reconhecer nossapresença, mas A Ethelflaed, que estava sentadanuma cadeira mais baixa ao lado dele,certamente nos viu. Encarou-nos com umaaparente falta de reconhecimento, depois virouo rosto para longe, como se estivesseentediada. Os casos que ocuparam A Ethelrederam triviais, mas ele insistiu em ouvir cada

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testemunha. A primeira queixa era sobre ummoleiro acusado de usar pesos falsos, e AEthelred interrogou implacavelmente astestemunhas. Seu amigo, Aldhelm, estavasentado atrás dele e ficava sussurrandoconselhos em seu ouvido. O rosto de Aldhelm,que já fora bonito, estava repleto de cicatrizespela surra que eu lhe dera, o nariz, torto e omalar, achatado. A mim, que haviafreqüentemente julgado esse tipo de questões,pareceu que o moleiro era obviamente culpado,mas A Ethelred e Aldhelm demoraram longotempo para chegar à mesma conclusão. Ohomem foi condenado à perda de uma orelha ea uma marca na bochecha. Depois um jovempadre leu alto um indiciamento contra umaprostituta acusada de roubar da caixa dospobres da igreja de Santo Alban. Foi enquanto opadre ainda estava falando que A Ethelflaedsubitamente se retesou.

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Sacudiu-se para a frente com uma das mãossegurando a barriga. Pensei que ela ia vomitar,mas nada saiu da boca aberta a não ser umgemido baixo, de dor. Ela ficou curvada àfrente, a boca aberta, e com a mão apertando abarriga que ainda não mostrava qualquer sinalde gravidez.

O salão havia silenciado. A Ethelred olhou paraa jovem esposa, aparentemente impotentediante do sofrimento, então duas mulheressaíram de uma passagem em arco e, depois dese ajoelharem diante de A Ethelred e,evidentemente recebendo sua permissão,ajudaram A Ethelflaed a sair. Meu primo, como rosto pálido, sinalizou para o padre.

— Recomece do início do indiciamento, padre—disse A Ethelred —, minha atenção foidistraída.

— Eu havia quase terminado, senhor —

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explicou o padre, solícito — e tenhotestemunhas que podem descrever o crime.

— Não, não, não! — A Ethelred ergueu a mão.—

Quero ouvir o indiciamento. Devemos sermeticulosos ao julgar.

Assim o padre recomeçou. As pessoasarrastavam os pés, entediadas, enquanto elefalava, e foi então que Gisela tocou meucotovelo.

Uma mulher havia acabado de falar com Giselaque, dando um puxão em minha túnica, virou-see seguiu a mulher por uma porta no fundo dosalão. Também fui, esperando que A Ethelredestivesse envolvido demais em seu fingimentode ser o juiz perfeito para ver nossa partida.

Seguimos a mulher por um corredor que já fora

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o lado recluso do pátio, mas em alguma épocao espaço entre as colunas da arcada aberta foipreenchido com paredes de pau-a-pique. Naextremidade do corredor, uma grosseira portade madeira fora pendurada num portal demadeira. Videiras esculpidas subiam pelaalvenaria. Do lado mais distante havia umcômodo com um piso de pequenos ladrilhosque mostravam algum deus romano lan-

çando um raio, e depois disso havia um jardimensolarado em que três pereiras lançavamsombra num trecho de grama cheio demargaridas e ranúnculos. A Ethelflaed nosesperava sob as árvores.

Não demonstrava qualquer sinal da perturbaçãoque a havia mandado meio agachada e comânsias de vômito para fora do salão. Em vezdisso, estava empertigada, as costas eretas euma expressão solene, mas essa solenidade se

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iluminou num sorriso quando viu Gisela. Asduas se abraçaram, e eu vi os olhos de AEthelflaed se fecharem como se estivesselutando contra as lágrimas.

— Não está doente, senhora? — perguntei.

— Só grávida — respondeu ela, com os olhosainda fechados. — Doente, não.

— Pareceu doente agora mesmo — disse eu.

— Eu queria falar com vocês. — Ela se soltoude Gisela. — E fingir que estava passando malfoi o único modo de ter privacidade. Ele nãosuporta quando fico enjoada. Me deixa sozinhoquando vomito.

— Você vomita com freqüência? — perguntouGisela.

— Toda manhã. Fico enjoada como um

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cachorro, mas todo mundo não fica?

— Desta vez, não — disse Gisela, e tocou seuamuleto. Usava uma pequena imagem de Frigg,mulher de Odin e rainha de Asgard, onde vivemos deuses. Frigg é a deusa da gravidez e doparto, e o amuleto deveria fazer com queGisela desse à luz em segurança. A pequenaimagem havia funcionado bem com nossos doisprimeiros filhos, e eu rezava diariamente paraque funcionasse de novo com o terceiro.

— Vomito toda manhã — disse A Ethelflaed—, depois me sinto bem pelo resto do dia. —Ela tocou a barriga, depois acariciou a deGisela, que agora estava distendida com o filho.— Você precisa me falar sobre o parto —disse A Ethelflaed ansiosa. — É doloroso, nãoé?

— Você esquece a dor porque fica inundadapela alegria.

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— Odeio dor.

— Há ervas — disse Gisela, tentando parecerconvincente — e há muita alegria quando acriança vem.

As duas falaram sobre parto, eu me encostei naparede de tijolos e fiquei olhando o trecho decéu azul para além das folhas das pereiras. Amulher que havia nos trazido tinha ido embora,e estávamos a sós. Em algum lugar para além daparede de tijolos havia um homem gritandocom recrutas, para manterem os escudos altos,e pude ouvir o som de cajados na madeiraenquanto eles treinavam.

Pensei na cidade nova, na Lundene fora dasparedes, onde os saxões haviam feito suacidade. Eles queriam que eu fizesse uma novapaliçada lá, e que a defendesse com minhaguarnição, mas eu estava recusando porqueAlfredo havia ordenado que eu recusasse e

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porque, com a cidade nova cercada por umamuralha, haveria fortificações demais paraproteger. Eu queria que aqueles saxões se mu-dassem para a cidade velha. Alguns tinhamvindo, querendo a proteção da antiga muralharomana e de minha guarnição, mas a maioriaficou teimosamente na cidade nova.

— O que você está pensando? — A Ethelflaedinterrompeu subitamente meus pensamentos.

— Está agradecendo a Tor por ser homem —disse Gisela — e não ter de dar à luz.

— Verdade — concordei —, e estava pensandoque, se as pessoas preferem morrer na cidadenova a viver na velha, devemos deixá-lasmorrer.

A Ethelflaed sorriu dessa declaração desumana.Em seguida veio até mim. Estava descalça eparecia muito pequena.

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— Você não bate em Gisela, não é? —perguntou olhando-me. Olhei para Gisela esorri.

— Não, senhora — falei gentilmente.

A Ethelflaed continuou me encarando. Tinhaolhos azuis com manchas castanhas, narizligeiramente arrebitado e o lábio inferior eramaior do que o superior. Os hematomas haviamsumido, mas um leve tom escuro numabochecha mostrava onde havia apanhado pelaúltima vez.

Parecia muito séria. Fiapos de cabelosdourados apareciam ao redor da touca.

— Por que não me alertou, Uhtred?

— Porque você não queria ser alertada.

Ela pensou nisso, depois assentiu abrupta-

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mente.

— Não, não queria, está certo. Eu me coloqueina jaula, não foi? Depois tranquei-a.

— Então destranque — falei com brutalidade.

— Não posso.

— Não? — perguntou Gisela.

— Deus tem a chave. Sorri daquilo.

— Jamais gostei de seu deus — respondi.

— Não é de espantar que meu marido diga quevocê é um homem mau — retrucou AEthelflaed com um sorriso.

— Ele diz isso?

— Diz que você é maligno, indigno deconfiança e traiçoeiro. Sorri, não falei nada.

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— Cabeça de porco — continuou Gisela com ali-tania —, simplório e brutal,

— Esse sou eu — confirmei.

— E muito gentil — terminou Gisela. AEthelflaed continuou me olhando.

— Ele tem medo de você — disse ela —, eAldhelm odeia você. Vai matá-lo, se puder.

— Ele pode tentar — respondi.

— Aldhelm quer que meu marido seja rei.

— E o que seu marido acha? — perguntei.

— Ele gostaria — disse A Ethelflaed, e issonão me surpreendeu. A Mércia carecia de umrei, e A Etheired tinha direito de reivindicar otrono, mas meu primo não era nada sem oapoio de Alfredo, e Alfredo não queria que

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nenhum homem fosse chamado de rei daMércia.

— Por que seu pai não se declarasimplesmente rei da Mércia? — perguntei a AEthelflaed.

— Acho que ele fará isso, um dia.

— Mas não por enquanto?

— A Mércia é um país orgulhoso — disse ela— e nem todo mércio ama Wessex.

— E você está aqui para fazer com que elesamem Wessex? Ela tocou a barriga.

— Talvez meu pai queira que seu primeiro netoseja rei da Mércia. Um rei com sangue saxãodo oeste, não é?

— E com o sangue de A Ethelred — falei

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azedamente. Ela suspirou.

— Ele não é um homem mau — disse em tom

pensativo, quase como se estivesse tentando seconvencer.

— Ele bate em você — argumentou Giselasecamente.

— Ele quer ser um homem bom — reagiu AEthelflaed. Em seguida tocou meu braço. —Ele quer ser como você, Uhtred.

— Como eu! — falei quase rindo.

— Temido — explicou. A Ethelflaed.

— Então por que está perdendo tempo aqui?Por que não está levando os navios para atacaros dinamarqueses?

A Ethelflaed suspirou.

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— Porque Aldhelm lhe diz para não fazer isso.Aldhelm diz que se Gunnkel ficar em Cent ouna Ânglia Oriental, meu pai terá de manter maisforças aqui. Ele tem de ficar olhando para oleste.

— Ele tem de fazer isso de qualquer modo —disse eu.

— Mas Aldhelm diz que se meu pai tiver de sepre-ocupar o tempo todo com uma horda depagãos no estuário do Temes, talvez nãoperceba o que acontece na Mércia.

— Onde meu primo irá se declarar rei?

— Será o preço que ele exigirá por defender afronteira norte de Wessex.

— E você será rainha.

Ela fez uma careta diante disso.

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— Acha que eu quero?

— Não — admiti.

— Não. O que quero é os dinamarqueses forada Mércia. Quero os dinamarqueses fora daÂnglia Oriental.

Quero os dinamarqueses fora da Nortúmbria.— Ela era pouco mais do que uma criança, umacriança magra com nariz arrebitado e olhosbrilhantes, mas tinha aço por dentro. Estavafalando comigo, que amava os dinamarquesesporque havia sido criado por eles, e comGisela, que era dinamarquesa, mas A Ethelflaednão tentou suavizar as palavras, Havia nela umódio pelos dinamarqueses, um ódio que elaherdara do pai. Então, de repente, estremeceu eo aço desapareceu. — E quero viver.

Eu não soube o que dizer. Mulheres morriamdando à luz. Muitas morriam. Eu havia feito

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sacrifícios a Odin e Tor nas duas vezes em queGisela dera à luz, e mesmo assim fiqueiapavorado, e me sentia apavorado agora porqueela estava grávida outra vez.

— A gente usa as mulheres mais sábias —disse Gisela —, confia nas ervas e nosamuletos que elas usam.

— Não — disse A Ethelflaed —, não é isso.

— Então o que é?

— Esta noite — disse A Ethelflaed —, à meia-noite.

Na igreja de Santo Alban.

— Esta noite? — perguntei absolutamenteconfuso.

— Na igreja? Ela me encarou com seus

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enormes olhos azuis.

— Eles podem me matar — disse ela.

— Não! — protestou Gisela, sem acreditar noque ouvia.

— Ele quer ter certeza de que o filho é dele! —interrompeu A Ethelflaed. — E claro que é!Mas querem ter certeza de que eu estejaapavorada!

Gisela abraçou A Ethelflaed e acariciou seucabelo.

— Ninguém vai matar você — disse baixinho,olhando para mim.

— Estejam na igreja, por favor — disse AEthelflaed numa voz tornada pequena porquesua cabeça estava esmagada contra os seios deGisela.

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— Estaremos com você — disse Gisela.

— Vão à igreja grande, a dedicada a Alban. —A Ethelflaed estava chorando baixinho. —Então, a dor é ru-

im demais? É como ser partida ao meio? É oque minha mãe diz!

— É ruim — admitiu Gisela —, mas leva a umaalegria como nenhuma outra. — Ela acariciouA Ethelflaed e me olhou como se eu pudesseexplicar o que iria acontecer à meia-noite, maseu não fazia idéia do que se passava na mentecheia de suspeitas de meu primo.

Então a mulher que havia nos levado até ojardim das pereiras surgiu à porta.

— Seu marido, senhora — disse ela comurgência.

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— Ele quer a senhora no salão.

— Preciso ir. — A Ethelflaed esfregou osolhos com a manga, sorriu para nós sem alegriae saiu rapidamente.

— O que vão fazer com ela? — perguntouGisela com raiva.

— Não sei.

— Feitiçaria? Alguma feitiçaria cristã?

— Não sei — repeti, e não sabia mesmo, sóque a convocação era para a meia-noite, a horamais escura, quando o mal aparece, osalteradores de forma percorrem a terra e oscaminhantes das sombras aparecem. À meia-noite.

OITO

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A Igreja de Santo Alban era antiga. As paredesmais baixas eram de pedra, o que significavaque os romanos a haviam construído, mas emalgum momento o teto caíra e a parte superiorda alvenaria havia despencado, de modo queagora quase tudo acima da altura das cabeçasera feito de madeira, barro e palha. A igrejaficava na rua principal de Lundene, que ia denorte a sul, partindo do que agora era chamadode Porta do Bispo até a ponte quebrada.

Uma vez Beocca me disse que a igreja fora umacapela real dos reis da Mércia, e talvezestivesse certo.

— E Alban foi soldado! — acrescentaraBeocca.

Ele sempre ficava entusiasmado ao falar sobreos santos cuja história conhecia e amava. — Demodo que você deveria gostar dele!

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— Eu deveria gostar simplesmente porque eleera soldado? — perguntei com ceticismo.

— Porque era um soldado corajoso! — disseBeocca. — E — ele fez uma pausa, fungandoempolgado porque tinha uma informaçãoimportante a compartilhar —, e quando foimartirizado, os olhos do carrasco caíram! —

Ele riu para mim com seu olho bom. —Caíram, Uhtred!

Simplesmente saltaram da cabeça! Foi ocastigo de Deus, vê? Se você matar um homemsanto, Deus arranca seus olhos!

— Então o irmão Jaenberth não era santo, nãoé?

— sugeri. Jaenberth era um monge que eu haviamatado dentro de uma igreja, para horror dopadre Beocca e de uma multidão de outros

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homens da igreja que observavam.

— Ainda estou com meus olhos, padre.

— Você merece ser cegado! — disse Beocca.—

Mas Deus é misericordioso. Às vezesestranhamente misericordioso, devo dizer.

Eu havia pensado em Alban durante um tempo.

— Por que — perguntei —, se o seu deus podearrancar os olhos de um homem, não salvousimplesmente a vida de Alban?

— Porque escolheu não fazer isso, claro! —respondeu Beocca, fungando, exatamente otipo de resposta que a gente sempre recebequando pede a um padre cristão para explicaroutro ato inexplicável de seu deus.

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— Alban era um soldado romano? — perguntei,optando por não questionar a naturezacaprichosamente cruel de seu deus.

— Era britão — disse Beocca —, um britãomuito corajoso e muito santo.

— Quer dizer que era galês?

— Claro que sim!

— Talvez por isso seu deus o tenha deixadomorrer

— observei, e Beocca fez o sinal-da-cruz erevirou o olho bom para o céu.

Assim, ainda que Alban fosse galês, e nós,saxões, não tenhamos amor pelos galeses,havia uma igreja dedicada a ele em Lundene, eessa igreja parecia tão morta quanto o cadáverdo santo quando Gisela, Finan e eu chegamos.

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A rua estava num negrume total. Algumas luzesescapavam pelas janelas de poucas casas, e umataverna ressoava com cantos numa rua próxima,mas a igreja estava negra e silenciosa.

— Não gosto disso — sussurrou Gisela, e eusoube que ela havia tocado o amuleto nopescoço. Antes de dei-xarmos a casa ela havialançado suas varetas de runas, esperando veralgum padrão para esta noite, mas a quedaaleatória das varetas a deixara perplexa.

Algo se moveu num beco próximo. Podia nãoser mais do que um rato, mas Finan e eu nosviramos, com as espadas sibilando para fora dasbainhas, e o ruído no beco parouimediatamente. Deixei Bafo de Serpentedeslizar de volta para a bainha forrada de pele.

Nós três estávamos usando capas escuras comca-puzes para que, se alguém estivesse olhando,pensasse que fôssemos padres ou monges

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enquanto estávamos parados diante da portaescura silenciosa da igreja de Santo Alban.

Nenhuma luz passava pelas bordas da porta.Tentei abri-la, puxando a corda curta quelevantava a trava por dentro, mas aparentementea porta estava trancada. Empurrei com força,chacoalhando-a, depois bati nas tábuas com opunho, mas não houve resposta. Então Finantocou meu braço e eu ouvi os passos.

— Na rua — sussurrei, e atravessamos até obeco no qual tínhamos ouvido o barulho. Apassagem pequena e apertada fedia a esgoto.

— São padres — sussurrou Finan.

Dois homens caminhavam pela rua. Ficarammo-mentaneamente visíveis à luz fraca lançadapor uma janela mal fechada, e vi seus mantospretos e o brilho das cruzes de prata queusavam no peito. Pararam diante da igreja e um

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deles bateu com força na porta trancada. Deutrês batidas, parou, deu uma batida, parou denovo, e bateu mais três vezes.

Ouvimos a barra ser levantada e o ranger dedobradiças enquanto a porta era aberta, então aluz jorrou para a rua enquanto uma cortinadentro da porta era puxada de lado. Um padreou monge deixou os dois homens entrarem naigreja iluminada por velas, em seguida espioupara um lado e outro da rua e eu soube que eleestava procurando quem quer que tivessesacudido a porta alguns havia alguns instantes.Uma pergunta devia ter sido gritada para ele,porque se virou e deu uma resposta:

— Não há ninguém aqui, senhor — disse,depois trancou a porta. Ouvi a tranca baixar e,por um instante, surgiu luz junto ao portal atéque a cortina dentro foi fechada e a igreja ficouescura de novo.

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— Esperem — disse eu.

Esperamos, escutando o vento farfalhar nostetos de palha e gemer nas casas arruinadas.Esperei por longo tempo, deixando a lembrançada porta chacoalhada ir sumindo.

— Deve ser quase meia-noite — sussurrouGisela.

— Quem quer que abra a porta — faleibaixinho

— tem de ser silenciado. — Eu não sabia o queestava acontecendo dentro da igreja, mas sabiaque era tão secreto a ponto de a igreja estartrancada e ser necessária uma batida em códigopara entrar, e também sabia que não éramosconvidados, e que se o homem que abrisse aporta fizesse algum protesto, talvez jamaisdescobríssemos o perigo que A Ethelflaedcorria.

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— Deixe-o comigo — disse Finan, alegre.

— Ele é um homem da Igreja — sussurrei. —Isso não preocupa você?

— No escuro, senhor, todos os gatos sãopretos.

— O que quer dizer...

— Deixe-o comigo — repetiu o irlandês.

— Então vamos à igreja — disse eu, e nós trêsatravessamos a rua e eu bati com força na porta.Bati três vezes, dei uma batida isolada, depoisbati três vezes de novo.

Demorou longo tempo para a porta ser aberta,mas finalmente a barra foi levantada e a portafoi empurrada para fora.

— Eles já começaram — sussurrou uma figura

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vestida com manto, depois ofegou quandosegurei sua gola e o puxei para a rua, ondeFinan bateu em sua barriga. O

irlandês era um homem pequeno, mas tinhaforça extraordinária nos braços magros, e afigura vestida de manto se dobrou ao meioofegando subitamente. A cortina in-terna haviacaído sobre a abertura e ninguém dentro daigreja podia ver o que acontecia lá fora. Finandeu outro soco no sujeito, tateando-o, depoisse ajoelhou junto à

figura caída.

— Vá embora — sussurrou Finan — se querviver.

Vá para muito longe da igreja e esqueça quenos viu. Entendeu?

— Entendi — respondeu o homem.

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Finan deu-lhe um tapa na cabeça para reforçar aordem, depois se levantou e vimos a figuraescura ficar de pé e descer o morrocambaleando. Esperei um pouco para garantirque ele fora mesmo embora, depois nós trêsentramos e Finan fechou a porta e pôs a barranos suportes.

E eu empurrei a cortina de lado.

Estávamos na parte mais escura da igreja, masainda me sentia exposto porque a outraextremidade, na qual ficava o altar, eratotalmente iluminada com velas de junco e decera. Uma fileira de homens com mantosestava pa-

rada diante do altar e suas sombras nosencobriam. Um daqueles padres se virou paranós, mas só viu três figuras com capa e capuz edeve ter presumido que fôssemos mais padres,porque se virou de novo para o altar.

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Demorei um instante para ver quem estava notablado largo e baixo do altar, porque estavamescondidos pelos padres e monges, mas entãotodos os homens da igreja fizeram reverênciapara o crucifixo de prata e vi A Ethelred eAldhelm parados do lado esquerdo do altar, e obispo Erkenwald do lado direito. Entre elesestava A Ethelflaed. Usava uma camisola delinho presa com cinto logo abaixo dos seiospequenos e o cabelo louro estava solto, comose ela fosse outra vez uma menina. Pareciaapavorada. Havia uma mulher mais velha atrásde A Ethelred. Tinha olhos duros e seu cabelogrisalho estava enrolado num coque apertadono topo do crânio.

O bispo Erkenwald rezava em latim, e aintervalos de alguns minutos os padres e osmonges que olhavam —eram nove no total —ecoavam suas palavras. Erkenwald usava mantosvermelhos e brancos sobre os quais haviam

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sido costuradas cruzes feitas de jóias. Sua voz,sempre áspera, ecoava nas paredes de pedra, eas respostas dos homens da Igreja eram ummurmúrio fraco. A Ethelred parecia entediado,enquanto Aldhelm aparentava um deleitesilencioso nos mistérios que se desdobravamnaquele san-tuário iluminado pelas chamas.

O bispo terminou suas orações, todos oshomens que olhavam disseram amém e houveuma ligeira pausa antes de Erkenwald pegar umlivro no altar. Ele desem-brulhou as capas decouro e depois virou as páginas rígi-das até umlugar marcado com uma pena de gaivota.

— Esta — falou em inglês agora — é a palavrado Senhor.

— Ouçam a palavra do Senhor — murmuraramos padres e os monges.

— Se um homem teme que sua esposa tenha

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sido infiel — falou o bispo mais alto, com avoz rascante repetida pelo eco —, deve levá-ladiante do sacerdote! E deve levar umaoferenda! — Ele olhou objetivamente para AEthelred, que vestia um manto verde-clarosobre uma cota de malha completa. Estava atécom as espadas, algo que a maioria dos padresjamais permitiria numa igreja. — Umaoferenda! — repetiu o bispo.

A Ethelred levou um susto, como se tivessesido acordado de um semi-sono. Remexeunuma bolsa pendurada no cinto da espada epegou um pequeno saco que estendeu para obispo.

— Centeio — disse ele.

— Como o Senhor Deus ordenou — respondeuErkenwald, mas não pegou o centeio oferecido.

— E prata — acrescentou A Ethelred,

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rapidamente pegando um segundo saco nabolsa.

Erkenwald pegou as duas oferendas e colocou-as diante do crucifixo. Fez uma reverência paraa imagem brilhante de seu deus pregado, depoispegou de novo o livro grande.

— Esta é a palavra do Senhor — disse comferocidade. — Que levemos água benta numvaso de barro, e do pó que há no piso dotabernáculo o padre deve tomar, e deve colocaresse pó na água.

O livro foi recolocado no altar enquanto umpadre oferecia ao bispo um grosseiro copo decerâmica que evidentemente continha águabenta, porque Erkenwald fez uma reverência aele, depois se abaixou e raspou um punhado deterra e poeira. Colocou a terra na água, depoiscolocou o copo no altar antes de pegar o livrode novo.

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— Digo-vos, mulher — exclamouselvagemente, olhando do livro para AEthelflaed. — Se nenhum homem se deitouconvosco, e se não vos desviastes paracompartilhar atos impuros com outro homemque não o vosso es-poso, estareis livre damaldição desta água amarga!

— Amém — disse um dos padres.

— A palavra do Senhor! — disse outro.

— Mas se vos desviastes para outro homem —Erkenwald cuspia as palavras enquanto as lia —e se fostes desonrada, que o Senhor faça vossacoxa apodrecer e vossa barriga inchar. — Elerecolocou o livro no altar. — Fa-lai, mulher.

A Ethelflaed simplesmente olhou para o bispo.Não disse nada. Seus olhos estavamarregalados de medo.

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— Fale mulher! — rosnou o bispo. — Vocêsabe que palavras deve dizer! Diga!

A Ethelflaed parecia apavorada demais parafalar.

Aldhelm sussurrou algo a A Ethelred, queassentiu, mas não fez nada. Aldhelm sussurroude novo, e de novo A Ethelred assentiu, e destavez Aldhelm avançou um passo e bateu em AEthelflaed. Não foi com força, apenas um tapana cabeça, mas o bastante para me obrigar a darum passo involuntário adiante. Gisela agarroumeu braço, contendo-me.

— Fale, mulher — ordenou Aldhelm a AEthelflaed.

— Amém — conseguiu sussurrar A Ethelflaed.—

Amém.

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A mão de Gisela ainda estava em meu braço.Dei um tapinha em seus dedos como sinal deque estava cal-

mo. Sentia raiva, perplexidade, mas estavacalmo. Acariciei a mão de Gisela, depoisbaixei os dedos para o punho de Bafo deSerpente.

Evidentemente, A Ethelflaed havia falado aspalavras certas porque o bispo Erkenwaldpegou o copo de cerâmica no altar. Ergueu-ono alto, diante do crucifixo, como se omostrasse a seu deus, depois derramou umpouco da água suja de poeira num cálice deprata. Levantou de novo o copo de cerâmica,em seguida ofereceu-o cerimoniosamente a AEthelflaed.

— Beba a água amarga — ordenou ele.

A Ethelflaed hesitou, depois viu o braço de

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Aldhelm coberto pela cota de malha e prontopara bater nela de novo, por isso estendeu amão obedientemente para o copo. Pegou-o,segurou-o junto à boca por um breve momento,depois fechou os olhos, franziu o rosto e bebeuo conteúdo. Os homens olhavam atentamente,certificando-se de que ela engolisse tudo. Aschamas das velas tre-meluziram numa correntede vento que entrou pelo buraco de fumaça noteto, e em algum lugar na cidade um cão uivousubitamente. Agora Gisela estava pressionandomeu braço, os dedos apertados como garras.

Erkenwald segurou o copo e, quando ficousatisfeito ao ver que estava vazio, assentiu paraA Ethelred.

— Ela bebeu — confirmou o bispo. O rosto deA Ethelflaed brilhava com as lágrimasrefletindo a luz osci-lante do altar, no qual,como vi agora, havia uma pena de escrever, um

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pote de tinta e um pedaço de pergaminho.

— O que faço agora — disse Erkenwald comsolenidade — está de acordo com a palavra deDeus.

— Amém — disseram os padres, A Ethelredestava olhando a esposa como se esperasse quea carne dela co-

meçasse a apodrecer diante de seus olhos,enquanto a própria A Ethelflaed tremia tantoque tive medo de que ela desmoronasse.

— Deus me ordena a anotar as maldições —anunciou o bispo, depois se curvou para o altar.A pena raspou por longo tempo. A Ethelredainda estava olhando atentamente para AEthelflaed. Os padres também olhavam-naenquanto o bispo continuava rabiscando. — Etendo escrito as maldições — disse Erkenwald,tampando o pote de tinta —, apago-as segundo

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os mandamentos de Deus Todo-Poderoso,nosso Pai no céu.

— Ouçam a palavra do Senhor — disse umpadre.

— Louvado seja Seu nome — disse outro.

Erkenwald pegou o cálice de prata no qual haviaderramado uma pequena quantidade da águasuja e derramou o conteúdo nas palavrasrecém-escritas. Esfregou a tinta com um dosdedos, depois levantou o pergaminho paramostrar que o que havia escrito fora manchadoaté

sumir.

— Está feito — disse em tom pomposo,depois assentiu para a mulher grisalha. — Façao seu trabalho! —ordenou.

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A mulher velha e de rosto amargo foi até o ladode A Ethelflaed. A garota se encolheu paralonge, mas Aldhelm segurou seus ombros. AEthelflaed gritou de terror, e a resposta deAldhelm foi dar-lhe um cascudo com força nacabeça. Pensei que A Ethelred deveria reagir aesse ataque feito por outro homem contra suamulher, mas evidentemente aprovava, porquenão fez nada além de olhar enquanto Aldhelmsegurava A Ethelflaed pelos ombros de novo.Segurou-a imóvel enquanto a velha parava paralevantar a bainha da camisola de linho de AEthelflaed.

— Não! — protestou A Ethelflaed numa vozgemi-da, desesperada.

— Mostre-a a nós! — disse Erkenwaldrispidamente. — Mostre suas coxas e suabarriga!

A mulher levantou obedientemente a camisola,

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mostrando as coxas de A Ethelflaed.

— Chega! — Eu gritei essa palavra.

A mulher se imobilizou. Os padres estavam sea-baixando para olhar as pernas nuas de AEthelflaed e esperando que o vestido fosselevantado para revelar a barriga.

Aldhelm ainda a segurava pelos ombros,enquanto o bispo olhava boquiaberto para assombras junto à porta da igreja, de onde euhavia falado.

— Quem está aí? — perguntou Erkenwald.

— Seus desgraçados malignos — faleienquanto avançava, meus passos ecoando nasparedes de pedra —, seus bostas imundos. —Lembro-me da raiva que senti naquela noite,uma fúria fria e selvagem que havia me levado aintervir sem pensar nas conseqüências. Todos

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os padres de minha mulher pregam dizendo quea raiva é um pecado, mas um guerreiro que nãotem raiva não é guerreiro de verdade. A raiva éuma espora, um aguilhão, suplanta o medo parafazer o homem lutar, e naquela noite eu lutariapor A Ethelflaed.

— Ela é filha de um rei — rosnei. — Portanto,baixe o vestido!

— Você fará o que Deus ordena — rosnouErkenwald para a mulher, mas ela não ousavabaixar nem levantá-lo mais.

Abri caminho por entre os padres curvados,chutando um na bunda com tanta força que elefoi lançado no tablado aos pés do bispo.Erkenwald havia apanhado seu cajado, com oremate curvo como uma bengala de pastor, egirou-o em minha direção, mas conteve ogolpe ao ver meus olhos. Desembainhei Bafode Serpente, seu aço longo raspando e

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sibilando na boca da bainha.

— Quer morrer? — perguntei a Erkenwald, eele ouviu a ameaça em minha voz e seu cajadode pastor baixou lentamente. — Baixe ovestido — ordenei à mulher.

— Ela hesitou. — Largue, sua cadela velha eimunda —rosnei, depois senti que o bispo haviase movido e girei Bafo de Serpente de modoque a lâmina tremeluziu logo abaixo dagarganta dele. — Uma palavra, bispo, só umapalavra, e você vai encontrar seu deus aqui eagora. Gisela!

— chamei, e Gisela veio ao altar. — Leve abruxa e leve A Ethelflaed, e veja se a barrigadela inchou ou se as coxas apodreceram. Façamisso numa privacidade decente. E

você — virei a lâmina para apontar para o rostode Aldhelm, cheio de cicatrizes —, tire as

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mãos da filha do rei Alfredo, ou eu voupendurá-lo na ponte de Lundene e os pássarosvão bicar seus olhos e comer sua língua.

— Ele soltou A Ethelflaed.

— Você não tem o direito... — disse AEthelred, encontrando a própria língua.

— Vim aqui com um recado de Alfredo —interrompi-o. — Ele quer saber onde seusnavios estão. Quer que você zarpe. Quer quevocê cumpra com seu dever.

Quer saber por que está acovardado aquienquanto há dinamarqueses para matar. — Pusa ponta de Bafo de Serpente na bainha e deixei-a entrar em casa. — E — continuei quando osom da espada havia acabado de ecoar na igreja— ele quer que você saiba que a filha épreciosa para ele, e que não gosta de que ascoisas preciosas para ele sejam maltratadas.

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Inventei essa mensagem, claro.

A Ethelred apenas me encarou. Não disse nada,mas havia uma expressão indignada em seurosto presun-

çoso. Será que acreditava que eu tinha vindocom uma mensagem de Alfredo? Não dava parasaber, mas ele deve ter temido uma mensagemassim, porque sabia que estivera fugindo aodever.

O bispo Erkenwald estava igualmenteindignado.

— Você ousa trazer uma espada para a casa deDeus? — perguntou furioso.

— Ouso mais do que isso, bispo. Já ouviu falardo irmão Jaenberht? Um de seus preciososmártires? Eu o matei dentro de uma igreja eseu deus não o salvou nem impediu minha

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espada. — Sorri, lembrando-me de minhaprópria perplexidade ao cortar a garganta deJaenberht. Eu odiava aquele monge. — Seu reiquer que a obra de Deus seja feita — falei aErkenwald. — E essa obra é matardinamarqueses, não se divertir olhando a nudezde uma menina.

— Isto é a obra de Deus! — gritou A Ethelred.

Quis matá-lo então. Senti o tremor enquantominha mão ia para o punho de Bafo deSerpente, mas nesse momento a bruxa velharetornou.

— Ela... — começou a mulher, depois ficouem silêncio ao ver o olhar de ódio que euestava dando a A Ethelred.

— Fale, mulher! — ordenou Erkenwald.

— Ela não mostra nenhum sinal, senhor —

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disse a mulher, de má vontade. — A pele nãotem marcas.

— Barriga e coxas? — pressionou Erkenwald.

— Ela está pura — falou Gisela de um recessona lateral da igreja. Estava com o braço aoredor de A Ethelflaed e sua voz era amarga.

Erkenwald pareceu desconcertado com aresposta, mas se conteve e reconheceu,relutante, que A Ethelflaed estava mesmo pura.

— Ela evidentemente não foi desonrada,senhor —disse ele a A Ethelred,ostensivamente me ignorando. Finanpermanecia atrás dos padres que assistiam, esua presença era uma ameaça para eles. Oirlandês estava sorrindo e olhando Aldhelm,que, como A Ethelred, usava espada. Qualquerum dos dois poderia tentar me matar, masnenhum tocou sua arma.

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— Sua esposa — disse eu a A Ethelred — nãoestá

desonrada. Ela foi desonrada por você.

Seu rosto subiu rapidamente, como se euhouvesse cuspido nele.

— Você é... — começou ele.

Nesse momento soltei a raiva. Eu era muitomais alto e largo do que meu primo, e o impelide costas do altar até a parede lateral da igreja,e ali falei com ele num sibilar de fúria. Só elepôde ouvir o que eu disse. Aldhelm poderia sesentir tentado a resgatar A Ethelred, mas Finanestava vigiando-o, e a reputação do irlandês erasuficiente para garantir que Aldhelm não semexesse.

— Conheço A Ethelflaed desde que ela eracriança

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— falei a A Ethelred — e a amo como se fosseminha filha. Você entende isso, seu earsling?Ela é como uma filha para mim, e é uma boaesposa para você. E se você tocar nela de novo,primo, se eu vir mais um machucado no rostode A Ethelflaed, vou encontrar você e matá-lo.—

Parei, e ele ficou em silêncio.

Virei-me e olhei para Erkenwald.

— E o que você teria feito, bispo — falei comdesprezo —, se as coxas da senhora AEthelflaed tivessem apodrecido? Teria ousadomatar a filha de Alfredo?

Erkenwald murmurou alguma coisa sobrecondená-la a um convento, não que eu meimportasse. Eu havia parado perto de Aldhelm eolhei-o.

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— E você bateu numa filha do rei.

Bati nele com tanta força que ele girou nadireção do altar e cambaleou tentandorecuperar o equilíbrio. Esperei, dando-lhe achance de reagir, mas não lhe restava coragem,por isso bati de novo, afastei-me e levantei avoz para que todo mundo na igreja pudesseouvir:

— E o rei de Wessex ordena que o senhor AEthelred zarpe. Alfredo não havia mandado essaordem, mas dificilmente A Ethelred ousariaperguntar ao sogro se ele havia mandado ounão. Quanto a Erkenwald, eu tinha certeza deque ele contaria a Alfredo que eu havia levadouma espada e feito ameaças dentro de umaigreja, e Alfredo ficaria com raiva disso.Ficaria com mais raiva de mim por terdesonrado uma igreja do que com os padres porter humilhado sua filha, mas eu queria que

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Alfredo ficasse com raiva. Queria que ele mecastigasse me liberando do juramento e assimme retirando de seu serviço. Queria queAlfredo me tornasse um homem livre de novo,um homem com uma espada, um escudo einimigos. Queria me livrar de Alfredo, masAlfredo era inteligente demais para permitirisso. Sabia exatamente como me castigar.

Faria com que eu mantivesse o juramento.

Somente dois dias mais tarde, muito depois deGunnkel ter fugido de Hrofeceastre, A Ethelredfinalmente zarpou. Sua frota de 15 navios deguerra, a mais pode-rosa que Wessex já haviareunido, deslizou rio abaixo com a marévazante, impelida por uma mensagem furiosaentregue a A Ethelred por Steapa. O grandalhãohavia caval-gado de Hrofeceastre, e amensagem de Alfredo exigia saber por que afrota se demorava enquanto os vikings

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derrotados fugiam. Steapa ficou aquela noiteem nossa casa.

— O rei está infeliz — disse ele durante ojantar.

— Nunca o vi com tanta raiva! — Gisela estavafascinada com a visão de Steapa comendo. Eleusava uma das mãos para segurar costelas deporco que descarnava com os dentes, enquantoa outra colocava pão num canto livre da boca.— Com muita raiva — disse ele, parando parabeber cerveja. — No Sture — acrescentoumisteriosamente, pegando mais um pedaço decostelas.

— No Sture?

— Foi onde Gunnkel fez um acampamento, eAlfredo acha que ele provavelmente voltou paralá.

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O Sture era um rio na Ânglia Oriental, ao nortedo Temes. Eu havia estado lá uma vez e melembrava de uma foz larga, protegida dastempestades do leste por uma longa faixa deterra arenosa.

— Lá ele está em segurança — disse eu.

— Em segurança? — perguntou Steapa.

— É território de Guthrum.

Steapa fez uma pausa para tirar uma lasca decarne de entre os dentes.

— Guthrum o abrigou lá. Alfredo não gostou.Acha que Guthrum tem de levar um tapa.

— Alfredo vai entrar em guerra contra a ÂngliaOriental? — perguntou Gisela, surpresa.

— Não, senhora. Só vai lhe dar um tapa —

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disse Steapa, fazendo barulho com asmandíbulas em algum pedaço de osso. Eu acheique ele havia comido meio porco, e nãodemonstrava sinais de estar diminuindo oritmo.

— Guthrum não quer guerra, senhora. Mas temde aprender a não abrigar pagãos. Por isso eleestá mandando o senhor A Ethelred atacar oacampamento de Gunnkel no Sture, e já queestá com a mão na massa, roubar um pouco dogado de Guthrum. Só lhe dar um tapa. — Steapame dirigiu um olhar solene.

— Uma pena que você não pode ir.

— É mesmo — concordei.

E por que Alfredo teria escolhido A Ethelredpara liderar uma expedição para punirGuthrum? A Ethelred nem era saxão do oeste,apesar de ter feito juramento a Alfredo de

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Wessex. Meu primo era mércio, e os mérciosnunca foram famosos por seus navios. Entãopor que escolher A Ethelred? A únicaexplicação que pude descobrir era que o filhomais velho de Alfredo, Eduardo, ainda era umacriança que não tinha mudado de voz, e opróprio Alfredo era um homem doente. Eletemia pela própria morte e pelo caos quepoderia baixar sobre Wessex se Eduardosubisse ao trono ainda criança. Assim, Alfredoestava oferecendo a A Ethelred a chance de seredimir pelo fracasso em prender os navios deGunnkel no Medwaeg e uma oportunidade defazer reputação suficiente para convencer osthegns e ealdormen de Wessex que A Ethelred,senhor da Mércia, poderia governá-los casoAlfredo morresse antes que Eduardo tivesseidade suficiente para sucedê-lo.

A frota de A Ethelred levava uma mensagemaos dinamarqueses da Ânglia Oriental. Se você

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ataca Wessex, estava dizendo Alfredo, nósatacaremos você. Vamos de-vastar seu litoral,queimar suas casas, afundar seus navios edeixar suas praias fedendo a morte. Alfredohavia transformado A Ethelred num viking, e eusenti ciúme. Queria pegar meus navios, masrecebera ordens de ficar em Lundene. Eraimpressionante. Os maiores navios capturadostinham trinta remos de cada lado, e havia seisdesses, ao passo que o menor tinha fileiras devinte. A Ethelred estava liderando quase milhomens em seu ataque, e todos eram homensbons; guerreiros da casa de Alfredo e de suaspróprias tropas treinadas. A Ethelred zarpounum dos grandes navios, que um dia haviacarregado uma grande cabeça de corvo, preto-queimado, na proa, mas aquela imagem haviasumido e agora o navio se chamava Rodbora,que significava “carregador da cruz”. Agora seuposte de proa era decorado com uma enormecruz e o navio levava guerreiros a bordo, padres

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e, claro, A Ethelflaed, porque A Ethelred não iaa lugar algum sem ela.

Era verão. As pessoas que jamais viveram numacidade durante o verão não podem imaginar ofedor nem as moscas. Milhafres vermelhos seamontoavam nas ruas, vivendo de carniça.Quando o vento vinha do norte o cheiro deurina e esterco de animais nos poços doscurtumes se misturava com o fedor da cidade,de esgoto huma-no. A barriga de Giselacrescia, e meu medo por ela crescia junto.

Eu ia para o mar o máximo que podia. Levamoso Águia do Mar e o Espada do Senhor rioabaixo na maré

vazante e voltávamos na montante. Caçávamosnavios de Beamfleot, mas os homens deSigefrid haviam aprendido a lição e jamaissaíam de seu riacho com menos de três naviospor companhia. Mas, ainda que esses grupos de

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navios caçassem presas, o comércio finalmenteestava chegando a Lundene, porque osmercadores haviam a-

prendido a navegar em grandes comboios. Umadúzia de navios fazia companhia mútua, todoscom homens armados a bordo, de modo que ascolheitas de Sigefrid eram escassas, mas asminhas também.

Esperei duas semanas por notícias daexpedição de meu primo, e fiquei sabendo deseu destino num dia em que fazia minhaexcursão usual descendo o Temes. Semprehavia um momento abençoado em quedeixávamos a fumaça e o cheiro de Lundene esentíamos os ventos limpos do mar. O rioserpenteava em pântanos largos onde as garçasespreitavam. Lembro-me de que estava feliznaquele dia porque havia borboletas azuis emtoda parte.

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Elas pousavam no Águia do Mar e no Espada doSenhor, que vinha logo atrás. Um inseto seempoleirou em meu dedo estendido e ficouabrindo e fechando as asas.

— Isso significa sorte, senhor — disse Sihtric.

— É mesmo?

— Quanto mais tempo ela ficar aí, mais tempovai durar sua sorte — disse Sihtric, e estendeua mão, mas nenhuma borboleta azul pousounela.

— Parece que você não tem sorte — falei emtom leve. Fiquei olhando a borboleta azul nodedo e pensei em Gisela e no parto. Fique aí,ordenei silenciosamente ao inseto, e ele ficou.

— Eu tenho sorte — disse Sihtric, rindo.

— Tem?

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— Ealhswith está em Lundene. — Ealhswithera a puta que Sihtric amava.

— Há mais trabalho para ela em Lundene doque em Coccham — disse eu.

— Ela parou de fazer isso — respondeu Sihtricenfaticamente. Olhei-o, surpreso.

— Parou?

— Parou, senhor. Ela quer se casar comigo.

Ele era um rapaz bonito, com cara de falcão,cabelos pretos e corpo bom. Eu o conheciadesde que ele era praticamente criança, esupunha que isso alterava minha impressão aseu respeito, porque ainda via o garoto cheio demedo cuja vida eu havia poupado em CairLigualid.

Ealhswith talvez visse o rapaz que ele havia se

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tornado.

Desviei o olhar, espiando um pequeno fio defumaça que subia dos pântanos ao sul, e meperguntei de quem seria aquele fogo, e comoaquelas pessoas viviam no pântano infestado demosquitos.

— Você está com ela há muito tempo — disseeu.

— É, senhor.

— Mande-a falar comigo. — Sihtric era juradoa mim e precisava de minha permissão paracasar, porque sua esposa iria se tornar parte deminha casa e, portanto, de minharesponsabilidade. — Vou falar com ela — a-crescentei.

— O senhor vai gostar dela. Sorri disso.

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— Espero que sim.

Um bando de cisnes passou voando entrenossos barcos, as asas ruidosas no ar de verão.Eu me sentia contente, a não ser por meustemores com relação a Gisela, e a borboletaestava afastando essa preocupação, mas depoisde um tempo ela decolou de meu dedo e vooudesajeitada na esteira dos cisnes, indo para osul. Toquei o punho de Bafo de Serpente,depois meu amuleto, e fiz uma oração a Figgpara que Gisela ficasse em segurança.

Era meio-dia antes de chegarmos perto deCaninga.

A maré estava baixa e as planícies de lama seestendiam até o calmo estuário no qual éramosos únicos navios. Le-

vei o Águia do Mar para perto da costa sul deCaninga e olhei na direção do riacho de

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Beamfleot, mas não pude ver nada útil atravésda névoa de calor que tremeluzia sobre a ilha.

— Parece que foram embora — comentouFinan.

Como eu, ele estava olhando para o norte.

— Não — disse eu. — Há navios lá. — Penseique podia ver os mastros dos navios de Sigefridatravés do ar trêmulo.

— Não tantos quanto deveria — disse Finan.

— Vamos dar uma olhada.

Assim, remamos ao redor da ponta leste da ilhae descobrimos que Finan estava certo. Mais demetade dos navios de Sigefrid havia deixado opequeno rio Hothlege.

Apenas três dias antes havia 36 mastros no

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riacho, e agora eram apenas 14. Eu sabia que osnavios desaparecidos não tinham subido o rioem direção a Lundene, porque os teríamosvisto, e com isso restavam apenas duas opções;ou tinham ido para o leste e o norte ao redor dolitoral da Ânglia Oriental ou então haviamremado para o sul, para fazer outro ataquecontra Cent. O sol, tão quente, alto e luminoso,refletia-se piscando nas pontas de lança dasfortificações no acampamento elevado.Homens nos olhavam daquela muralha alta enos viram dar a volta, levantar as velas e usarum fraco vento nordeste, que havia começadodesde o amanhecer, para nos levar para o sulatravés do estuário. Eu estava procurando umagrande mancha de fumaça que me informasseque um grupo havia desembarcado para atacar,saquear e queimar alguma cidade, mas o céusobre Cent estava límpido. Baixamos a vela eremamos para o leste em direção à foz doMedwaeg, e ainda não vimos fumaça, e então

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Finan, de olhos afiados e postado em nossaproa, viu os navios. Seis navios.

Eu estava procurando uma frota de pelo menosvinte barcos, e não um pequeno grupo denavios, e a princípio não liguei, presumindoque fossem navios mercantes mantendocompanhia enquanto remavam na direção deLundene, mas então Finan voltou correndo porentre os bancos dos remadores.

— São navios de guerra — disse ele.

Olhei para o leste. Podia ver as manchasescuras dos cascos, mas meus olhos não eramtão bons quanto os de Finan, e não pudeidentificar as formas. Os seis cascostremeluziam na névoa de calor.

— Estão se movendo? — perguntei.

— Não, senhor.

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— Por que ficar ancorados ali? — imaginei. Osnavios estavam do outro lado da foz doMedwaeg, junto da ponta chamada Scerhnesse,que significa “ponta de terra luminosa”, e eraum lugar estranho para ancorar, porque ascorrentes redemoinhavam fortes perto da pontabaixa.

— Acho que estão encalhados, senhor — disseFinan. Se os navios estivessem ancorados eupresumiria que estavam esperando a maré paralevá-los rio acima, mas em geral os barcosencalhados significavam que homens tinhamido à terra, e o único motivo para ir à terra eraencontrar saque.

— Mas não resta nada para roubar em Scaepege—disse eu, perplexo. Scerhnesse ficava naextremidade oeste de Scaepege, que era umailha no lado sul do estuário do Temes, eScaepege fora pilhada, devastada e pilhada de

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novo por ataques vikings. O canal entreScaepege e o restante da Inglaterra eraconhecido como o Swealwe, e fro-

tas vikings inteiras haviam se abrigado ali notempo ruim.

Scaepege e o Swealwe eram locais perigosos,mas não eram lugares para encontrar prata ouescravos.

— Vamos chegar mais perto — disse eu. Finanvoltou à proa enquanto Ralla, no Espada doSenhor, chegava ao lado do Águia do Mar.Apontei para os navios distantes.

— Vamos dar uma olhada naqueles seis barcos!— gritei.

Ralla assentiu, gritou uma ordem e seus remoscortaram a água.

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Vi que Finan estava certo enquantoatravessávamos a ampla foz do Medwaeg; osseis eram navios de guerra, todos mais longos emais esguios do que qualquer embarcaçãocargueira, e todos os seis estavam encalhados.Um fio de fumaça ia para o sul e o leste,sugerindo que as tripulações haviam acendidouma fogueira em terra. Eu não podia vernenhuma cabeça de fera nas proas, mas issonão queria dizer nada. As tripulações vikingspoderiam considerar que toda a área deScaepege era território dinamarquês, e assimtirar seus dragões, águias, corvos e serpentespara não amedrontar os espíritos da ilha.

Chamei Clapa para o remo-leme.

— Leve o barco direto para os navios —ordenei, depois fui me juntar a Finan na proa.Osferth estava num dos remos, suando e mal-humorado. — Não há nada como remar para

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criar músculos — falei animado e fuirecompensado por uma careta.

Subi ao lado do irlandês.

— Parecem dinamarqueses — disse ele.

— Não podemos lutar contra seis tripulações—respondi. Finan coçou a virilha.

— Acha que eles estão fazendo acampamentoali?

Era um pensamento maligno. Já era bastanteruim que os navios de Sigefrid viessem do ladonorte do estuário, sem que outro ninho devespas estivesse sendo construído na margemsul.

— Não — respondi, porque pela primeira vezmeus olhos se mostraram mais afiados do queos do irlandês. — Não, eles não estão fazendo

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um acampamento. —

E toquei meu amuleto.

Finan viu o gesto e ouviu a raiva em minha voz.

— O que é? — perguntou.

— O navio da esquerda — falei apontando — éo Rodbora. — Eu tinha visto a cruz montada noposte de proa.

A boca de Finan se abriu, mas por um momentoele não disse nada. Apenas ficou olhando. Seisnavios, apenas seis navios, e 15 haviam partidode Lundene.

— Santo Jesus Cristo — disse ele finalmente.Fez o sinal-da-cruz. — Será que os outrosforam rio acima?

— Nós teríamos visto.

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— Então estarão vindo atrás?

— É melhor que você esteja certo — faleicarrancudo —, caso contrário 11 navios seforam.

— Meu Deus, não.

Agora estávamos perto. Os homens em terraviram a cabeça de águia em meu barco eacharam que eu era um viking, e algunscorreram para os baixios entre dois dos naviosencalhados e fizeram uma parede de escudosali, desafiando-me a atacar.

— Aquele é Steapa — falei, vendo a figuraenorme no centro da parede de escudos.Ordenei que a águia fosse baixada, depois pareicom os braços abertos, de mãos vazias, paramostrar que tinha vindo em paz. Steapa me re-

conheceu, os escudos foram baixados e as

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armas, embai-nhadas. Um instante depois aproa do Águia do Mar deslizou macia na lamaarenosa. A maré ia subindo, por isso o navioestava em segurança.

Pulei na água que chegava à cintura e vadeei até

chegar em terra. Achei que haveria pelo menosquatrocentos homens na praia, uma quantidadegrande demais para somente seis navios, eenquanto me aproximava pude ver que muitosdaqueles homens estavam feridos. Estavamdeitados com bandagens encharcadas de sanguee rosto pálido. Padres se ajoelhavam no meiodeles enquanto, no topo da praia, onde umcapim claro cobria as dunas baixas, pude vergrosseiras cruzes feitas de madeira lançadapelo mar, enfiadas em sepulturas recém-cavadas.

Steapa me esperou, o rosto mais sério do quenunca.

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— O que aconteceu? — perguntei.

— Pergunte a ele — disse Steapa, parecendoamargo. Em seguida virou a cabeça na direçãoda praia e vi A Ethelred sentado perto dafogueira, na qual uma panela borbulhavasuavemente. Seu séquito de sempre estavajunto, incluindo Aldhelm, que me olhouressentido. Nenhum deles falou enquanto eume aproximava. A fogueira estalou. A Ethelredestava brincando com um pedaço de pau e,mesmo que certamente soubesse de minhaaproximação, não levantou a cabeça.

Parei junto à fogueira.

— Onde estão os outros nove navios? —perguntei.

O rosto de A Ethelred subiu rapidamente, comose ele estivesse surpreso ao me ver. Sorriu.

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— Boas notícias — disse. Esperou que euperguntasse quais eram as notícias, mas eu sófiquei olhando-o sem dizer nada. — Vencemos— disse expansivamente.

— Uma grande vitória!

— Uma vitória magnífica — exclamouAldhelm.

Vi que o sorriso de A Ethelred era forçado.Suas palavras seguintes foram hesitantes, comose precisasse de grande esforço para juntá-las.

— Gunnkel aprendeu o poder de nossasespadas.

— Queimamos os navios deles! — alardeouAldhelm.

— E fizemos grande matança — disse AEthelred, e vi que seus olhos estavam

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brilhando.

Olhei para um lado e outro da praia, onde osferidos estavam deitados e os não-feridossentavam-se de cabeça baixa.

— Você partiu com 15 navios.

— Queimamos os navios dele — disse AEthelred, e pensei que ele ia chorar.

— Onde estão os outros nove navios? — exigisaber.

— Nós paramos aqui — disse Aldhelm, e deviapensar que eu estava criticando sua decisão deencalhar os navios — porque não pudemosremar contra a maré vazante.

— E os outros nove navios? — perguntei denovo, mas não recebi resposta. Ainda estavaexaminando a praia e não pude encontrar o que

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procurava. Olhei de novo para A Ethelred, cujacabeça havia baixado de novo, e temi fazer apergunta seguinte, mas ela precisava ser feita.—

Onde está sua esposa?

Silêncio.

— Onde está A Ethelflaed? — falei mais alto.Uma gaivota soltou seu grito áspero,abandonado.

— Foi tomada — disse A Ethelred finalmente,numa voz tão baixa que mal pude ouvir.

— Tomada?

— Como prisioneira — disse A Ethelred, coma voz ainda baixa.

— Santo Jesus Cristo — disse eu, usando a

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expressão predileta de Finan. O vento agitou afumaça amarga em meu rosto. Por ummomento não acreditei no que tinha ouvido,mas ao meu redor havia provas de que a vitóriamagnífica de A Ethelred fora na verdade umaderrota catastrófica. Nove navios haviam idoembora, mas navios podiam ser substituídos, emetade dos soldados de A Ethelred estavafaltando, no entanto novos homens podiam serencontrados para substituir os mortos, mas oque poderia substituir a filha de um rei? —Quem está com ela?

— perguntei.

— Sigefrid — murmurou Aldhelm.

O que explicava para onde haviam ido os naviosde Beamfleot. E A Ethelflaed, a doce AEthelflaed, a quem eu fizera um juramento, eraprisioneira.

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Nossos oito navios cavalgaram a marémontante de volta pelo Temes até Lundene. Erauma tarde de verão, límpida e calma, no qual osol parecia se demorar como um gigantescoglobo vermelho suspenso no véu de fuma-

ça que nublava o ar sobre a cidade. A Ethelredfez a viagem no Rodbora e, quando deixei oÁguia do Mar passar remando ao lado daquelenavio, vi as marcas pretas em que o sanguehavia manchado as tábuas. Apressei as remadase me adiantei outra vez.

Steapa foi comigo no Águia do Mar e mecontou o que havia acontecido no rio Sture.

De fato havia sido uma vitória magnífica. Afrota de A Ethelred surpreendera os vikings quefaziam acampamento na margem sul do rio.

— Chegamos ao amanhecer — disse Steapa.

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— Ficaram a noite toda no mar?

— O senhor A Ethelred ordenou.

— Corajoso — comentei.

— Era uma noite calma — disse Steapa,desconsiderando —, e às primeiras luzesencontramos os navios deles. Dezesseis navios.— Ele parou abruptamente. Era um homemtaciturno e achava difícil falar mais do quealgumas palavras de cada vez.

— Encalhados? — perguntei.

— Estavam ancorados.

Isso sugeria que os dinamarqueses queriamsuas embarcações prontas em qualquercondição da maré, mas também significava queos navios não podiam ser defendidos porque astripulações estavam principalmente em terra,

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onde levantavam muros de terra para fazer umacampamento. A frota de A Ethelred acabararapidamente com os poucos homens a bordodas embarcações inimigas, depois as grandespedras enroladas em cordas, que serviam comoâncoras, haviam sido levantadas e os 16 naviosforam rebocados para a margem norte eencalhados ali.

— Ele ia mantê-los lá — explicou Steapa —até ter acabado, depois iria trazê-los de volta.

— Acabado?

— Ele queria matar todos os pagãos antes deirmos embora. — E Steapa explicou como afrota de A Ethelred havia subido o Sture e o rioadjacente, o Arwan, desembarcando homens aolongo das margens para queimar castelosdinamarqueses, trucidar o gado dinamarquês e,quando pudesse, matar dinamarqueses. Osatacantes saxões haviam causado pânico.

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Pessoas tinham fugido para o interior, masGunnkel, sem navios em seu acampamento nafoz do Sture, não entrou em pânico.

— Vocês não atacaram o acampamento? —perguntei a Steapa.

— O senhor A Ethelred disse que ele estavaprotegido demais.

— Achei que você havia dito que não estavapronto.

Steapa deu de ombros.

— Eles não tinham construído a paliçada, pelomenos de um dos lados, de modo quepoderíamos ter entra-do e matado todos, masteríamos perdido muitos homens, também.

— Verdade — admiti.

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— Assim, em vez disso, atacamos fazendas —continuou Steapa, e enquanto os homens de AEthelred de-vastavam os povoadosdinamarqueses, Gunnkel havia mandadomensageiros para o sul, aos outros rios dolitoral da Ânglia Oriental. Lá, naquelas margensde rios, havia outros acampamentos vikings.Gunnkel estava convocando reforços.

— Eu pedi que o senhor A Ethelred fosseembora

— disse Steapa, sombrio. — Disse no segundodia. Disse que estávamos ficando tempodemais.

— Ele não quis ouvir?

— Ele me chamou de idiota — respondeuSteapa, dando de ombros. A Ethelred queriasaquear, por isso havia ficado no Sture e seushomens lhe traziam tudo de valor que pudessem

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encontrar, desde panelas até facas de ceifar. —Encontrou um pouco de prata, mas não muito.

E enquanto A Ethelred permanecia paraenriquecer, os lobos do mar se juntavam.

Navios dinamarqueses vieram do sul. Os naviosde Sigefrid haviam partido de Beamfleot,juntando-se a outros barcos que remavamsaindo da foz do Colaun, do Hwealf e do Pant.Eu havia passado por aqueles rios comfreqüência suficiente e imaginei os barcosesguios e rápidos deslizando pelos bancos delama na maré vazante, com as proas altasferozmente enfeitadas com animais e os cascoscheios de homens vingativos, escudos e armas.

Os navios dinamarqueses se reuniram perto dailha de Horseg, ao sul do Sture, na ampla baíaassombrada pelas aves selvagens. Então, numamanhã cinzenta, sob uma tempestade de verãoque soprava do mar, e na maré montante

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tornada mais forte pela lua cheia, 38 naviosvieram do oceano e entraram no Sture.

— Era domingo — disse Steapa —, e o senhorA Ethelred insistiu em que ouvíssemos osermão.

— Alfredo ficará satisfeito em saber disso —falei com sarcasmo.

— Foi na praia, onde os barcos dinamarquesesestavam encalhados.

— Por que lá?

— Porque os padres queriam expulsar osespíritos malignos dos barcos — disse ele, econtou como as cabe-

ças de feras dos navios capturados tinham sidopostas numa grande pilha na areia. Restos demadeira lançada pelo mar haviam sido

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amontoados ao redor delas, junto com palha deum telhado próximo, e então, sob ruidosasorações dos padres, fora posto fogo no monte.Dragões e águias, corvos e lobos haviamqueimado, as chamas saltando altas, e a fumaçada grande fogueira devia ter sopra-

do para o interior enquanto a chuva cuspia esibilava na madeira que ardia. Os padres haviamrezado e cantado, grasnando sua vitória sobreos pagãos, e ninguém notou as formas escurasvindo pela garoa do mar.

Só posso imaginar o medo, a fuga e a chacina.Dinamarqueses saltando em terra.Dinamarqueses de espadas, dinamarqueses delanças, dinamarqueses de machados.

O único motivo para tantos terem escapado eraporque havia tantos morrendo. Osdinamarqueses tinham come-

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çado a matança, e encontraram tantos homenspara matar que não puderam alcançar os quefugiam para os navios.

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Outros barcos dinamarqueses estavam atacandoa frota saxã, mas o Rodbora os manteveafastados.

— Eu havia deixado homens a bordo — disseSteapa.

— Por quê?

— Não sei — respondeu ele em tom chapado.—

Só tive uma sensação.

— Conheço essa sensação.

Era o arrepio na nuca, a suspeita vaga e informede que o perigo estava perto, e era umasensação que jamais devia ser ignorada. Eutinha visto meus cães levantarem subitamente acabeça saindo do sono e rosnarem baixo, ougemerem de dar pena com os olhos me

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encarando num apelo mudo. Quando issoacontece, sei que o trovão está chegando, esempre chega, mas não sei como os cãessentem isso. Porém, deve ser a mesmasensação, o desconforto do perigo oculto.

— Foi uma luta rara — disse Steapa, com vozem-botada. Estávamos rodeando a última curvado Temes antes de o rio chegar a

Lundene. Dava para ver a muralha consertada dacidade, a madeira nova se destacando cruacontra a antiga pedra romana. Estandartespendiam daquelas fortificações, a maioriamostrando santos ou cruzes, símboloscoloridos para desafiar o inimigo que vinhatodo dia inspecionar a cidade a partir do leste.Um inimigo, pensei, que havia acabado de obteruma vitória que deixaria Alfredo atordoado.

Steapa era econômico com os detalhes da luta,e tive de arrancar o pouco que consegui saber.

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Os barcos inimigos, disse ele, haviam na maiorparte parado na margem leste da praia, atraídospara lá pela grande fogueira, e o Rodbora e seteoutros navios saxões estavam mais a oeste. Apraia era um local de caos e gritos enquanto ospagãos uivavam e matavam. Os saxões tentaramchegar aos navios no oeste e Steapa fez umaparede de escudos para proteger esses barcosenquanto os fugitivos subiam a bordo.

— A Ethelred alcançou vocês — comenteiazedamente.

— Ele corre rápido.

— E A Ethelflaed?

— Não pudemos voltar para pegá-la.

— É, tenho certeza — disse eu, e sabia que elefalava a verdade. Steapa contou como AEthelflaed ficara encurralada e fora rodeada

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pelo inimigo. Estava com suas damas decompanhia perto da grande fogueira, enquantoA Ethelred estivera acompanhando os padres,que borrifa-vam água benta na proa dos naviosdinamarqueses capturados.

— Ele quis voltar para pegá-la — admitiuSteapa.

— E deveria mesmo.

— Mas isso não poderia ser feito, de modo queremamos para longe.

— Eles não tentaram impedir vocês?

— Tentaram.

— E? — instiguei.

— Alguns entraram a bordo — respondeu ele, edeu de ombros. Imaginei Steapa, machado na

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mão, truci-dando os invasores. —Conseguimos passar por eles remando — dissecomo se tivesse sido fácil. Os dinamarqueses,pensei, deviam ter impedido a fuga de todos osbarcos, mas os seis navios tinham conseguidoescapar para o mar. — Mas oito navios saíram,no total — acrescentou Steapa.

Dois navios saxões, portanto, haviam sidoabordados com sucesso, e me encolhi aopensar no trabalho dos machados e das espadas,em tábuas do casco escorregadias de sangue.

— Você viu Sigefrid? — perguntei. Steapaassentiu.

— Estava numa cadeira. Amarrado.

— E sabe se A Ethelflaed está viva?

— Está. Quando saímos, eu a vi. Naquele navioque esteve em Lundene, sabe? O navio que você

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deixou ir.

— O Domador de Ondas.

— O navio de Sigefrid — disse Steapa. — Eele mostrou-a para nós. Fez com que elaficasse de pé na plataforma do leme.

— Vestida?

— Vestida? — perguntou ele, franzindo a testacomo se minha pergunta fosse um tantoinadequada. —

Sim, estava vestida.

— Com sorte — falei, esperando que fosse averdade — eles não vão estuprá-la. Ela é maisvaliosa incólume.

— Valiosa?

— Prepare-se para o pedido de resgate — disse

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eu enquanto sentia o fedor imundo de Lundene.

O Águia do Mar deslizou para a doca. Giselaestava esperando e eu lhe dei a notícia, e elasoltou um gritinho como se sentisse dor, emseguida esperou A Ethelred desembarcar, masele a ignorou, assim como me ignorou.

Subiu o morro em direção ao palácio, e seurosto estava pálido. Seus homens, os quesobreviveram, juntaram-se ao redor paraprotegê-lo.

E eu encontrei a tinta velha, apontei uma pena eescrevi outra carta a Alfredo.

TERCEIRA PARTE

A limpeza

NOVE

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Fomos proibidos de remar descendo o Temes.

O bispo Erkenwald me deu a ordem e minharea-

ção instintiva foi rosnar para ele, dizendo quedeveríamos usar cada navio saxão no amploestuário para atacar os dinamarquesesimplacavelmente. Ele me ouviu sem co-mentare, quando terminei, pareceu ignorar tudo o queeu havia dito. Estava escrevendo, copiandoalgum livro que fora colocado em suaescrivaninha inclinada.

— E o que sua violência conseguiria? —perguntou finalmente em voz ácida.

— Iria ensiná-los a nos temer.

— A nos temer — ecoou ele, dizendo cadapalavra muito distintamente e imbuindo-a dezombaria. Sua pena raspou o pergaminho. Ele

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havia me convocado à sua casa, que ficava pertodo palácio de A Ethelred e era um lugarsurpreendentemente sem conforto, sem nada nagrande sala principal além de um fogão aberto,um banco e a mesa inclinada em que o bispoescrevia. Um jovem sacerdote estava sentadono banco, sem dizer nada, mas olhando-

nos ansiosamente. O padre, eu tinha certeza,estava ali simplesmente para ser testemunha, demodo que, caso surgisse alguma discussãosobre o que era dito na reunião, o bispo teriaalguém para apoiar sua versão. Não que muitacoisa estivesse sendo dita, já que Erkenwaldme ignorou de novo durante outro longoperíodo, curvando-se sob a mesa com os olhosfixos nas palavras que rabiscavalaboriosamente. — E se eu estiver certo —disse ele subitamente, enquanto continuava aolhar seu trabalho —, os dinamarquesesacabam de destruir a maior frota já reunida por

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Wessex. Não creio que irão se amedrontar sevocê

remexer a água com seus poucos remos.

— Então vamos deixar a água calma? —perguntei com raiva.

— Ouso dizer — ele fez uma pausa enquantoescrevia outra letra — que o rei não quereráque façamos nada que possa agravar — outrapausa enquanto outra letra era formada — umasituação desafortunada.

— A situação desafortunada é que a filha deleestá

sendo estuprada diariamente pelosdinamarqueses? E você

espera que não façamos nada?

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— Exatamente. Você captou a essência deminhas ordens. Não vai fazer nada para pioraruma situação que já

é ruim. — Ele continuou sem me olhar.Mergulhou a pena em seu pote de tinta e tiroucuidadosamente o ex-cesso da ponta. — Comovocê impede uma vespa de picar?

— Matando-a primeiro.

— Ficando imóvel — disse o bispo —, e éassim que devemos nos comportar agora, nãofazendo nada para piorar a situação. Você temalguma prova de que a senhora está sendoestuprada?

— Não.

— Ela é valiosa para eles — disse o bispo,repetindo o argumento que eu mesmo haviausado com Steapa

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—, e suponho que não farão nada para diminuiresse valor.

Sem dúvida você é mais informado do que eusobre os costumes pagãos, mas se nossosinimigos possuírem ao menos um fiapo de bomsenso, vão tratá-la com o respeito devido à suaimportância. — Por fim ele me espiou,lançando um olhar de lado, de puro desprezo.— Vou precisar de soldados quando chegar ahora de levantar o resgate.

O que queria dizer que meus homens deveriamameaçar todo outro homem que possuísse umamoeda velha.

— E de quanto será? — perguntei azedamente,imaginando que contribuição seria esperada demim.

— Há trinta anos, na Frankia — o bispo estavaescrevendo de novo —, o abade Louis, do

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mosteiro de Saint Denis, foi capturado. Umhomem devoto e bom. O resgate pelo abade eseu irmão chegou a 311 quilos de ouro e a 1.474 quilos de prata. A senhora A Ethelflaedpode ser apenas uma mulher, mas não possoimaginar que nossos inimigos queiram aceitaruma quantia inferior. —

Não falei nada. O resgate que o bispo haviacitado era inimaginável, no entanto elecertamente estava correto em pensar queSigefrid desejaria o mesmo ou, maisprovavelmente, uma quantia maior. — Portanto,veja — continuou o bispo com frieza — que ovalor da senhora é de importância significativapara os pagãos, e eles não irão quererdesvalorizá-la. Garanti isso ao senhor AEthelred, e eu agradeceria que você não odesiludisse dessa esperança.

— O senhor teve alguma notícia de Sigefrid?

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—perguntei, pensando que Erkenwald pareciater muita certeza de que A Ethelflaed estavasendo bem tratada.

— Não. E você? — A pergunta era um desafio,dando a entender que eu poderia estar emnegociações secretas com Sigefrid. Nãorespondi e o bispo não esperava que eurespondesse. — Prevejo — continuou ele —que o rei irá querer supervisionar pessoalmenteas negociações. Portanto, até que ele chegueaqui, ou até que me dê

ordens em contrário, você deve ficar emLundene. Seus navios não irão zarpar!

E não zarparam. Mas os navios dos nórdicosestavam navegando. O comércio, que haviaaumentado durante o verão, se reduziu a nadaenquanto enxames de barcos com cabeças deferas saíam de Beamfleot para assolar oestuário. Minhas melhores fontes de

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informações morreram junto com os naviosmercantes, ainda que alguns homensconseguissem subir o rio. Geralmente erampescadores trazendo o produto de seu trabalhopara o mercado de peixe de Lundene, e diziamque agora mais de cinqüenta navios encalhavamas quilhas no riacho que secava perto da altafortaleza de Beamfleot. Os vikings estavam seamontoando no estuário.

— Eles sabem que Sigefrid e o irmão vão ficarricos — disse eu a Gisela na noite depois de obispo ter me ordenado a não fazer nenhumaprovocação.

— Muito rico — respondeu ela secamente.

— O bastante para juntar um exército —continuei com amargura, porque, assim que oresgate fosse pago, os irmãos Thurgilsonseriam doadores de ouro, e navios chegariamde todos os mares, aumentando em quantidade

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até

formar uma horda que poderia penetrar emWessex. O

sonho dos irmãos, de conquistar todas as terrassaxãs, que um dia dependera da ajuda deRagnar, agora parecia a ponto de se tornarverdadeiro sem qualquer ajuda do norte, e tudograças à captura de A Ethelflaed.

— Eles vão atacar Lundene? — perguntouGisela.

— Se eu fosse Sigefrid, atravessaria o Temes epe-netraria em Wessex através de Cent. Eleterá navios suficientes para levar um exércitopara o outro lado do rio e nós nem de longetemos o bastante para impedi-lo.

Stiorra estava brincando com uma boneca demadeira que eu havia esculpido com bétula e

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para a qual Gisela havia feito roupas com restosde pano. Minha filha parecia totalmentedistraída com a brincadeira e muito feliz, etentei imaginar como seria perdê-la. Tenteiimaginar a perturbação de Alfredo, e descobrique meu coração nem poderia suportar o meropensamento.

— O neném está chutando — disse Gisela,acarici-ando a barriga. Senti o pânico quesempre experimentava quando pensava no partopróximo.

— Temos de arranjar um nome para ele — faleiescondendo meus pensamentos.

— Ou ela.

— Ele — respondi com firmeza, ainda que semalegria porque o futuro, naquela noite, pareciasombrio demais.

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Alfredo chegou, como o bispo havia previsto, ede novo fui chamado ao palácio, mas dessa vezfomos poupados de qualquer sermão. O reiveio com sua guarda pessoal, o que restava deladepois do desastre no Sture, e cumprimenteiSteapa no pátio externo, onde um guardarecolheu nossas espadas. Os padres tinhamvindo em for-

ça total, um bando de corvos grasnando, masentre eles estavam os rostos amigáveis dopadre Pyrlig, do padre Beocca e, para minhasurpresa, do padre Willibald. Este, todosaltitante e alegre, atravessou correndo o pátiopara me cumprimentar.

— O senhor está mais alto do que nunca! —disse ele.

— E como vai você, padre?

— O Senhor achou bom me abençoar! —

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respondeu ele, animado. — Hoje em diaministro para as almas em Exanceaster!

— Gosto daquela cidade.

— O senhor tinha uma casa perto, não é? Comsua... — Willibald parou, sem jeito.

— Com aquela desgraça devota com quem meca-sei antes de Gisela — respondi. Mildrithainda vivia, mas naqueles dias estava numconvento e havia muito que eu esquecera amaior parte da dor daquela união infeliz. — E

você? — perguntei. — Está casado?

— Com uma mulher ótima — disse Willibald,alegre. Ele já fora meu tutor, mas haviaensinado pouca coisa, no entanto era umhomem bom, gentil e cumpridor dos deveres.

— O bispo de Exanceaster ainda mantém as

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putas ocupadas? — perguntei.

— Uhtred, Uhtred — censurou Willibald. —Sei que você só fala essas coisas para mechocar.

— E também digo a verdade — respondi, edizia mesmo. — Havia uma ruiva de quem elerealmente gostava. A história é que ele gostavaque ela vestisse os mantos dele, e depois...

— Todos já pecamos — interrompeu Willibaldrapidamente — e ficamos aquém dasexpectativas de Deus.

— Você também? Ela era ruiva? — perguntei,depois ri de seu desconforto. — É bom vê-lo,padre. Então, o que o traz de Exanceaster aLundene?

— O rei, que Deus o abençoe, queria acompanhia de velhos amigos — disse

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Willibald, depois balançou a cabeça. — Eleestá mal, Uhtred, muito mal. Peço que vocênão diga nada que o deixe perturbado. Eleprecisa de orações!

— Ele precisa de um novo genro — respondiazedamente.

— O senhor A Ethelred é um fiel servidor deDeus

— disse Willibald — e um nobre guerreiro!Talvez ainda não tenha sua reputação, mas onome dele inspira medo entre nossos inimigos.

— Inspira? De que eles têm medo? De quepossam morrer de rir se ele os atacar de novo?

— Senhor Uhtred! — censurou ele de novo.

Gargalhei, depois acompanhei Willibald até osalão cheio de colunas, onde thegns, padres e

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ealdormen se reuniam. Este não eraoficialmente um witangemot, o conselho realdos grandes homens que se reunia duas vezespor ano para aconselhar o rei, mas quase todosos presentes faziam parte do witan. Tinhamviajado de todo Wessex, enquanto outrosvinham do sul da Mércia, convocados aLundene para que a decisão de Alfredo tivesseo apoio dos dois reinos. A Ethelred já estava ládentro, sem encarar ninguém e encurvado numacadeira sob o tablado de onde Alfredopresidiria. Os homens evitavam A Ethelred,todos menos Aldhelm, que se agachava ao ladode sua cadeira e sussurrava em seu ouvido.

Alfredo chegou acompanhado por Erkenwald epelo irmão Asser. Eu nunca vira o rei tãoabatido. Tinha uma das mãos apertando abarriga, o que sugeria que sua doençaincomodava muito, mas não creio que fosseisso que dava a seu rosto as rugas fundas e a

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expressão lívida, quase desesperançada. Seucabelo estava ficando ralo e, pela primeira vez,vi-o como um velho. Ele tinha 36 anos.

Ocupou sua cadeira no tablado, balançou a mãopara indicar que os homens podiam sentar-se enão disse nada. Ficou por conta do bispoErkenwald fazer uma oração breve, depoispedir que qualquer homem que tivesse umasugestão falasse.

Eles falaram, e falaram, e falaram mais umpouco.

O mistério que os incomodava era quenenhuma mensagem viera do acampamento deBeamfleot. Um espião havia informado aAlfredo que sua filha vivia, até mesmo queestava sendo tratada com respeito, comoErkenwald havia suposto, mas nenhummensageiro viera de Sigefrid.

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— Ele quer que sejamos o suplicante —sugeriu o bispo Erkenwald, e ninguém tinhaidéia melhor. Foi observado que A Ethelflaedera mantida como prisioneira em território quepertencia ao rei A Ethelstan, da Ânglia Oriental,e que sem dúvida aquele dinamarquêscristianizado iria ajudar, não? O bispoErkenwald disse que uma delegação já partirapara se encontrar com o rei.

— Guthrum não vai lutar — disse eu, dandominha primeira contribuição.

— O rei A Ethelstan — disse o bispoErkenwald, enfatizando o nome cristão deGuthrum — está se mostrando um aliadoconstante. Tenho certeza de que irá nosoferecer ajuda.

— Ele não vai lutar — repeti.

Alfredo balançou a mão na minha direção,

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indicando que desejava ouvir o que eu tinha adizer.

— Guthrum está velho e não quer guerra —disse eu. — Nem pode atacar os homens queestão perto de Beamfleot. Eles ficam maisfortes a cada dia. Se Guthrum lutar contra eles,pode muito bem perder, e se perder, Sigefridserá rei na Ânglia Oriental. — Ninguém gostoudesse pensamento, mas não podiam argumentarcontra ele.

Apesar do ferimento causado por Osferth,Sigefrid estava ficando cada vez mais poderosoe já possuía seguidores suficientes paradesafiar as forças de Guthrum.

— Eu não desejaria que o rei A Ethelstanlutasse —disse Alfredo, infeliz —, porquequalquer guerra poria em risco a vida de minhafilha. Em vez disso, devemos con-templar anecessidade de pagar um resgate.

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Houve silêncio enquanto os homens na salaimagi-navam a vasta quantia necessária. Alguns,os mais ricos, evitavam o olhar de Alfredo,enquanto todos, tenho certeza, estavamimaginando onde poderiam esconder suasriquezas antes que os coletores e as tropas deAlfredo fossem visitá-los. O bispo Erkenwaldrompeu o silêncio observando, com pesar, quea igreja estava empobrecida, caso contrário eleficaria feliz em contribuir.

— O pouco que possuíamos — disse ele —está

dedicado à obra de

Deus.

— Está mesmo — concordou um abade gordocujo peito brilhava com três cruzes de prata.

— E agora a senhora A Ethelflaed é mércia —

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resmungou um thegn de Wiltunscir — de modoque os mércios devem ficar com o fardo maior.

— Ela é minha filha — disse Alfredo em vozbaixa

— e, claro, eu contribuirei com o que puder.

— Mas de quanto precisaremos? — perguntouenergicamente o padre Pyrlig. — Primeirotemos de saber isso, senhor rei, o que significaque alguém deve viajar para falar com ospagãos. Se eles não falam conosco, devemosfalar com eles. Como diz o bom bispo — eaqui Pyrlig fez uma reverência séria na direçãode Erkenwald —, eles querem que sejamos ossuplicantes.

— Eles querem nos humilhar — resmungou umhomem.

— Querem mesmo! — concordou o padre

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Pyrlig.

— Por isso devemos mandar uma delegaçãopara sofrer essa humilhação.

— O senhor iria a Beamfleot? — perguntouAlfredo a Pyrlig, com esperança.

O galês balançou a cabeça.

— Senhor rei, aqueles pagãos têm motivos parame odiar. Não sou o homem a ser mandado.Mas o senhor Uhtred fez um favor a ErikThurgilson.

— Que favor? — perguntou rapidamente oirmão Asser.

— Eu o alertei sobre a traição dos mongesgaleses

— respondi, e houve gargalhadas baixas

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enquanto Alfredo me lançava um olhar dereprovação. — Deixei que ele levasse seunavio de Lundene — expliquei.

— Um favor — retrucou Asser — que permitiua ocorrência dessa situação infeliz. Se vocêtivesse matado os Thurgilson como deveria,não estaríamos aqui.

— O que nos trouxe aqui — disse eu — foi aestupidez de se demorar no Sture. Se você juntaum rebanho gordo, não o deixa pastando junto àtoca do lobo.

— Chega! — disse Alfredo asperamente. AEthelred estava tremendo de raiva. Não haviafalado uma só

palavra até então, mas agora se virou na cadeirae apontou para mim. Abriu a boca e eu espereisua reação furiosa, mas em vez disso ele setorceu para o outro lado e vomi-tou. Foi súbito

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e violento, seu estômago se esvaziando numjorro denso e fétido. Alfredo, pasmo, apenasficou olhando. Aldhelm se afastou rapidamente.Alguns padres fizeram o sinal-da-cruz.Ninguém falou nem se moveu para ajudá-lo. Ovômito pareceu ter acabado, mas então ele setorceu de novo e outro jorro saiu da boca. AEthelred cuspiu o que restava, enxugou oslábios na manga e se recostou de novo nacadeira, de olhos fechados e rosto pálido.

Alfredo havia observado o ataque súbito dogenro, mas agora se virou de novo para o salãoe não disse nada sobre o que acontecera. Umserviçal se moveu na borda do salão,obviamente tentado a ir ajudar A Ethelred, massentiu medo de passar pelo tablado. A Ethelredgemia ligeiramente, uma das mãos sobre abarriga. Aldhelm estava olhando a poça devômito como se nunca tivesse visto algo assim.

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— Senhor Uhtred — disse o rei quebrando osilêncio embaraçado.

— Senhor rei — respondi com uma reverência.Alfredo franziu a testa para mim.

— Há quem diga, senhor Uhtred, que é amigodemais dos nórdicos.

— Eu lhe fiz um juramento, senhor rei —respondi asperamente —, e renovei essejuramento ao padre Pyrlig e depois à sua filha.Se os homens que dizem que sou amigo demaisdos nórdicos desejarem me acusar de violaresse juramento triplo, eu os encontrarei comespada na mão no lugar que eles quiserem. Eeles enfrentarão uma espada que matou maisnórdicos do que eu posso contar.

Isso provocou silêncio. Pyrlig deu um sorrisomaroto. Nenhum homem ali desejava lutarcomigo, e o único que poderia me derrotar,

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Steapa, estava rindo, ainda que o riso de Steapafosse um ricto mortal que poderia apavorar umdemônio lançando-o de volta a seu covil.

O rei suspirou como se minha demonstraçãode raiva tivesse sido cansativa.

— Sigefrid falará com você? — perguntou ele.

— O earl Sigefrid me odeia, senhor rei.

— Mas falará com você? — insistiu Alfredo.

— Ou isso ou me matará. Mas o irmão delegosta de mim, e Haesten está em dívida paracomigo, de modo que, sim, acho que elesfalarão.

— O senhor também deve mandar umnegociador hábil, senhor rei — disseErkenwald untuosamente —, um homem quenão se sinta tentado a fazer mais favores aos

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pagãos. Eu sugeriria meu tesoureiro. É umhomem muito sutil.

— E, além disso, é padre — disse eu —, eSigefrid odeia padres. E também tem umatremenda ambição de ver um padre sercrucificado. — Sorri para Erkenwald. —

Talvez você devesse mandar seu tesoureiro. Ouquem sabe ir pessoalmente?

Erkenwald me olhou com expressão vazia.Presumi que estava rezando para que seu deusmandasse um raio para me castigar, mas seudeus não conseguiu cumprir com isso. O reisuspirou de novo.

— Você pode negociar sozinho? — perguntou-me com paciência.

— Já comprei cavalos, senhor, de modo que,sim, posso negociar.

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— Barganhar um cavalo não é o mesmo que...—começou Erkenwald com raiva, depois seconteve quando o rei balançou a mão numgesto cansado para ele.

— O senhor Uhtred quis irritá-lo, bispo —disse o rei —, e é melhor não lhe dar asatisfação de demonstrar que ele teve sucesso.

— Eu sei negociar, senhor rei — disse eu —,mas neste caso estarei barganhando uma éguade valor muito alto. Ela não será barata.

Alfredo assentiu.

— Quem sabe, se você levasse o tesoureiro dobispo? — sugeriu hesitando.

— Quero apenas um companheiro — respondi.—

Steapa.

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— Steapa? — Alfredo pareceu surpreso.

— Quando a gente encara um inimigo, senhor—expliquei —, é bom levar um homem cujapresença seja uma ameaça.

— Você levará dois companheiros — corrigiuo rei.

— Apesar do ódio de Sigefrid, quero que minhafilha re-ceba as bênçãos dos sacramentos.Deve levar um padre, senhor Uhtred.

— Se o senhor insiste — respondi, não meincomodando em esconder o desdém.

— Insisto sim. — A voz de Alfredo recuperouparte da força. — E esteja aqui rapidamente,porque quero notícias dela.

Ele se levantou, em seguida todos ficaram depé e fizeram uma reverência.

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A Ethelred não havia dito uma única palavra. Eeu ia a Beamfleot.

Éramos cem ao partir. Somente três iríamos aoacampamento de Sigefrid, mas três homens nãopodiam cavalgar pelo campo entre Lundene eBeamfleot sem serem protegidos. Aquela erauma terra de fronteira, a terra erma e plana dafronteira da Ânglia Oriental, e cavalgamos comcota de malha, escudos e armas, deixando aspessoas saberem que estávamos prontos paralutar. Teria sido mais rápido ir de navio, mas euhavia convencido Alfredo de que havia umavantagem em levar cavalos.

— Já vi Beamfleot do mar — disse a ele natarde anterior —, e é inexpugnável. Um morroíngreme, senhor, e uma fortaleza no cume. Nãovi aquela fortaleza a partir da terra, senhor, epreciso ver.

— Precisa? — Foi o irmão Asser que

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respondeu.

Estava parado perto da cadeira de Alfredo,como se protegesse o rei.

— Se houver uma luta — disse eu —, talveztenhamos de atacar pelo lado de terra.

O rei me olhou cautelosamente.

— Você quer que haja luta?

— A senhora A Ethelflaed morrerá se houverluta

— disse Asser.

— Quero devolver sua filha ao senhor — faleia Alfredo, ignorando o monge galês —, mas sóum idiota presumiria que não teremos de lutarcom eles antes do fim do verão. Sigefrid estáficando poderoso demais. Se dei-xarmos seu

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poder crescer, teremos um inimigo que podeameaçar todo Wessex, e temos de derrubá-loantes que ele fique forte demais.

— Nada de luta agora — insistiu Alfredo. —Vá

por terra, se for preciso, fale com eles e metraga notícias rapidamente.

Ele havia insistido em mandar um padre, maspara meu alívio o padre Willibald foiescolhido.

— Sou um velho amigo da senhora A Ethelflaed—explicou Willibald enquanto partíamos deLundene. —

Ela sempre gostou de mim, e eu dela.

Eu montava Smoca. Finan e meus guerreirosdomésticos estavam comigo, além de

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cinqüenta homens de Alfredo, escolhidos ecomandados por Steapa. Não levávamosestandartes. Em vez disso, Sihtric segurava umgalho de amieiro repleto de folhas, como sinalde que buscá-vamos trégua.

A região a leste de Lundene era medonha, umlugar plano e desolado com riachos, valas,juncos, capim de pântano e aves selvagens. Àdireita, onde algumas vezes o Temes era visívelcomo um lençol cinza, o pantanal pareciaescuro mesmo sob o sol de verão. Poucaspessoas viviam naquela vastidão molhada, maspassamos por algumas choupanas baixascobertas de junco. Não havia pessoas à vista.Os pescadores de enguias que moravam naschoupanas deviam ter percebido nossa chegadae fugido com suas famílias para esconderijosseguros.

A trilha, que mal poderia ser chamada de

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estrada, seguia por um terreno ligeiramentemais alto na borda do pântano e passava porpequenos campos com cercas de espinheiros echeios de barro. As poucas árvores erammirradas e curvadas pelo vento. Quanto maisíamos para o leste, mais casas víamos, egradualmente essas constru-

ções foram ficando maiores. Ao meio-diaparamos num castelo para dar água e descansoaos cavalos. O castelo tinha paliçada, e umserviçal veio cautelosamente ao portãoperguntar o que queríamos.

— Onde estamos? — perguntei antes deresponder à sua pergunta.

— Wocca’s Dun, senhor — respondeu ele.Falava inglês.

Dei um riso sem graça porque dun significavamorro, e não havia nenhum morro que desse

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para ver, mas o castelo ficava numapequeníssima elevação.

— Wocca está aqui? — perguntei.

— Agora o neto dele é dono da terra, senhor.Ele não está aqui. Desci da sela de Smocca ejoguei as rédeas para Sihtric.

— Ande com ele antes de deixá-lo beber —ordenei a Sihtric, depois me virei de novo parao serviçal. — E

quanto a esse neto, a quem ele deve juramento?

— Ele serve a Hakon, senhor.

— E Hakon? — perguntei, notando que umsaxão era dono do castelo, mas havia prestadojuramento a um dinamarquês.

— É jurado ao rei A Ethelstan, senhor.

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— A Guthrum?

— Sim, senhor.

— Guthrum convocou homens?

— Não, senhor.

— E se Guthrum convocasse, Hakon e seusenhor iriam obedecer? O serviçal pareceucauteloso.

— Eles foram a Beamfleot — disse, e essa erauma resposta realmente interessante. Hakon,segundo o servi-

çal, tinha um grande trecho daquela terrabarrenta, que lhe fora concedida por Guthrum,mas agora Hakon estava dividido entre suaaliança jurada a Guthrum e o medo de Sigefrid.

— Então Hakon seguiria o earl Sigefrid?

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— Acho que sim, senhor. Veio umaconvocação de Beamfleot, senhor, disso eu sei,e meu senhor foi para lá

com Hakon.

— Eles levaram seus guerreiros?

— Apenas uns poucos, senhor.

— Os guerreiros não foram convocados?

— Não, senhor.

Então, por enquanto, Sigefrid não estavareunindo um exército, e sim juntando oshomens mais ricos da Ânglia Oriental para lhesdizer o que esperava deles. Iria querer seusguerreiros quando chegasse a hora, e semdúvida agora estava seduzindo-os com visõesdas riquezas que seriam deles quando o resgatede A Ethelflaed fosse pago.

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E Guthrum? Guthrum, eu supunha, estavasimplesmente ficando quieto, enquanto seushomens jurados eram seduzidos por Sigefrid.Certamente não estava fazendo qualquertentativa de impedir esse processo eprovavelmente achava que não tinha poder deimpedi-lo, diante das fartas promessas donórdico. Melhor, nesse caso, deixar Sigefridliderar suas forças contra Wessex do que tentá-lo a usur-par o trono da Ânglia Oriental.

— E o neto de Wocca — perguntei mesmosabendo a resposta —, seu senhor, é saxão?

— Sim, senhor. Mas a filha dele é casada comum dinamarquês.

Então parecia que os saxões dessa terra semgraça lutariam pelos dinamarqueses, talvezporque não tivessem escolha ou talvez porque,com casamentos, sua aliança estivessemudando.

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O serviçal nos deu cerveja, enguia defumada epão duro. E quando havíamos comido partimosenquanto o sol deslizava em direção ao oestepara brilhar sobre uma grande linha de montesque se erguiam abruptamente no terreno plano.As encostas viradas para o sol eram íngremes,de modo que os morros pareciam umafortificação verde.

— Aquilo é Beamfleot — disse Finan.

— Fica lá em cima — concordei. Beamfleotficaria na extremidade sul das montanhas, mas aessa distância era impossível discernir afortaleza. Senti o ânimo afundar.

Se tivéssemos de atacar Sigefrid, o caminholimpo seria levar tropas de Lundene, mas eunão tinha desejo de lutar subindo aquelasencostas íngremes.

— Se houver luta, Steapa — gritei alegre —,

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vou mandar você e suas tropas subiremprimeiro!

Como única resposta recebi um olhar azedo.

— Eles devem ter nos visto — disse eu a Finan.

— Estão nos vigiando há uma hora, senhor.

— É mesmo?

— Andei vendo o brilho das pontas de lanças—disse o irlandês. — Eles não estão tentandose esconder de nós.

Era o início de uma longa tarde de verãoenquanto subíamos o morro. O ar estava quentee a luz inclinada era linda em meio às folhasque cobriam a encosta. Uma estradaziguezagueava até as alturas e, enquantosubíamos lentamente, vi as lascas de luz vindasde cima e soube que eram reflexos de pontas

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de lanças e elmos. Nossos inimigos estavamvigiando e preparados para nós.

Havia apenas três cavaleiros esperando. Todosos três usavam cota de malha, todos usavamelmos e tinham longos penachos de crina decavalo que faziam os homens pareceremselvagens. Tinham visto o galho de amieiro namão de Sihtric e, enquanto nos aproximávamosdo cume, os três esporearam em nossa direção.Levantei a mão para parar minhas tropas e,acompanhado apenas por Finan, fuicumprimentar os três cavaleiros com penachosde crina.

— Finalmente vieram — gritou um deles numinglês com sotaque forte.

— Viemos em paz — respondi em dina-marquês.

O homem gargalhou. Eu não podia ver seu

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rosto porque o elmo tinha peças sobre asbochechas e só dava para perceber a bocabarbuda e o brilho dos olhos som-breados.

— Vocês vieram em paz — disse ele — porquenão ousam vir de outra forma. Ou querem queestripemos a filha de seu rei depois de todostermos nos enfiado entre as coxas dela?

— Quero falar com o earl Sigefrid — respondiignorando sua provocação.

— Mas ele quer falar com você? — perguntouo homem. Em seguida tocou uma espora nocavalo e o garanhão se virou habilmente, nãocom qualquer propósito, apenas para mostrar ahabilidade do cavaleiro. — E quem é você?

— Uhtred de Bebbanburg.

— Já ouvi falar do nome — admitiu o homem.

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— Então diga-o ao earl Sigefrid, e diga que lhetra-go os cumprimentos do rei Alfredo.

— Já ouvi esse nome também — disse ohomem.

Em seguida parou, brincando com nossapaciência. —

Podem seguir a estrada — disse por fim,apontando para onde a trilha desaparecia sobrea crista do morro — e chegarão a uma grandepedra. Ao lado da pedra há um castelo, e é láque você e todos os seus homens esperarão.

O earl Sigefrid informará amanhã se desejafalar com você, ou se deseja que você váembora, ou se deseja se divertir com a mortede vocês. — Em seguida esporeou o flanco docavalo de novo e os três partiram rapidamente,com o som dos cascos ressoando no ar imóvelde verão.

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E partimos para encontrar o castelo ao lado dagrande pedra.

O castelo, muito antigo, era um salão feito decarvalho que havia ficado quase preto com opassar dos anos.

O teto de palha era íngreme, e a construção erarodeada por altos carvalhos que o abrigavam dosol. Na frente do castelo, num trecho de gramaviçosa, havia um pilar de pedra rústica mais altado que um homem. A pedra era atravessada porum buraco, e neste havia pedrinhas e pedaçosde ossos, postos pelo povo que acreditava que apedra tinha propriedades mágicas. Finan fez osinal-da-cruz.

— O povo antigo deve ter posto isso aí —disse ele.

— Que povo antigo?

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— As pessoas que viviam aqui quando o mundoera jovem, que vieram antes de nós. Elaspuseram essas pedras por toda a Irlanda. —Finan olhou a pedra cautelosamente e fez seucavalo passar o mais longe possível.

Um único serviçal aleijado esperava do lado defora do castelo. Era saxão e disse que o lugarse chamava Thunresleam, e esse nome tambémera antigo. Significava Bosque de Tor, e issome sugeriu que o castelo devia ter sidoconstruído num lugar onde os antigos saxões— os saxões que não reconheciam o deuspregado dos cristãos

— haviam cultuado seu deus mais antigo, meudeus, Tor.

Abaixei-me na sela de Smoca para tocar a pedrae fiz uma oração a Tor, para que Giselasobrevivesse ao parto e que A Ethelflaed fosseresgatada.

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— Há comida para o senhor — disse o serviçalaleijado, pegando as rédeas de Smoca.

Não havia somente comida e cerveja, havia umfestim, e escravas saxãs para preparar o festime servir a cerveja, o hidromel e o vinho debétula. Havia carne de porco, de boi, pato,bacalhau seco e hadoque seco, enguias,caranguejos e gansos. Havia pão, queijo, mel emanteiga.

O padre Willibald temeu que a comida fosseenvenenada e ficou olhando, com medo,enquanto eu comia uma coxa de ganso.

— Pronto — falei enxugando a gordura doslábios com as costas da mão. — Ainda estouvivo.

— Louvado seja Deus — disse Willibald, aindame olhando ansioso.

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— Louvado seja Tor — respondi. — Esta é acolina dele. Willibald fez o sinal-da-cruz,depois cravou cautelosamente sua faca numpedaço de pato.

— Disseram-me — observou nervoso — queSigefrid odeia os cristãos.

— Odeia. Sobretudo os padres.

— Então por que nos alimenta tão bem?

— Para mostrar que nos despreza.

— Não é para nos envenenar? — perguntouWillibald, ainda preocupado.

— Coma, aproveite. — Eu duvidava de que osnórdicos fossem nos envenenar. Podiam nosquerer mortos, mas não antes de ter noshumilhado, mas mesmo assim postei umaguarda cuidadosa nos caminhos que da-

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vam no castelo. Receava que a humilhaçãoescolhida por Sigefrid fosse queimar o castelono meio da noite, conosco dormindo dentro.Eu havia visto um castelo queimar uma vez, e éuma coisa terrível. Guerreiros esperam do ladode fora para fazer os ocupantes em pânicoretornar ao inferno de palha caindo em chamas,onde as pessoas gritam antes de morrer. Namanhã seguinte, depois da queima do castelo,as vítimas haviam ficado pequenas comocrianças, os cadáveres encolhidos e pretos, asmãos enroladas, os lábios queimadosrepuxados para longe dos dentes num grito dedor terrível e eterno.

Mas ninguém tentou nos matar naquela curtanoite de verão. Montei guarda durante umtempo, ouvindo as corujas, depois vigiandoenquanto o sol subia pelo denso emaranhado deárvores. Algum tempo depois ouvi uma trompatocando. Foi um som de lamento que se repetiu

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três vezes, depois soou três vezes de novo, e eusoube que Sigefrid devia estar convocando seushomens. Logo iria mandar que nos chamassem,pensei, e me vesti cuidadosamente. Optei porusar minha melhor cota de malha, o belo elmode guerra e, ainda que o dia prometesse serquente, a capa preta com o raio descendo pelascostas.

Calcei as botas e prendi as espadas no cinto.Steapa também usava malha, mas a sua estavasuja e enferrujada; as botas, arranhadas e acobertura da bainha, rasgada. Mas de algummodo ele parecia muito mais temível do queeu. O

padre Willibald vestia seu manto preto e levavauma bolsa pequena que continha um livro doEvangelho e os sacramentos.

— O senhor vai traduzir para mim, não vai? —perguntou sério.

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— Por que Alfredo não mandou um padre quefalasse dinamarquês?

— Eu falo um pouco — disse Willibald —,mas não tanto quanto gostaria. Não, o rei memandou porque achou que eu poderia servir deconforto para a senhora A Ethelflaed.

— Certifique-se disso — falei, depois me vireiporque Cerdic havia chegado correndo pelatrilha que vinha do sul por entre as árvores.

— Eles estão chegando, senhor — disse ele.

— Quantos?

— Seis, senhor. Seis cavaleiros.

Os seis entraram na clareira do castelo.Pararam e olharam ao redor. As máscaras doselmos restringiam sua visão, obrigando-os amover a cabeça de modo extrava-gante para ver

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nossos cavalos amarrados. Estavam contandocabeças, certificando-se de que eu não haviamandado um grupo de batedores explorar aregião. Por fim, satisfeito ao ver que um grupoassim não existia, o líder se dignou a me olhar.Pensei que era o mesmo homem que havia nosrecebido no topo do morro na véspera.

— Você deve vir sozinho — disse ele,apontando para mim.

— Três de nós vamos — respondi. — Vocêsozinho — insistiu ele.

— Então partimos para Lundene agora — disseeu, e me virei. — Juntem as coisas! Selas!Depressa! Vamos embora!

O homem não discutiu.

— Três, então — disse descuidadamente. —Mas vocês não cavalgam até a presença do earl

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Sigefrid. Andam.

Não questionei. Sabia que isso fazia parte dopropósito de Sigefrid de nos humilhar, e quemodo melhor do que nos obrigando a andar atéseu acampamento? Os senhores cavalgavamenquanto os homens comuns andavam a pé, masSteapa, o padre Willibald e eu caminhamoshumildemente atrás dos seis cavaleiros queseguiam uma trilha por entre as árvores, saindonuma ampla colina coberta de capim acima doTemes reluzente de sol. A colina era coberta deabrigos grosseiros, lugares construídos pelasnovas tripulações que tinham vindo apoiarSigefrid an-tecipando o tesouro que ele logopossuiria e distribuiria.

Eu estava suando ferozmente quando subimos aencosta até o acampamento de Sigefrid. Agorapodia ver Caninga e a parte leste do riacho,ambos lugares que eu conhecia intimamente

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pelo lado junto ao mar, mas que nunca tinhavisto desta altitude. Também podia ver queagora havia muito mais navios atulhados noHothlege, que ia secando. Os vikingspercorriam o mundo em busca de um lugarfraco onde pudessem jorrar com machados,espadas e lanças, e a captura de A Ethelflaedrevelara exatamente uma oportunidade dessas,e assim os nórdicos se reuniam.

Centenas de homens esperavam do lado de forado portão. Fizeram uma passagem na direçãodo grande castelo da fortaleza e nós trêstivemos de andar por entre aquelas duas fileirassérias de homens barbudos e armados, emdireção a duas grandes carroças de fazenda quetinham sido juntadas para formar umaplataforma longa. No centro desse palcoimprovisado estava uma cadeira em queSigefrid se encontrava sentado frouxo. Usavasua capa de urso preto apesar do calor. Seu

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irmão Erik estava de pé ao lado da cadeiragrande, enquanto Haesten, rindo maroto, ficavado outro lado. Uma fileira de guardas usandoelmos se encontrava atrás do trio, e na frente,pendurados no leito das carroças, haviaestandartes de corvos, águias e lobos. No chãoà frente de Sigefrid estavam os estandartescapturados da frota de A Ethelred. A grandebandeira do senhor da Mércia, com o cavaloempinando, estava ali, e ao lado outrasmostrando cruzes e santos. Os estandartesestavam sujos, e achei que os dinamarquesesteriam se re-vezado mijando nas bandeirascapturadas. Não havia sinal de A Ethelflaed. Eumeio esperava que a víssemos ser mostrada empúblico, mas ela devia estar sob guarda numadentre a dúzia de construções sobre o topo domorro.

— Alfredo mandou seus cachorrinhos latirempara nós! — anunciou Sigefrid enquanto

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chegávamos aos estandartes imundos.

Tirei meu elmo.

— Alfredo o cumprimenta — disse. Meioesperava ser recebido por Sigefrid dentro deseu castelo, depois percebi que ele quisera mereceber ao ar livre para que o máximo possívelde seus seguidores vissem minha humilhação.

— Você geme que nem um filhote de cachorro—disse Sigefrid.

— E ele deseja a você o júbilo da companhia dasenhora A Ethelflaed — continuei.

Ele fez uma careta perplexa. Seu rosto largoparecia mais gordo, na verdade todo o corpoparecia mais gordo porque o ferimento dadopor Osferth havia tirado o uso de suas pernas,mas não o apetite, por isso ele estava sentado,aleijado, curvado e grosseiro, olhando-me com

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indignação.

— Júbilo dela, cachorrinho? — rosnou. — Quela-tidos são esses?

— O rei de Wessex — disse eu em voz alta,deixando a platéia ouvir — tem outras filhas!Há a bela A E-thelgifu e sua irmã A Efthryth,portanto que necessidade ele tem de AEthelflaed? E para que servem as filhas, afinal?Ele é um rei e tem filhos homens, Eduardo e AE-thelweard, e os filhos são a glória dohomem, ao passo que as filhas são o fardo. Porisso ele lhe deseja o júbilo com ela, e memandou para me despedir dela.

— O cachorrinho tenta nos divertir — disseSigefrid com escárnio. Não acreditava emmim, claro, mas eu esperava ter plantado umapequena semente de dúvida, apenas o suficientepara justificar o resgate baixo que iria oferecer.Eu sabia, e Sigefrid sabia, que o preço final

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seria enorme, mas talvez, e se repetisse issocom bastante freqüência, eu pudesse convencê-lo de que Alfredo não se importava demaiscom A Ethelflaed. — Talvez eu devesse torná-la minha amante, não? — sugeriu Sigefrid.

Notei Erik, ao lado do irmão, remexendo-sedes-confortavelmente.

— Ela teria sorte nesse caso — faleidescuidado.

— Você mente, cachorrinho — respondeuSigefrid, mas havia uma pequeníssima incertezaem sua voz. —

Mas a vaca saxã está prenha. Talvez o pai queiracomprar a criança, não?

— Se for um menino — respondi em dúvida—, talvez.

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— Então você deve fazer uma oferta — disseSigefrid.

— Alfredo poderia pagar uma pequena quantiapelo neto — comecei.

— Não a mim — interrompeu Sigefrid. —Você

deve persuadir Weland de sua boa-fé.

— Wayland? — perguntei, achando que eleestava falando do ferreiro dos deuses.

— Weland, o gigante — disse Sigefrid e,sorrindo, assentiu para além de mim. — Ele édinamarquês e ninguém jamais venceu Welandnuma luta.

— Virei-me, e encarando-me estava o maiorhomem que já vi. Um homem gigantesco. Umguerreiro, sem dúvida, mas não usava armas

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nem cota de malha. Usava calção de couro ebotas, mas acima da cintura estava nu pararevelar músculos parecendo cordas torcidassob uma pele que fora marcada e colorida comtinta, de modo que o peito largo e os braçosenormes estavam repletos de dragões pretos.Os antebraços eram cheios de braceletesmaiores do que eu jamais vira, porque nenhumbracelete normal caberia em Weland. Suabarba, preta como os dragões no corpo, tinhapequenos amuletos amarrados, e o crânio eracareca. O rosto era malévolo, coberto decicatrizes, abrutalhado, mas sorriu quando oencarei.

— Você deve convencer Weland — disseSigefrid

— de que não mente, cachorrinho, casocontrário não falarei com você.

Eu havia esperado alguma coisa do tipo. Na

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mente de Alfredo, chegaríamos a Beamfleot,realizaríamos uma discussão civilizada ealcançaríamos um compromisso moderado queeu informaria devidamente a ele, mas eu estavamais acostumado com os nórdicos. Elesprecisavam de diversão. Se eu fosse negociar,primeiro teria de mostrar minha força.Precisaria me provar, mas quando olhei paraWeland soube que fracassaria. Ele era uma ca-

beça mais alto do que eu, e eu era uma cabeçamais alto do que a maioria dos homens, mas omesmo instinto que havia me alertado de umadificuldade também havia me convencido atrazer Steapa.

Que deu seu sorriso de cara da morte. Ele nãohavia entendido nada que eu dissera a Sigefrid,ou que Sigefrid dissera a mim, mas entendeu apostura de Weland.

— Ele precisa ser espancado? — perguntou-

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me.

— Deixe-me fazer isso — disse eu.

— Não enquanto eu estiver vivo — respondeuSteapa. Em seguida desafivelou o cinto dasespadas e deu as armas ao padre Willibald,depois tirou a pesada cota de malha por cima dacabeça. Os homens que olhavam, ante-cipandoa luta, deram gritos roucos de comemoração.

— É melhor esperar que seu homem vença,cachorrinho — disse Sigefrid atrás de mim.

— Vencerá — respondi com uma confiançaque não sentia.

— Na primavera, cachorrinho — resmungouSigefrid —, você me impediu de crucificar umpadre. Ainda estou curioso, de modo que, seseu homem perder, vou crucificar essa bosta depadre que está ao seu lado.

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— O que ele está dizendo? — Willibald tinhavisto o olhar malévolo que Sigefrid deu em suadireção e, de um jeito pouco surpreendente,pareceu nervoso.

— Ele diz que você não deve usar sua magiacristã

para influenciar a luta — menti.

— Mesmo assim, vou rezar — dissecorajosamente o padre Willibald. Welandestava esticando os braços enormes eflexionando os dedos grossos. Bateu os pés,depois se acomodou numa postura de lutador,mas duvidei de que esta disputa seguiria asregras da luta-livre. Eu o estivera olhandocuidadosamente.

— Ele está favorecendo a perna direita — faleibaixinho a Steapa — o que pode significar quea esquerda já

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foi ferida.

Eu poderia ter economizado o fôlego, porqueSteapa não me escutou. Seus olhos estavamestreitos e furiosos, e o rosto, sempre severo,era agora uma retesada máscara de raivaconcentrada. Parecia um louco. Lembrei-me daúnica vez em que havia lutado com ele. Tinhasido num dia logo antes do Yule, o mesmo diaem que os dinamarqueses de Guthrum haviambaixado inesperadamente sobre Cippanhamm, eSteapa estivera calmo antes daquela luta.Naquele distante dia de inverno, havia meparecido que ele era um trabalhador indocumprir sua tarefa, confiante em suasferramentas e sua habilidade, mas não eraassim que parecia neste momento. Agora estavanuma fúria particular, e fosse porque lutavacontra um pagão odiado ou porque, emCippanhamm, havia me subestimado, eu nãosabia. Nem me importava.

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— Lembre-se — tentei de novo — de queWayland, o ferreiro, era manco.

— Comecem! — gritou Sigefrid atrás de mim.

— Deus e Jesus — berrou Steapa —, inferno eCristo! — Ele não estava reagindo à ordem deSigefrid, na verdade duvido até de que tenhaouvido. Em vez disso, invocava sua últimatensão, como um arqueiro puxando a corda deum arco de caça mais um centímetro para darforça mortal à flecha. Em seguida, Steapa uivoucomo um animal e atacou.

Weland atacou também e eles se encontraramcomo cervos na época do acasalamento.

Os dinamarqueses e os noruegueses haviam seamontoado ao redor, fazendo um círculolimitado pelas lanças da guarda pessoal deSigefrid, e os guerreiros que assistiamofegaram quando aqueles dois homens-animais

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se chocaram. Steapa havia baixado a cabeça,esperando acertar o crânio no rosto de Weland,mas este se moveu no último instante e, em vezdisso, seus corpos bateram um no outro ehouve uma agitação enquanto cada umprocurava um ponto para segurar. Steapa estavaagarrando o calção de Weland; este estavapuxando o cabelo de Steapa, e os dois usavamas mãos livres para bater um no outro com ospunhos fechados. Steapa tentou morderWeland, que lhe deu uma cabeçada, entãoSteapa baixou a mão e tentou esmagar agenitália de

Weland, e houve outra agitação desesperadaenquanto Weland erguia um dos joelhosenormes com força entre as coxas de Steapa.

— Santo Jesus — murmurou Willibald a meulado.

Weland se separou e deu um soco forte no

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rosto de Steapa, e o som do punho acertandofoi como o barulho lascado e úmido domachado de um açougueiro acertando emcarne. Agora havia sangue escorrendo do narizde Steapa, mas ele parecia não notar. Trocousocos, acertando as costelas e a cabeça deWeland, depois esticou os dedos e mandou-oscom força contra os olhos do dinamarquês.

Weland conseguiu evitar o golpe violento eacertou um soco tão forte na garganta deSteapa que o saxão cambaleou para trás,subitamente incapaz de respirar.

— Ah, meu Deus, meu Deus — sussurrouWillibald, fazendo o sinal-da-cruz.

Weland continuou rapidamente, usando osbraceletes pesados contra o crânio de Steapa,de modo que os ornamentos de metal rasparamo couro cabeludo do saxão.

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Mais sangue saiu. Steapa estava girando,cambaleando, ofegando, engasgando, esubitamente caiu de joelhos e a multidãosoltou um grande grito de zombaria diante desua fraqueza. Weland recuou um punhopoderosíssimo, mas, antes mesmo que o golpefosse dado, Steapa se jogou à frente e agarrouo tornozelo esquerdo do dinamarquês. Puxou etorceu, e Weland despencou como um carvalhoderrubado. Bateu com força no chão e Steapa,rosnando e sangrando, jogou-se em cima doinimigo e come-

çou a dar socos outra vez.

— Eles vão se matar — disse o padre Willibaldnuma voz amedrontada.

— Sigefrid não deixará que seu campeãomorra —disse eu, mas depois de falar imagineise isso seria verdade.

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Virei-me para olhar Sigefrid e descobri que eleestava me espiando. Deu um sorriso maroto,depois olhou de novo para os lutadores. Esseera o jogo dele, pensei. O resulta-do da batalhanão faria diferença para as discussões. Nada, anão ser talvez a vida do padre Willibald,dependia dessa demonstração selvagem. Era sóum jogo.

Weland conseguiu virar Steapa para ficaremlado a lado no capim. Trocaram socosineficazes e então, como se por consentimentomútuo, rolaram afastando-se um do outro e selevantaram outra vez. Houve uma pausaenquanto ambos recuperavam o fôlego, depoisse chocaram pela segunda vez. O rosto deSteapa era uma massa de sangue, o lábioinferior e a orelha esquerda de Weland estavamsangrando, um dos olhos quase fechado, e ascostelas haviam sofrido um bocado. Por ummomento os dois se agarraram, procurando

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pontos de apoio, os pés se remexendo,grunhindo, então Weland conseguiu segurar ocalção de Steapa e puxou-o, e o grande saxãogirou sobre o quadril esquerdo do dinamarquêscaindo no chão. Weland levantou o pé parapisotear a virilha de Steapa, e este segurou o pée torceu.

Weland ganiu. Foi um som estranho, pequeno,vindo de um homem tão grande, e o danocausado parecia trivial depois de tantaspancadas que ele sofrera, mas Steapafinalmente havia se lembrado de que Wayland,o ferreiro, fora mutilado por Nidung, e seugesto de torcer o pé do dinamarquês estavaagravando um ferimento antigo.

Weland tentou se afastar, mas perdeu oequilíbrio e caiu de novo, e Steapa, respirandocom dificuldade e cuspindo sangue, arrastou-see começou a bater nele outra vez. Estava

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batendo às cegas, os punhos como marretasacertando braços, peito e cabeça. Welandreagiu tentando arrancar os olhos de Steapa,mas o saxão cravou os dentes na mão quetateava e eu ouvi claramente o estalo quandoele arrancou o dedo mindinho de Weland. Estepuxou a mão rapidamente, Steapa cuspiu o dedoe baixou as mãos enormes sobre o pescoço dodinamarquês. Começou a a-pertar e Weland,engasgando, começou a se sacudir como umatruta tirada do rio.

— Chega! — gritou Erik.

Ninguém se mexeu. Os olhos de Weland iam sear-regalando enquanto Steapa, cego pelo sanguee com os dentes à mostra, estava com as mãosem volta do pescoço do dinamarquês. Steapamiava, depois grunhia, enquanto tentava cravaros dedos na goela do dinamarquês.

— Chega! — rugiu Sigefrid.

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O sangue de Steapa pingou no rosto de Welandenquanto o saxão esganava o dinamarquês.Pude ouvir Steapa grunhindo e soube que elenão pararia até que o gigan-

te estivesse morto, por isso passei por uma daslanças ho-rizontais que mantinham osespectadores afastados.

— Pára! — gritei para Steapa, e quando ele meignorou, desembainhei Ferrão de Vespa e baticom a parte chata da lâmina curta em seucrânio ensangüentado. —

Pára! — gritei de novo.

Steapa rosnou para mim e pensei, por uminstante, que ele ia me atacar, mas então osenso retornou a seus olhos semicerrados e elesoltou o pescoço de Weland e me olhou.

— Eu ganhei — disse com raiva. — Diga que

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eu ganhei!

— Ah, você ganhou — respondi.

Steapa ficou de pé. Levantou-se inseguro,depois se firmou com as pernas abertas esocou com os dois braços o ar de verão.

— Eu ganhei! — gritou.

Weland ainda estava tentando respirar. Tentouficar de pé, mas caiu de novo.

Virei-me para Sigefrid.

— O saxão venceu — falei — e o padre vive.

— O padre vive — foi Erik que respondeu.Haesten estava rindo, Sigefrid parecia acharaquilo divertido, e Weland fazia um ruídoáspero enquanto tentava respirar.

— Então faça sua oferta pela cadela de Alfredo

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—disse-me Sigefrid. E o regateio podiacomeçar.

DEZ

Sigefrid foi carregado da plataforma dascarroças por quatro homens que se esforçarampara levantar a cadeira e baixá-la em segurançano chão. Ele me dirigiu uma careta ressentida,como se fosse minha culpa ele estar aleijado, oque, acho, era. Os quatro homens carregaram acadeira até seu castelo e Haesten, que não haviame cum-primentado nem mesmo reconhecidominha presença além de dar um sorriso maroto,indicou com um gesto que deveríamos ir atrás.

— Steapa precisa de ajuda — falei.

— Uma mulher vai limpar o sangue dele —disse Haesten descuidadamente, depois deu umriso súbito. —

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Então você descobriu que Bjorn era ilusão?

— E das boas — reconheci de má vontade.

— Agora ele está morto — disse Haesten, comtanto sentimento como se falasse de um cãoque tivesse morrido. — Pegou uma febre umasduas semanas depois de você tê-lo visto. Eagora não pode mais sair da sepultura, odesgraçado! — Haesten usava uma corrente deouro, com elos grossos, que pendia pesada emseu peito largo.

Lembrei-me dele como um rapaz; era poucomais do que um garoto quando eu o resgatei,mas agora via o adulto Haesten e não gostavado que via. Seus olhos eram bastante amigáveis,mas tinham uma qualidade resguardada, comose atrás deles houvesse uma alma pronta paraatacar como uma cobra. Ele deu um soco nomeu braço com familiaridade. — Sabe que essacadela real saxã vai custar um monte de prata a

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vocês?

— Se Alfredo decidir que a quer de volta —respondi distraidamente —, acho que ele podepagar alguma coisa.

Haesten riu disso.

— E se ele não a quiser de volta? Vamos levá-la por toda a Britânia, por toda a Frankia e devolta à nossa terra, e vamos despi-la e amarrá-la numa moldura com as pernas abertas, edeixar que todo mundo venha ver a filha do reide Wessex. Quer isso para ela, senhor Uhtred?

— Você me quer como inimigo, earl Haesten?

— Acho que já somos inimigos — disseHaesten, pela primeira vez permitindo que averdade aparecesse, mas sorriu imediatamente,como se quisesse provar que não falava sério.— As pessoas pagarão boa prata para ver a filha

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do rei de Wessex, não acha? E os homenspagarão ouro para desfrutar dela. — Ele riu. —Acho que o seu Alfredo quererá impedir essahumilhação.

Ele estava certo, claro, mas não ousei admitir.

— Ela foi maltratada? — perguntei.

— Erik não deixou que chegássemos perto! —disse Haesten, evidentemente achandodivertido. — Não, ela não levou nem umarranhão. Se você quer vender uma porca, nãovai bater nela com uma vara de azevinho, não é?

— Certo — respondi. Bater num porco comuma vara de azevinho deixava ferimentos tãofundos que a carne compacta do bicho jamaispodia ser adequadamente curada com o sal. Oséquito de Haesten esperava ali perto, e entreeles reconheci Eilaf, o Vermelho, o homemcujo castelo fora usado para me mostrar Bjorn,

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e ele me fez uma pequena reverência. Ignorei acortesia.

— É melhor entrarmos — disse Haesten,indicando o castelo de Sigefrid — e vermosquanto ouro podemos espremer de Wessex.

— Primeiro preciso ver Steapa — disse eu,mas quando o encontrei ele estava rodeado porescravas saxãs que usavam um ungüento delanolina em seus cortes e hematomas. Ele nãoprecisava de mim, por isso acompanheiHaesten até o castelo.

Um círculo de banquetas e bancos havia sidoposto ao redor do fogão central do castelo.Willibald e eu rece-bemos dois dos bancosmais baixos, enquanto Sigefrid nos olhavairritado de sua cadeira do outro lado do fogãovazio. Haesten e Erik ocuparam seus lugaresdos dois lados do aleijado. Em seguida outroshomens, todos com braceletes luxuosos,

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preencheram o círculo. Esses, eu sabia, eramos nórdicos mais importantes, os que haviamtrazido dois navios ou mais, e os homens que,caso Sigefrid tivesse sucesso em conquistarWessex, seriam recompensados com grandesterras. Seus seguidores se apinhavam nasbordas do castelo onde mulheres distribuíamchifres de cerveja.

— Faça sua oferta — ordenou Sigefridabruptamente.

— Ela é uma filha, não um filho — disse eu —,portanto Alfredo não está querendo pagar umagrande quantia. Cento e trinta quilos de prataparece adequado.

Sigefrid me encarou por longo tempo, depoisolhou o salão ao redor, onde os homensobservavam e ouviam.

— Eu ouvi um saxão peidar? — perguntou ele,

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e foi recompensado com gargalhadas. Fungoude modo os-

tensivo, depois franziu o nariz, enquanto osespectadores irrompiam num coro de sons depeido. Em seguida, Sigefrid bateu com o punhoenorme no braço da cadeira e o salão ficouimediatamente silencioso. — Você me insulta

— disse ele, e vi a raiva em seus olhos. — SeAlfredo está

pensando em oferecer tão pouco, estoupensando em trazer a garota aqui agora e fazervocê ficar olhando enquanto nós montamosnela. Por que eu não deveria fazer isso?

— Ele lutou na cadeira como se quisesse ficarde pé, depois se afrouxou de novo. — É issoque você quer, seu peido saxão? Quer vê-la serestuprada?

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A raiva, pensei, tinha sido fingida. Assim comoeu havia tentado diminuir o valor de AEthelflaed, Sigefrid tinha de exagerar a ameaçacontra ela, mas eu havia nota-do um tremor denojo no rosto de Erik quando Sigefrid sugeriuestupro, e esse nojo fora dirigido ao irmão,não a mim. Mantive a voz calma.

— O rei me deu alguma autoridade paraaumentar a oferta dele.

— Ah, que surpresa! — respondeu Sigefrid,sarcás-tico — então deixe-me descobrir oslimites de sua autoridade. Queremos receber4.500 quilos de prata e 2.300 quilos de ouro.— Ele parou, querendo uma resposta, masmantive o silêncio. — E o dinheiro —continuou Sigefrid por fim — deve ser trazidoaqui pelo próprio Alfredo. Ele deve pagá-lopessoalmente.

Aquele foi um dia longo, muito longo,

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lubrificado por cerveja, hidromel e vinho debétula, e as negociações foram pontuadas porameaças, raiva e insultos. Bebi pouco, só umpouco de cerveja, mas Sigefrid e seus capitãesbeberam muito, e por isso, talvez, cederammais do que eu esperava. A verdade é quequeriam dinheiro; queriam um monte de prata eouro para conseguir mais homens e mais armase assim começar a conquista de Wessex. Euhavia feito uma estimativa aproximada dosnúmeros naquela fortaleza elevada, e achei queSigefrid poderia juntar um exército de cerca detrês mil homens, e isso nem de longe erasuficiente para invadir Wessex. Ele precisavade cinco ou seis mil homens, e mesmo essenúmero podia não ser suficiente, mas seconseguisse juntar oito mil guerreiros, elevenceria. Com um exército assim poderiaconquistar Wessex e se tornar o rei aleijado deseus campos férteis, e para conseguir essesguerreiros extras precisava de prata, e se não

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recebesse o resgate, até mesmo os homens queele possuía agora iriam se dissolverrapidamente em busca de outros senhores quepudessem lhes dar ouro brilhante e prataluminosa.

No meio da tarde haviam concordado com 1.300

quilos de prata e 230 quilos de ouro. Aindainsistiam em que Alfredo entregasse o dinheiroem mãos, mas recusei resolutamente essaexigência, chegando mesmo ao ponto de melevantar e puxar o braço do padre Willibald,dizendo que íamos embora porque nãopudemos chegar a um acordo. Muitosespectadores demonstravam tédio, e um bomnúmero estava bêbado, e rosnaram com raiva aome ver ficar de pé, de modo que, por ummomento, achei que seríamos atacados, masentão Haesten interveio.

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— Que tal o marido da cadela? — perguntouele.

— O que é que tem? — perguntei, virando-mede volta enquanto o salão silenciavalentamente.

— O marido dela não se diz senhor da Mércia?—perguntou Haesten, zombando do título comuma gargalhada. — Então que o senhor daMércia traga o dinheiro.

— E deixe que ele implore a mim pela esposa—acrescentou Sigefrid. — De joelhos.

— Concordo — disse eu, surpreendendo-oscom a facilidade de minha rendição à idéia.

Sigefrid franziu a testa, suspeitando de que euhavia cedido com facilidade demais.

— Concorda? — perguntou ele, sem saber se

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tinha ouvido direito.

— Concordo — respondi sentando-me denovo.

— O senhor da Mércia entregará o resgate eirá de joelhos até você. — Sigefrid ainda estavacom suspeitas. — O senhor da Mércia é meuprimo — expliquei — e odeio odesgraçadozinho. — E diante disso até Sigefridriu.

— O dinheiro deve estar aqui antes da lua cheia—disse ele, depois apontou um dedo gordopara mim —, e você venha na véspera para dizerque a prata e o ouro estão a caminho. Vaicolocar um galho verde no topo do mastrocomo sinal de que vem em paz.

Ele queria um dia inteiro de aviso sobre achegada do resgate a fim de poder juntar amaior quantidade possível de homens para

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testemunhar seu triunfo, assim concordei emvir na véspera da partida do navio do tesouro,mas expliquei que ele não podia esperar queisso aconte-cesse logo, porque uma quantia tãovasta demoraria para ser coletada. Sigefridresmungou diante disso, mas fui rapidamenteadiante, dizendo que Alfredo era um homemque mantinha a palavra e que, na próxima luacheia, o maior adiantamento que pudesse serjuntado seria trazido a Beamfleot. Então AEthelred deveria ser libertada, insisti, e orestante da prata e do ouro chegariam antes dalua cheia seguinte. Eles discutiram essasexigências, mas agora os homens entediados nosalão estavam ficando inquietos e com raiva,por isso Sigefrid cedeu à proposta de que oresgate seria pago em duas partes, e eu cediadmitindo que A Ethelflaed só seria libertadaquando a segunda parte fosse entregue.

— E quero ver a senhora A Ethelflaed agora —

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disse, fazendo minha última exigência.

Sigefrid balançou a mão, descuidadamente.

— Por que não? Erik vai levá-lo. — Erik malhavia falado durante todo o dia. Como eu,permanecera sóbrio, e não tinha se juntado aosinsultos nem aos risos. Em vez disso, ficousentado, sério e contido, os olhos atentos indodo irmão para mim. — Você comerá conoscoesta noite

— disse Sigefrid. E sorriu de repente,mostrando parte do charme que eu haviasentido quando o conheci em Lundene. —Vamos comemorar o acordo com uma festa, eseus homens em Thunresleam também serãoalimentados.

Pode falar com a garota agora! Vá com meuirmão.

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Erik guiou o padre Willibald e eu em direção auma construção menor guardada por uma dúziade homens com grandes cotas de malha, todosusando escudos e armas. Obviamente era olugar onde A Ethelflaed estava sendo mantidaem cativeiro e ficava perto da muralha voltadapara o mar. Erik não falou enquanto andávamos,na verdade parecia quase não notar minhacompanhia, mantendo os olhos fixos com tantafirmeza no chão que eu tive de guiá-lo ao redorde alguns cavaletes nos quais homensmoldavam novos remos. As aparas de madeira,compridas e enroladas, soltavam-se e liberavamum cheiro estranhamente doce no calor do fimde tarde. Erik parou logo depois dos cavaletes ese virou para mim, franzindo a testa.

— Você falou sério, hoje? — perguntou comraiva.

— Falei muita coisa hoje — respondi

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cautelosamente.

— Sobre o rei Alfredo não querer pagar muitopela senhora A Ethelflaed? Porque ela émulher?

— Os filhos valem mais do que as filhas —respondi sincero.

— Ou você estava só barganhando? —perguntou em tom feroz. Hesitei. Pareceu-meuma pergunta estranha porque Erik certamentetinha inteligência para ver através daquelatentativa débil de diminuir o valor de AEthelflaed, mas havia uma paixão verdadeira emsua voz e eu senti que ele precisava escutar averdade. Além disso, nada que eu dissesseagora poderia mudar os arranjos que eu fizeracom Sigefrid. Nós dois havíamos bebido acerveja do trato para demonstrar que tínhamoschegado a um acordo, cus-pimos na mão etocamos as palmas, depois juramos sobre um

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amuleto do martelo para manter a fé um com ooutro.

O trato fora feito, e isso significava que eupoderia dizer a verdade a Erik.

— Claro que estava barganhando. A Ethelflaedé

querida pelo pai, muito querida. Ele estásofrendo por causa de tudo isso.

— Achei que você tinha de estar barganhando—disse Erik, pensativo. Em seguida se virou eolhou para o amplo estuário do Temes. Umnavio-dragão estava deslizando na marémontante em direção ao riacho, as pás dosremos subindo e descendo para captar e refletiro sol po-ente a cada remada preguiçosa. —Quanto o rei teria pagado pela filha?

— O que fosse necessário — respondi.

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— Verdade? — Agora ele parecia ansioso. —Ele não estabeleceu limite?

— Ele me mandou — respondi sincero —pagar o que fosse necessário para levar AEthelflaed para casa.

— Para o marido — disse ele em tom chapado.

— Para o marido — concordei.

— Que deveria morrer. — Erik estremeceuincon-trolavelmente, um tremor rápido, masalgo que me disse que ele tinha na alma umtoque da fúria do irmão.

— Quando o senhor A Ethelred vier com oouro e a prata — alertei Erik —, você não podetocar nele. Ele virá sob um estandarte detrégua.

— Ele bate nela! É verdade? — A pergunta foi

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abrupta.

— Bate.

Erik me encarou por um instante e pude vê-lolutando para controlar aquele jorro súbito deraiva. Assentiu e se virou.

— Por aqui — falou guiando-me para aconstrução menor. Os guardas, notei, eramtodos homens mais velhos, e achei quedeveriam não somente guardar A Ethelflaed,mas também não molestá-la. — Ela não foimaltratada — disse Erik, talvez lendo meuspensamentos.

— Foi o que me garantiram.

— Ela tem três de suas próprias aias aqui, e eulhe dei duas garotas dinamarquesas, ambas boasgarotas. E

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pus esses guardas na casa.

— Homens em quem você confia.

— Meus homens — disse ele calorosamente—, e sim, dignos de confiança. — Ele estendeuuma das mãos para me conter. — Vou trazê-laaqui fora para encontrar você, porque ela gostade ficar ao ar livre.

Esperei enquanto o padre Willibald olhavanervoso para os nórdicos que nos vigiavam defora do castelo de Sigefrid.

— Por que vamos encontrá-la aqui fora? —perguntou ele.

— Porque Erik diz que ela gosta de ficar ao arlivre.

— Mas eles vão me matar se eu lhe der osacramento aqui?

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— Porque acham que você está fazendo magiacristã? Duvido, padre. — Fiquei olhando Erikpuxar de lado a cortina de couro que serviacomo porta da construção. Ele dissera algumacoisa aos guardas primeiro, e agora essesguerreiros ficaram de lado, deixando umespaço aberto entre a fachada da construção eas muralhas da fortaleza.

Aquelas fortificações eram um grosso barrancode terra, com apenas cerca de 1 metro dealtura, mas eu sabia que o outro lado descerianuma altura muito maior. O barranco eraencimado por uma paliçada de grossos troncosde carvalho que haviam sido afiados até formarpontas. Eu não podia imaginar a possibilidadede subir o morro a partir do riacho e depoistentar atravessar aquela parede formidável. Mastambém não podia visualizar um ataque pelolado de terra, subindo o morro descoberto atéchegar ao fosso, à muralha e à paliçada que

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protegia aquele lugar.

Era um bom acampamento, não inexpugnável,mas sua captura seria inimaginavelmente caraem termos de vidas humanas.

— Ela vive — ofegou o padre Willibald, e euolhei de volta para a construção e vi AEthelflaed passando pela cortina de couro queestava segura de lado por uma mão não vista.Parecia menor e mais nova do que nunca e,ainda que a gravidez tivesse finalmentecomeçado a aparecer, ainda parecia esguia.Esguia e vulnerável, pensei, e então ela me viu,e um sorriso veio ao seu rosto. O padreWillibald foi em sua direção, mas eu o contivesegurando seu ombro. Algo na postura de AEthelflaed me fez detê-lo.

Eu havia esperado que A Ethelflaed corressepara mim, aliviada, mas em vez disso elahesitou junto à porta e o sorriso que havia me

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oferecido foi meramente respeitoso.

Estava satisfeita em me ver, isso era certo, mashavia uma cautela em seus olhos até que ela sevirou para ver Erik seguindo-a pela cortina. Eleindicou que ela deveria me cumprimentar, e sóentão, quando havia recebido seu en-corajamento, A Ethelflaed veio em minhadireção.

E agora seu rosto estava radiante.

E me lembrei de seu rosto no dia em que elahavia se casado na nova igreja do pai emWintanceaster. Hoje parecia a mesma daquelaocasião. Parecia feliz. Reluzia.

Caminhava leve como uma dançarina, e sorriade modo lindo. E me lembrei de que haviapensado, naquela igreja, que ela estavaapaixonada pelo amor. E esta, percebisubitamente, era a diferença entre aquele dia e

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este.

Porque o sorriso radiante não era para mim.Ela olhou para trás de novo e atraiu o olhar deErik, e eu simplesmente fiquei olhando.Deveria ter sabido, com base em tudo o queErik dissera. Deveria saber, porque estava clarocomo um sangue recém-derramado em nevevirgem.

A Ethelflaed e Erik estavam apaixonados.

O amor é uma coisa perigosa.

Vem disfarçado para mudar nossa vida. Eu haviapensado que amava Mildrith, mas aquilo eraluxúria, se bem que por um tempo pensei quefosse amor. A luxúria é a enganadora. A luxúriaarranca nossa vida até que nada mais importe, anão ser quem pensamos amar e, sob essefeitiço enganador, matamos pela pessoa, damostudo por ela, e então, quando temos o que

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queríamos, descobrimos que é tudo ilusão enão há nada ali. A luxúria é uma viagem a lugarnenhum, a uma terra vazia, mas alguns homenssimplesmente amam essas viagens e jamais seimportam com o destino.

O amor também é uma viagem, uma viagemsem destino além da morte, mas é uma viagemde contenta-mento. Eu amava Gisela, e éramosafortunados porque nossos fios tinham sejuntado e ficaram juntos, e estávamosenrolados um ao redor do outro, e as trêsNorns, pelo menos por um tempo, foram gentisconosco. O amor funciona até mesmo quandoos fios não ficam confortavelmente lado alado. Eu passara a ver que Alfredo amava sua AElswith, ainda que ela fosse como um bocadode vinagre em seu leite. Talvez elesimplesmente estivesse acostumado com ela, etalvez o amor seja mais amizade do que luxúria,mas os deuses sabem que a luxúria está

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sempre ali. Gisela e eu havíamos ganhado essecontenta-mento, como Alfredo com A Elswith,mas acho que nossa viagem era mais felizporque nosso barco dançava em maresensolarados e era impulsionado por um ventoveloz e quente.

E A Ethelflaed? Vi no rosto dela. Vi em seubrilho todo o amor súbito e toda a infelicidadeque viria, e todas as lágrimas e todo osofrimento. Ela estava numa viagem, e era umaviagem de amor, mas era viajar numatempestade tão opaca e sombria que meucoração quase se partiu.

— Senhor Uhtred — disse ela ao se aproximar.

— Senhora — respondi, e fiz uma reverência,depois não dissemos nada.

Willibald falou sem parar, mas não creio quenenhum de nós tenha ouvido. Olhei para ela, ela

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sorriu para mim e o sol brilhou naquela gramaalta sob as cotovias que cantavam, mas eu sóconseguia ouvir o trovão espo-cando no céu, sópodia ver ondas se despedaçando em fúriabranca, um navio inundando e a tripulação seafogando desesperada. A Ethelflaed amava.

— Seu pai lhe manda seu afeto — faleiencontrando a voz.

— Coitado do papai. Ele está com raiva demim?

— Ele não mostra raiva a ninguém, mas deveestar furioso com seu marido.

— É — concordou ela calmamente. — Deve.

— E estou aqui para combinar sua libertação— falei, ignorando minha certeza de que alibertação era a última coisa que ela desejavaagora. — E a senhora gostará

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de saber que tudo está acordado e que senhoralogo estará

em casa.

Ela não demonstrou prazer diante da notícia. O

padre Willibald, cego a seus verdadeirossentimentos, sorriu para ela, e A Ethelflaed orecompensou com um sorriso torto.

— Estou aqui para lhe dar os sacramentos —disse Willibald.

— Eu gostaria disso — respondeu AEthelflaed, séria, depois olhou para mim e, porum instante, houve desespero em sua voz. —Você vai esperar por mim? —perguntou ela.

— Esperar pela senhora? — perguntei perplexocom a questão.

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— Aqui fora — explicou ela. — E o queridoWillibald poderá rezar comigo lá dentro.

— Claro — respondi.

Ela sorriu agradecendo e levou Willibald para aconstrução enquanto eu ia até a muralha e subiano barranco baixo para me encostar na paliçadaaquecida pelo sol e olhar o rio tão lá embaixo.O navio-dragão, sem a cabeça esculpida, quefora retirada, estava entrando no canal pelaforça dos remos e eu fiquei olhando os homensdesacorrentarem o navio de guarda quebloqueava o Hothlege. O navio bloqueadorestava amarrado pela proa e pela popa porcorrentes pesadas presas a postes enormesafundados na margem lamacenta, e a tripulaçãosoltou a corrente da popa e depois liberou-a,amarrada numa corda comprida. A correnteafundou no leito do riacho enquanto o naviogirava preso à corrente da proa para se abrir

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como um portão na maré montante, liberando apassagem.

O barco recém-chegado passou remando,depois a tripulação do navio bloqueador puxoua corda para recuperar a corrente e assimarrastar o navio de volta para barrar o riachooutra vez. Havia pelo menos quarenta homensnaquele navio bloqueador, e eles não estavamali simplesmente para puxar cabos e correntes.Os flancos do navio tinham sido reforçadoscom tábuas extras, todas de madeira pesada, demodo que a linha da amurada era bem mais altado que a de qualquer embarcação que poderiaatacá-lo. Assaltar aquele navio bloqueador seriacomo atacar uma paliçada de uma fortaleza. Onavio-dragão deslizou subindo o Hothlege,passando por barcos erguidos acima da margemlamacenta, onde homens calafetavam as tábuascom crina e alcatrão. A fumaça das fogueirassob os potes de alcatrão subia pela encosta em

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que as gaivotas circulavam, com gritos roucosno calor da tarde.

— Sessenta e quatro navios — disse Erik. Elehavia subido ao meu lado.

— Eu sei. Contei.

— E na semana que vem teremos cemtripulações aqui.

— E vão ficar sem comida, com tantas bocaspara alimentar.

— Há comida suficiente aqui — respondeuErik, sem dar importância. — Temosarmadilhas para peixe e enguia, caçamos aves ecomemos bem. E a perspectiva de prata e ourocompra muito trigo, cevada, aveia, carne, peixee cerveja.

— Vai comprar homens também — observei.

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— Vai — concordou ele.

— E assim Alfredo de Wessex pagará pelaprópria destruição.

— É o que parece — disse Erik em voz baixa.Em seguida olhou para o sul, para onde grandesnuvens se empilhavam sobre Cent, com ostopos branco-prata e as bases escuras sobre adistante terra verde.

Virei-me para olhar o acampamento dentro docírculo de fortificações e vi Steapa, mancandoligeiramente e com bandagens na cabeça, sairde uma cabana. Parecia meio bêbado. Ele meviu, acenou e sentou-se à sombra do castelo deSigefrid, onde pareceu cair no sono.

— Você acha — falei ainda de costas para Erik—que Alfredo não pensou no que vocês vãocomprar com o dinheiro do resgate?

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— Mas o que ele pode fazer a respeito?

— Isso não sou eu que vou dizer — faleitentando dar a entender que houvesse umaresposta. Na verdade, se sete ou oito milnórdicos aparecessem em Wessex, nãoteríamos opção além de lutar, e a batalha,pensei, seria horrenda. Seria um derramamentode sangue ainda maior do que Ethandun, e nofim provavelmente haveria um novo rei emWessex e um novo nome para o reino. Nor-seland, talvez.

— Fale-me de Guthred — pediu Erikabruptamente.

— Guthred! — Virei-me para ele, surpresocom a pergunta. Guthred era irmão de Gisela erei da Nortúmbria, e eu não podia imaginar oque ele tinha a ver com Alfredo, A Ethelflaedou Erik.

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— Ele é cristão, não é? — perguntou Erik.

— É o que diz.

— E é?

— Como é que vou saber? Ele diz que écristão, mas duvido de que tenha desistido doculto aos deuses verdadeiros.

— Você gosta dele? — perguntou Erik,ansioso.

— Todo mundo gosta de Guthred — respondi,e era verdade, no entanto eu ficavaconstantemente atônito ao pensar em como umhomem tão afável e indeciso podia ter mantidoseu trono por tanto tempo. O principal motivo,eu sabia, era que meu cunhado tinha o apoio deRagnar, meu irmão de alma, e ninguém iriaquerer lutar contra as forças selvagens deRagnar.

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— Eu estava pensando — disse Erik, e emseguida ficou quieto, e em seu silêncio entendisubitamente o que ele estava sonhando.

— Você estava pensando — falei a verdadebrutal

— que você e A Ethelflaed poderiam pegar umnavio, talvez o navio de seu irmão, ir para aNortúmbria e viver sob a proteção de Guthred?

Erik me olhou como se eu fosse um mago.

— Ela lhe contou?

O rosto de vocês dois me contou.

— Guthred nos protegeria.

— Como? — perguntei. — Acha que ele vaiconvocar o exército caso seu irmão vá atrás devocês?

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— Meu irmão? — perguntou Erik, como seSigefrid fosse lhe perdoar qualquer coisa.

— Seu irmão — falei asperamente —, que estáesperando um pagamento de 1.400 quilos deprata e 230

quilos de ouro, e se você levar A Ethelflaedembora, ele perde esse dinheiro. Acha que elenão vai querê-la de volta?

— Seu amigo, Ragnar — sugeriu Erik,hesitante.

— Quer que Ragnar lute por você? Por que elefaria isso?

— Porque você vai pedir — disse Erik comfirmeza. — A Ethelflaed diz que vocês dois seamam como irmãos.

— É verdade.

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— Então peça a ele.

Suspirei, olhei para aquelas nuvens distantes epensei em como o amor arranca nossa vida enos leva para uma insanidade tão doce.

— E o que você fará contra os assassinos queirão durante a noite? Contra os homensvingativos que queimarão seu castelo?

— Irei me resguardar contra eles — disse Erik,teimoso.

Fiquei olhando as nuvens se empilharem maisaltas e pensei que Tor estaria mandando seusraios sobre os campos de Cent antes que atarde de verão terminasse.

— A Ethelflaed é casada — falei gentilmente.

— Com um desgraçado maligno — respondeuErik furioso.

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— E o pai dela considera que o casamento ésagrado.

— Alfredo não vai trazê-la de volta daNortúmbria

— disse Erik cheio de confiança. — Nenhumexército saxão do oeste poderia chegar tãolonge.

— Mas ele mandará padres para corroer aconsci-

ência dela. E como você sabe que ele não vaimandar homens pegá-la? Não é preciso umexército. Uma tripulação de homens decididospode bastar.

— Eu só peço uma chance! Um castelo emalgum vale, campos para plantar, animais paracriar, um lugar para ficar em paz!

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Por um tempo não falei nada. Erik, pensei,estava construindo um navio em seus sonhos,um lindo navio, um navio de casco rápido eelegante, mas era só um sonho! Fechei osolhos, tentando pensar nas palavras.

— A Ethelflaed é um prêmio — faleifinalmente.

— Ela tem valor. É filha de um rei e sua partedo casamento foi terra. Ela é rica, é linda, évaliosa. Qualquer homem que queira ser ricosaberá onde ela está. Qualquer rapineiroquerendo um resgate rápido saberá ondeencontrá-la. Vocês nunca terão paz. — Virei-me e olhei para ele.

— Cada noite, quando trancar a porta, vocêtemerá os inimigos no escuro, e todo diaprocurará os inimigos. Não haverá paz paravocês, nenhuma.

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— Dunholm — disse ele em tom chapado.Meio sorri.

— Conheço o lugar.

— Então sabe que é uma fortaleza que nãopode ser capturada — disse Erik, teimoso.

— Eu capturei.

— E ninguém mais fará o que você fez, até queo mundo caia. Nós podemos viver emDunholm.

— Ragnar é dono de Dunholm.

— Então farei juramentos a ele — disse Erikcom fervor. — Vou me tornar homem dele, voujurar minha vida a ele.

Pensei nisso por um momento, testando osonho louco de Erik contra as duras realidades

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desta vida. Dunholm, aninhada em sua curva dorio e empoleirada em seu alto penhasco, era defato quase inacessível. Um homem podiapensar em morrer na cama se controlasseDunholm, porque até mesmo um punhado desoldados bastava para defender o íngremecaminho rochoso que era o único modo dechegar perto. E Ragnar, eu sabia, iria se divertircom Erik e A Ethelflaed, e assim me sentisendo seduzido pela paixão de Erik. E se seusonho não fosse tão louco quanto eu pensava?

— Mas como você leva A Ethelflaed daqui semque seu irmão saiba?

— Com sua ajuda — disse ele.

E com essa resposta pude ouvir as três Nornsgargalhando. Uma trompa soou noacampamento, um chamado, supus, para ofestim que Sigefrid havia prometido.

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— Sou jurado a Alfredo — falei com decisão.

— Não peço que você quebre esse juramento.

— Pede sim! — respondi ríspido. — Alfredome deu uma missão. Já cumpri metade dela. Aoutra metade é

recuperar a filha dele!

Os grandes punhos de Erik se enrolaram edesenro-laram no topo da paliçada.

— Mil e quatrocentos quilos de prata — disseele

— e 230 quilos de ouro. Pense em quantoshomens isso vai comprar.

— Já pensei.

— Uma tripulação de guerreirosexperimentados pode ser comprada por menos

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de meio quilo de ouro —disse Erik.

— Verdade.

— E agora temos homens suficientes paradesafiar Wessex.

— Vocês podem desafiar Wessex, mas nãoderrotar.

— Mas derrotaremos, quando tivermos o ouroe os homens.

— Verdade — admiti de novo.

— E o ouro trará mais homens — continuouErik implacavelmente — e mais navios, e nesteoutono ou na primavera que vem levaremosuma horda para Wessex.

Faremos o exército que vocês derrotaram emEthandun parecer pequeno. Vamos enegrecer a

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terra. Vamos queimar suas cidades, escravizarseus filhos, usar suas mulheres, tomar sua terrae matar seus homens. É isso que Alfredo quisdizer a você?

— Estes são os planos de seu irmão?

— E para fazer isso — disse Erik, ignorando apergunta porque sabia que eu já conhecia aresposta —, ele deve vender A Ethelflaed devolta ao pai.

— É — admiti. Se o resgate não fosse pago, oshomens já acampados em Beamfleot e ao redordesapare-ceriam como orvalho numa manhãquente. Não viriam mais navios e Wessex nãoseria ameaçado.

— Seu juramento, pelo que sei — disse Erikrespeitosamente —, é servir a Alfredo deWessex. Você o serve, senhor Uhtred,permitindo que meu irmão se torne

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suficientemente rico para destruí-lo?

Então, pensei, o amor havia posto Erik contra oirmão. O amor o faria passar uma espada porcada juramento que já havia feito. O amor tempoder sobre o próprio poder. A trompa soou denovo, com mais urgência.

Homens corriam para o grande castelo.

— Seu irmão sabe que você ama A Ethelflaed?—perguntei.

— Ele acredita que a amo por enquanto, masque vou perdê-la pela prata. Acha que eu a usopara meu prazer e acha isso divertido.

— E você a usa? — perguntei asperamente,olhando seus olhos honestos.

— Isso é da sua conta? — perguntou ele emdesafio.

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— Não, mas você quer minha ajuda. Elehesitou, depois assentiu.

— Eu não chamaria isso assim — disse ele,parecendo na defensiva —, mas nós nosamamos.

Então A Ethelflaed havia bebido a água amargaantes do pecado, pensei, e isso era muitointeligente de sua parte. Sorri por ela, depoisfui para o festim de Sigefrid.

A Ethelflaed estava sentada no lugar de honra àdireita de Sigefrid, e eu fiquei ao lado dela.Erik estava do outro lado de Sigefrid, comHaesten junto. A Ethelflaed, notei, jamaisolhava para Erik. Ninguém que estivesseobservando — e muitos homens no casteloestavam curiosos com relação à filha do rei deWessex — poderia ter adivinhado que ela setornara amante dele.

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Os nórdicos sabem fazer uma festa. A comidaera farta; a cerveja, generosa e a diversão,interessante. Havia malabaristas e homens compernas de pau, músicos, acro-batas e artistasque se espalhavam pelas mesas e causavamjorros de gargalhadas.

— Não deveríamos rir dos loucos — disse-meA Ethelflaed. Ela mal havia comido, a não serpara mordiscar amêijoas de uma tigela.

— Eles são bem tratados — respondi —, ecertamente é melhor ser alimentado e abrigadodo que deixado para as feras. — Eu estavaolhando um louco nu revistan-doconvulsivamente a própria genitália. Ficavaolhando as mesas de gente gargalhando, incapazde entender o barulho. Uma mulher de cabelosemaranhados, insuflada por gritos roucos, tirouas roupas uma a uma, sem saber por que faziaaquilo.

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A Ethelflaed olhou para a mesa.

— Há mosteiros que cuidam dos insanos —disse ela.

— Não onde os dinamarqueses governam.

Ela ficou quieta por um tempo. Dois anõesestavam arrastando a mulher agora nua até ohomem nu, e os espectadores desmoronavamde gargalhadas. A Ethelflaed levantou a cabeçabrevemente, estremeceu e olhou de novo para amesa.

— Você falou com Erik? — perguntou.Podíamos falar em inglês com segurança,porque ninguém podia nos ouvir. E mesmo quepudesse, não entenderia a maior parte do quedizíamos.

— Como você queria — observei, percebendoque esse era o motivo para ela ter insistido em

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levar o padre Willibald para dentro daconstrução.

— Você fez uma confissão de verdade?

— Isso é da sua conta?

— Não — respondi, depois gargalhei.

Ela me olhou e deu um sorriso muito tímido.Em seguida, ficou vermelha.

— Então, vai nos ajudar?

— A fazer o quê? Ela franziu a testa.

— Erik não contou?

— Ele disse que você queria minha ajuda, masque tipo de ajuda?

— Ajude-nos a sair daqui.

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— E o que seu pai fará comigo se eu ajudá-los?—perguntei, e não recebi resposta. — Acheique você odiava os dinamarqueses.

— Erik é norueguês.

— Dinamarqueses, noruegueses, nórdicos,vikings, pagãos, são todos inimigos do seu pai.

Ela olhou para o espaço aberto ao lado dofogão, onde os dois lunáticos nus estavamlutando, em vez de fazer amor, como a platéiasem dúvida havia previsto. O

homem era muito maior, porém mais idiota, e amulher, sob aplausos ferozes, estava batendo nacabeça dele com um punhado de juncos dochão.

— Por que deixam que eles façam isso? —perguntou A Ethelflaed.

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— Porque isso os diverte, e porque eles nãotêm um bando de clérigos de mantos pretosdizendo o que é

certo e o que é errado, e é por isso, senhora,que gosto deles.

Ela baixou a cabeça de novo.

— Eu não queria gostar de Erik — falou emvoz muito baixa.

— Mas gostou.

Havia lágrimas em seus olhos.

— Não pude evitar. Rezei para que isso nãoacon-tecesse, mas quanto mais rezava, maispensava nele.

— E assim você o ama.

— É.

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— Ele é um bom homem — garanti.

— Você acha? — perguntou ela, ansiosa.

— Acho, de verdade.

— E vai virar cristão — continuou ela comentusiasmo. — Me prometeu isso. Ele quer.Verdade!

Isso não me surpreendeu. Erik havia mostradohá

muito um fascínio pelo cristianismo, e euduvidava de que fora necessária muitapersuasão da parte de A Ethelflaed.

— E quanto a A Ethelred?

— Eu o odeio — ela sibilou as palavras comtanta veemência que Sigefrid virou-se paraencará-la. Ele deu de ombros, incapaz de

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entendê-la, depois olhou de novo para a lutados nus.

— Você vai perder sua família — alertei.

— Farei uma família — disse ela com firmeza.—

Erik e eu vamos fazer uma família.

— E você vai viver entre os dinamarqueses,que, segundo me disse, você odeia.

— Você vive entre os cristãos, senhor Uhtred—respondeu ela com um clarão de seu antigojeito travesso.

Sorri disso.

— Tem certeza? — perguntei. — Com relaçãoa Erik?

— Tenho — respondeu ela com intensidade, e

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aquilo era o amor falando, claro.

Suspirei.

— Se eu puder, vou ajudá-los.

Ela pôs a mão pequena sobre a minha.

— Obrigada.

Agora dois cachorros tinham começado abrigar e os convidados instigavam e aplaudiamos animais. Velas de junco e sebo foram acesase outras de cera foram trazidas à mesa de cimaenquanto a tarde de verão ia escurecendo láfora. Mais cerveja chegou, e vinho de bétulatambém, e os primeiros bêbados cantavamroucos.

— Logo vão começar a brigar — contei a AEthelflaed, e brigaram. Quatro homens tiveramossos quebrados antes do fim da festa,

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enquanto outro teve um dos olhos arrancadoantes que seu furioso agressor bêbado fossepuxado para longe. Steapa estava sentado pertode Weland, e os dois, mesmo falando línguasdiferentes, compartilhavam um chifre de beber,com borda de prata, e pareciam fazercomentários disparatados sobre os brigões quese esparramavam no chão em fúria bêbada.Weland estava obviamente bêbado também,porque passou o braço enorme pelos ombrosde Steapa e começou a cantar.

— Você parece um bezerro sendo castrado! —rugiu Sigefrid para Weland, depois exigiu queum cantor de verdade fosse trazido, e assim umskald cego recebeu uma cadeira perto dofogão, tocou sua harpa e cantou uma cançãosobre as proezas de Sigefrid. Contou sobre osfrancos que Sigefrid havia matado, os saxõescortados por sua espada, Espalha-Medo, e asmulheres frísias tornadas viúvas pelo

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norueguês com capa de urso. O poema men-cionava muitos dos homens de Sigefrid pelonome, nar-rando seu heroísmo em batalha, e àmedida que cada nome era cantado, o homemse levantava e seus amigos o aplaudiam. Se oherói citado estivesse morto, os ouvintesbatiam três vezes nas mesas para que o mortoouvisse a ovação solene no castelo de Odin.Mas os maiores aplausos eram para Sigefrid,que levantava um chifre de cerveja a cada vezque seu nome era mencionado.

Fiquei sóbrio. Era difícil, porque me sentiatentado a acompanhar Sigefrid, chifre a chifre,mas sabia que precisava retornar a Lundene namanhã seguinte, e isso significava que Eriktinha de acabar sua conversa comigo naquelamesma noite, mas na verdade o céu a leste jáestava clareando quando saí do castelo. AEthelflaed, escoltada por guardas mais sóbriose mais velhos, tinha ido para a cama horas atrás.

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Homens bêbados se esparramavam num sonoruidoso sob os bancos enquanto eu ia andando,e Sigefrid estava tombado na mesa. Ele haviaaberto um dos olhos e franziu a testa quandosaí.

— Temos um trato? — perguntou sonolento.

— Temos um trato — confirmei.

— Traga o dinheiro, saxão — resmungou ele, ecaiu de novo no sono. Erik estava me esperandodo lado de fora do alojamento de A Ethelflaed.

Eu havia esperado que ele estivesse ali, eocupamos o mesmo lugar de antes na muralha,onde observei a luz cinza se espalhar como umamancha sobre as águas calmas do estuário.

— Aquele é o Domador de Ondas — disseErik, assentindo para os navios encalhados napraia lamacenta.

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Ele podia ser capaz de discernir o belo barcoque havia feito, mas para mim toda a frota nãopassava de formas pretas contra o cinza. —Raspei o casco até ficar limpo, calafetei e odeixei rápido de novo.

— Sua tripulação é de confiança?

— São jurados a mim. São de confiança. —Erik fez uma pausa. Um vento fraco levantouseu cabelo escuro. — Mas o que eles não farão— continuou em voz baixa — é lutar contra oshomens de meu irmão.

— Talvez tenham de fazer isso.

— Eles vão se defender, mas não atacar. Háparentes dos dois lados. Espreguicei-me,bocejei e pensei na longa viagem para casa emLundene.

— Então seu problema é o navio que bloqueia

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o canal?

— Que é tripulado pelos homens de meu ir-mão.

— Não são de Haesten?

— Eu mataria os homens dele — disse Erikcom amargura —, não há parentesco ali.

Nem afeto também, observei.

— Então você quer que eu destrua o navio?

— Quero que você abra o canal — corrigiu ele.

Olhei para aquele escuro navio bloqueador coma borda do casco reforçada.

— Por que simplesmente não exige que elessaiam de seu caminho? — perguntei. Esteparecia o modo menos complicado e maisseguro de Erik escapar. A tripula-

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ção do navio acorrentado estava acostumada amover o casco pesado e permitir queembarcações entrassem ou saíssem do riacho,então por que ela impediria Erik?

— Nenhum navio deve navegar até a chegada doresgate — explicou Erik.

— Nenhum?

— Nenhum — respondeu eleperemptoriamente.

E isso fazia algum sentido. Afinal de contas, oque impediria que algum homem empreendedorlevasse três ou quatro navios rio acima paraesperar num riacho abri-

gado por juncos até a frota do tesouro deAlfredo passar, em seguida saísse, com remosbatendo, espadas desemba-inhadas e homensgritando? Sigefrid havia ligado sua ambição

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monstruosa à chegada do resgate e não searriscaria a perdê-lo para algum viking aindamais bandido do que ele, e isso sugeria apessoa que provavelmente corporifica-va omedo de Sigefrid.

— Haesten? — perguntei a Erik. Ele assentiu.

— Um sujeito ardiloso.

— Ardiloso — concordei — e indigno deconfian-

ça. Que viola juramentos.

— Ele vai compartilhar o resgate, claro —disse Erik, ignorando o fato de que, se tivesse oque desejava, nenhum resgate jamais seria pago—, mas tenho certeza de que preferiria ficarcom tudo.

— Então nenhum navio navega até você

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navegar.

Mas você consegue levar A Ethelflaed a seunavio sem que seu irmão saiba?

— Consigo. — Ele tirou uma faca da bainha nocinto. — São duas semanas até a próxima luacheia —continuou, depois fez uma marca fundano topo afiado de um tronco de carvalho. —Isto é hoje — disse ele, batendo no corterecente, depois fez outra marca funda com ogume da faca. — Amanhã de manhã —continuou, indicando o novo corte, depoiscontinuou cortando o topo da paliçada até terfeito sete cicatrizes nas madeiras. — Você

virá ao amanhecer, daqui a uma semana?Assenti cautelosamente.

— Mas no momento em que eu atacar —observei

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—, alguém toca uma trompa e acorda oacampamento.

— Estaremos flutuando — disse ele —,prontos para ir. Ninguém pode alcançá-lo,saindo do acampamen-

to, antes de você estar de volta no mar. — Elepareceu preocupado com minhas dúvidas. —Eu pago a você!

Sorri daquelas palavras. O amanhecer estavaclareando o mundo, colorindo os longos fiaposde nuvens com riscas de ouro pálido e bordasde prata brilhante.

— Meu pagamento é a felicidade de AEthelflaed. E

daqui a uma semana vou abrir o canal. Vocêspodem partir juntos, fazer uma parada emGyruum, ir a toda velocidade até Dunholm e dar

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meus cumprimentos a Ragnar.

— Você vai lhe mandar uma mensagem? —perguntou Erik ansioso. — Para alertá-lo denossa chegada?

Balancei a cabeça.

— Leve a mensagem para mim — falei, ealgum instinto fez com que eu me virasse evisse que Haesten estava nos vigiando. Estavaparado com dois companheiros diante dogrande castelo, colocando o cinto das espadastrazidas pelo guarda de Sigefrid do lugar ondetodos havíamos entregado nossas armas antesda festa. Não havia nada de estranho no queHaesten fazia, a não ser meus sentidos seeriçando porque ele parecia tão alerta. Tiveuma suspeita horrenda de que ele sabia sobre oque Erik e eu conversávamos. Ele continuoume olhando. Estava imóvel, mas por fim fezuma reverência zombeteira e se afastou. Vi que

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Eilaf, o Vermelho, era um de seus doiscompanheiros. — Haesten sabe sobre você e AEthelflaed? — perguntei a Erik.

— Claro que não. Só acha que sou responsávelpor guardá-la.

— Ele sabe que você gosta dela?

— É só isso que ele sabe — insistiu Erik.

O astuto Haesten, indigno de confiança, que medevia a vida. Que havia quebrado o juramento.Cujas am-

bições provavelmente ultrapassavam atémesmo os sonhos de Sigefrid. Olhei-o até elepassar pela porta do que supus fosse seucastelo.

— Tenha cuidado com Haesten — alertei Erik.—

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Acho que ele é subestimado com facilidade.

— Ele é uma doninha — disse Erik,desconsiderando meus temores.

— Que mensagem devo levar a Ragnar?

— Diga a Ragnar que a irmã dele está feliz edeixe A Ethelflaed lhe dar notícias sobre ela.— Não havia sentido em escrever nada, mesmoque eu possuísse pergaminho e tinta, porqueRagnar não sabia ler, mas A Ethelflaedconhecia Thyra e as notícias sobre a mulher deBeocca convenceriam Ragnar de que osamantes fugitivos conta-vam a verdade. — Edaqui a uma semana — falei

—,

quando a parte superior do sol tocar a borda domundo, esteja pronto.

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Erik pensou por um instante, fazendo umcálculo rápido na cabeça.

— A maré será vazante, água parada. Estaremosprontos. Por loucura, pensei, ou por amor.Loucura. Amor. Loucura.

E como as três irmãs na raiz do mundo deviamestar gargalhando!

Falei pouco enquanto cavalgávamos para casa.Finan conversava alegremente, dizendo comoSigefrid fora generoso com sua comida,cerveja e escravas. Entreouvi suas palavras atéque o irlandês percebeu minha disposi-

ção e caiu num silêncio mais adequado. Sóquando estávamos à vista dos estandartes nasmuralhas do leste de Lundene indiquei que eledeveria cavalgar à frente comigo, deixandomeus outros homens fora do alcance daaudição.

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— Daqui a seis dias — falei — você deve estarcom o Águia do Mar pronto para uma viagem.Precisaremos de cerveja e comida para trêsdias. — Eu não esperava ficar fora por tantotempo, mas era bom estar preparado. — Limpeo casco entre as marés e certifique-se de quecada homem esteja sóbrio quando partirmos.Sóbrio, com armas afiadas e pronto parabatalha.

Finan semi-sorriu, mas não disse nada.Estávamos cavalgando por entre choupanas quehaviam brotado nas bordas dos pântanos juntoao Temes. Muitas pessoas que moravam alieram escravos fugidos de seus senhoresdinamarqueses na Ânglia Oriental, e viviamrevirando o re-fugo da cidade, mas algunshaviam plantado minúsculos campos decenteio, cevada ou aveia. A colheita magraestava sendo juntada e eu ouvia o som daslâminas cortando os punhados de talos.

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— Ninguém em Lundene deve saber que vamospartir — disse eu a Finan.

— Não vão saber — respondeu o irlandês,sério.

— Prontos para a batalha — repeti.

— Vão estar. Vão estar mesmo.

Cavalguei em silêncio por um tempo. Pessoasviam minha cota de malha e saíam rapidamentedo caminho.

Tocavam a testa ou se ajoelhavam na lama,depois se agitavam quando eu jogava moedaspara elas. Era tarde e o sol já se encontravaatrás da grande nuvem de fumaça que subia dosfogos de cozinhar em Lundene, e o fedor dacidade pairava azedo e denso no ar.

— Você viu aquele navio bloqueando o canal

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em Beamfleot? — perguntei a Finan.

— Dei uma olhada, senhor.

— Se nós o atacarmos, eles nos verãochegando.

Vão estar por trás daquela amurada alta.

— Quase da altura de um homem, acima de nós—concordou Finan, revelando que dera mais doque apenas uma olhada.

— Então pense em como podemos tirar aquelenavio do canal.

— Não que estejamos pensando em fazer isso,não é, senhor?

— Claro que não, mas pense mesmo assim.

Então um guincho de dobradiças nãolubrificadas anunciou a abertura da porta mais

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próxima e entramos na semi-escuridão dacidade.

Alfredo estivera esperando por nós, emensageiros já o haviam informado sobrenosso retorno, de modo que fui convocado aopalácio no alto mesmo antes de poder falarcom Gisela. Fui com o padre Willibald, Steapae Finan. O rei nos esperou no grande salãoiluminado pelas velas altas com as quais elemedia a passagem do tempo. A cera escorriagrossa pelas hastes marcadas com faixas, e umserviçal estava aparando os pavios para que aluz se mantivesse constante. Alfredo estiveraescrevendo, mas parou ao entrarmos.

A Ethelred também estava ali, assim como oirmão Asser, o padre Beocca e o bispoErkenwald.

— Bem — disse Alfredo rispidamente. Nãoera raiva, e sim a preocupação que deixava sua

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voz tão afiada.

— Ela vive — disse eu —, está incólume, étratada com o respeito devido à sua condição,está bem guardada e com propriedade, e elesvão mandá-la de volta para nós.

— Graças a Deus — exclamou Alfredo, e fez osinal-da-cruz. — Graças a Deus — repetiu, epensei que ele iria cair de joelhos. A Ethelrednão disse nada, apenas me encarou com olhosde serpente.

— Quanto? — perguntou o bispo Erkenwald.

— Mil e quatrocentos quilos de prata e 230 deouro

— e expliquei que a primeira cota de metaldeveria ser entregue na próxima lua cheia e queo restante deveria ser levado rio abaixo um mêsdepois. — E a senhora A Ethelflaed só será

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libertada quando a última moeda for paga —terminei.

O bispo Erkenwald e o irmão Asser seencolheram diante da quantia do resgate, masAlfredo não reagiu do mesmo jeito.

— Estaremos pagando por nossa própriadestrui-

ção — resmungou o bispo Erkenwald.

— Minha filha me é querida — disse Alfredoem tom afável.

— Com esse dinheiro — alertou o bispo —,eles vão juntar milhares de homens!

— E sem esse dinheiro — Alfredo se viroupara mim —, o que acontecerá com ela?

— Humilhação — respondi. Na verdade, A

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Ethelflaed poderia encontrar a felicidade se oresgate não fosse pago, mas eu não poderiadizer tal coisa. Em vez disso, descrevi odestino que Haesten sugeriu de modo tãolupino. — E ela será mostrada nua a multidõesque vão zombar. — Alfredo se encolheu. —Depois — prossegui sem remorsos —, seráentregue como prostituta a quem pagar maiscaro.

A Ethelred olhou para o chão, os homens daIgreja ficaram em silêncio.

— O que está em jogo é a dignidade de Wessex—disse Alfredo baixinho.

— Então homens devem morrer pela dignidadede Wessex? — perguntou o bispo Erkenwald.

— Sim! — Alfredo estava subitamente furioso.—

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Um país é a sua história, bispo; a soma de todasas suas histórias. Somos o que nossos paisfizeram de nós, suas vitórias nos deram o quetemos, e o senhor me faria deixar a meusdescendentes uma história de humilhação?

Quer que os homens digam que Wessex foitransformado em objeto de zombaria parapagãos ensandecidos? Essa é

uma história, bispo, que jamais morreria, e seessa história for contada, sempre que oshomens pensarem em Wessex pensarão numaprincesa de Wessex sendo obrigada a des-filarnua diante de pagãos. Sempre que pensarem naInglaterra, pensarão nisso!

E isso, pensei, era interessante. Nós raramenteusá-vamos esse nome naquela época;Inglaterra. Isso era um sonho, mas Alfredo, emsua raiva, havia levantado uma cortina de seusonho e eu soube então que ele queria que seu

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exército continuasse para o norte, sempre parao norte, até que não houvesse mais Wessex,nem Ânglia Oriental, nem Mércia e nemNortúmbria. Só Inglaterra.

— Senhor rei — disse Erkenwald comhumildade pouco natural. — Não sei se haveráum Wessex se pagar-mos a esses pagãos parajuntar um exército.

— Juntar um exército leva tempo — disseAlfredo com firmeza — e nenhum exércitopagão pode atacar até

depois da colheita. E assim que a colheitaestiver juntada, poderemos convocar o fyrd.Teremos homens para se opor a eles. — Issoera verdade, mas a maioria de nossos homensseria de camponeses sem treino, ao passo queSigefrid traria nórdicos uivando, famintos, quehaviam sido criados na espada. Alfredo se viroupara o genro. —

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E espero que o fyrd do sul da Mércia esteja anosso lado.

— Estará, senhor — respondeu A Ethelred comentusiasmo. Não havia em seu rosto sinal dadoença que o havia assolado na última vez emque o vi naquele salão.

Sua cor estava de volta, e a confiançapresunçosa parecia não ter diminuído.

— Talvez isso seja um ato de Deus — disseAlfredo, falando de novo para Erkenwald. —Em Sua misericórdia Ele ofereceu a nossosinimigos a chance de se juntar aos milhares,para que possamos derrotá-los numa grandebatalha. — Sua voz se reforçou com essepensamento. — O Senhor está do meu lado —disse com firmeza. — Não temerei!

— A palavra do Senhor — disse piedosamenteo irmão Asser, fazendo o sinal-da-cruz.

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— Amém — disse A Ethelred — e amém.Vamos derrotá-los, senhor!

— Mas antes de conseguirem essa grandevitória —falei a A Ethelred, sentindo um prazermalicioso no que ia dizer —, você tem umdever a cumprir. Vai entregar pessoalmente oresgate.

— Por Deus, não farei isso! — disse AEthelred indignado, depois viu o olhar deAlfredo e afundou de novo na cadeira.

— E vai se ajoelhar diante de Sigefrid — faleitorcendo a faca. Até Alfredo ficou pasmodiante disso.

— Sigefrid insiste nessa condição? —perguntou.

— Insiste, senhor — respondi —, mesmo eutendo argumentado com ele! Apelei, senhor,

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argumentei e apelei, mas ele não cedeu.

A Ethelred só estava me olhando com horror norosto.

— Então que seja — disse Alfredo. —Algumas vezes o Senhor Deus pede mais doque podemos suportar, mas em Seu nomeglorioso devemos passar por isso.

— Amém — respondi fervorosamente,merecendo e recebendo um olhar cético do rei.

Eles falaram durante o tempo necessário parauma das velas marcadas de Alfredo queimar oequivalente a duas horas de cera, e foi conversadesnecessária; sobre como o dinheiro seriaconseguido, como seria transportado aLundene e como seria entregue em Beamfleot.Fiz sugestões enquanto Alfredo anotava nasmargens de seu pergaminho, e era tudo umesforço inútil porque, se eu tivesse sucesso,

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nenhum resgate seria pago, A Ethelflaed nãoretornaria e o trono de Alfredo estaria emsegurança.

E eu deveria tornar tudo isso possível.

Em uma semana.

ONZE

Escuridão. A última luz do dia acabara desumir, e uma nova escuridão nos envolviaagora.

Havia luar, mas a lua estava escondida, de modoque as bordas das nuvens eram prateadas, e sobaquele vasto céu feito de prata, preto e luz dasestrelas, o Águia do Mar deslizava pelo Temes.

Ralla estava no remo-leme. Era um marinheiromuito melhor do que eu poderia ter esperançasde ser, e eu confiava nele para nos levar ao

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redor das amplas curvas do rio na escuridão. Namaior parte do tempo era impossível dizeronde a água acabava e os pântanos começavam,mas Ralla parecia despreocupado. Estava comas pernas separadas e um dos pés batendo noconvés no ritmo lento dos remos. Dizia poucacoisa, mas de vez em quando fazia minúsculascorreções de rumo com a longa haste do remoe nenhuma vez uma pá tocava na lama dasmargens do rio. Ocasionalmente a lua deslizavasaindo de trás de uma nuvem e a águasubitamente brilhava em prata diante de nós.Havia fagulhas vermelhas nas margens quevinham e iam, pequenas fogueiras naschoupanas do pântano.

Estávamos usando o restante da maré vazantepara nos levar rio abaixo. O clarão intermitenteda lua na água mostrava as margens seafastando cada vez mais enquanto o rio sealargava imperceptivelmente na direção do

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mar.

Eu ficava olhando para o norte, esperando ver obrilho no céu que trairia as fogueiras dentro eao redor do alto acampamento em Beamfleot.

— Quantos navios pagãos estão emBeamfleot? —perguntou Ralla subitamente.

— Eram 64 havia uma semana, masprovavelmente já são quase oitenta, agora.Talvez cem ou mais.

— E só nós, hein? — perguntou ele, achandodivertido.

— Só nós — concordei.

— E haverá mais navios costa acima — disseRalla.

— Ouvi dizer que estão fazendo um

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acampamento em Sceobyrig.

— Eles já estão lá há um mês, e existem pelomenos 15 tripulações lá. Provavelmente trinta,agora. — Sceobyrig era uma língua de lamadesolada e uma terra lamacenta algunsquilômetros a leste de Beamfleot, e os 15navios dinamarqueses haviam parado lá e feitouma fortaleza com paredes de terra e postes demadeira. Eu suspeitei de que teriam escolhidoSceobyrig porque praticamente não havia maisespaço no riacho de Beamfleot e porque aproximidade da frota de Sigefrid lhes ofereciaproteção. Sem dúvida eles lhe pagavam emprata, e sem dúvida esperavam segui-lo atéWessex para pegar o saque que conseguissem.Nas margens de cada mar, e em acampamentosrio acima, por todo o mundo dos nórdicos,estava se espalhando a notícia de que o reino deWessex se encontrava vulnerável, e por isso osguerreiros se reuniam.

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— Mas não vamos lutar hoje? — perguntouRalla.

— Espero que não. Lutar é muito perigoso.Ralla deu um risinho, mas não disse nada.

— Não deve haver luta — falei depois de umapausa.

— Porque se houver — observou Ralla —, nãotemos padre a bordo.

— Nunca temos padre a bordo — falei nadefensiva.

— Mas deveríamos, senhor — retrucou ele.

— Por quê? — perguntei com beligerância.

— Porque o senhor quer morrer com umaespada na mão, e nós gostamos de morrertendo confessado.

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Suas palavras eram uma censura. Meu dever erapara com aqueles homens, e se eles morressemsem o bene-fício do que quer que os padresfaziam com os agonizantes, eu havia fracassadocom eles. Por um momento não soube o quedizer, em seguida uma idéia saltou livre emminha cabeça.

— O irmão Osferth pode ser nosso padre hoje.

— Serei — disse Osferth, num banco de rema-dor, e fiquei satisfeito com essa respostaporque finalmente ele estava disposto a fazeruma coisa que eu sabia que ele não queriafazer. Mais tarde descobri que, tendo sidoapenas um monge noviço fracassado, ele nãotinha o poder de administrar sacramentoscristãos, mas meus homens acreditavam queele estava mais perto de seu deus do que eles, eisso, por acaso, bastava.

— Mas não espero lutar — falei com firmeza.

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Uma dúzia de homens, os mais próximos daplataforma do piloto, escutava. Finan estavacomigo, claro, e Cerdic, Sihtric, Rypere eClapa. Eram minha tropa doméstica, os homensda minha casa, meus companheiros, irmãos desangue, jurados a mim, haviam me seguido aomar esta noite e confiavam em mim, mesmonão sabendo para onde íamos ou o quefazíamos.

— Então, o que vamos fazer? — perguntouRalla.

Parei, sabendo que a resposta iria agitá-los.

— Vamos resgatar a senhora A Ethelflaed —respondi finalmente.

Ouvi sons ofegantes da parte dos homens queouviam, depois o murmúrio de vozes enquantoa notícia era passada pelos bancos até a proa doÁguia do Mar. Meus homens sabiam que essa

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viagem significava encrenca, e tinham ficadointrigados com minha violenta imposição desegredo, e deviam ter adivinhado quenavegávamos para algo que tinha a ver com asituação de A Ethelflaed, mas agora eu haviaconfirmado.

O remo-leme rangeu enquanto Ralla fazia umapequena correção.

— Como? — perguntou ele.

— A qualquer dia desses — falei ignorando suapergunta e suficientemente alto para que todosos homens no barco me ouvissem — o reicomeça a coletar o resgate da filha. Se vocêstiverem dez braceletes, ele vai querer quatro!Se tiverem um tesouro em prata, os homens dorei vão descobrir e levar sua parte! Mas o quefazemos hoje pode impedir isso!

Outro murmúrio. Já havia uma infelicidade

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profunda em Wessex com o pensamento dodinheiro que seria arrancado dos proprietáriosde terras e comerciantes. Alfredo haviaprometido sua própria riqueza, mas precisariade mais, muito mais, e o único motivo para acoleta não ter começado eram as discussõesfuriosas entre seus conselheiros. Algunsqueriam que a igreja contribuísse porque,apesar da insistência do clero, de que nãotinham tesouro, todo mundo sabia que osmosteiros eram atulhados de riquezas. Areação da Igreja fora ameaçar a excomunhão dequalquer um que ao menos ousasse tocar numamoeda de prata que pertencesse a Deus ou,mais particularmente, aos bispos e abades deDeus. Ainda que eu esperasse se-cretamenteque nenhum resgate fosse necessário, haviarecomendado pegar toda a quantia com a Igreja,mas esse sábio conselho, claro, fora ignorado.

— E se o resgate for pago — continuei —,

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nossos inimigos ficarão ricos o bastante paracontratar dez mil espadas! Teremos guerra portodo Wessex! Suas casas serão queimadas; suasmulheres, estupradas; seus filhos, roubados esua riqueza, confiscada. Mas o que vamos fazerhoje pode impedir isso!

Exagerei um pouco, mas não muito. O resgatecertamente poderia juntar mais cinco millanças, machados e espadas, e era por isso queos vikings se reuniam no estuário do Temes.Sentiam cheiro de fraqueza, e fraquezasignificava sangue, e sangue significava riqueza.Os navios longos vinham para o sul, as quilhascortando o mar enquanto iam para Beamfleot edepois para Wessex.

— Mas os nórdicos são gananciosos! —continuei.

— Sabem que em A Ethelflaed têm uma garotade grande valor e estão rosnando uns para os

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outros como cães famintos! Bem, um delesestá pronto para trair os outros!

Ao amanhecer de hoje, vamos tirar A Ethelflaeddo acampamento! Ele vai entregá-la a nós eaceitará um resgate muito menor! Ele preferemanter esse resgate menor para si mesmo doque receber uma parte do maior! Ele ficará

rico! Mas não será rico o bastante paracomprar um exército!

Essa era a história que eu havia decidido contar.

Não poderia retornar a Lundene e dizer quetinha ajudado A Ethelflaed a fugir com oamante, portanto, em vez disso, fingiria queErik havia se oferecido para trair o irmão e queeu havia ido ajudar nessa traição, e que depoisErik havia me traído violando o acordo quetínhamos feito.

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Em vez de me dar A Ethelflaed, eu afirmariaque ele simplesmente havia ido embora comela. Alfredo ficaria furioso comigo, mas nãopoderia me acusar de trair Wessex.

Eu até havia trazido um grande baú de madeira abordo.

Estava cheio de areia e trancado com doisgrandes fechos presos com pinos de ferromartelados em círculos, de modo que a tampanão poderia ser aberta. Todos os homenstinham visto o baú ser trazido a bordo do Águiado Mar e enfiado sob a plataforma do leme, esem dúvida achariam que aquela grande caixalevaria o preço cobrado por Erik.

— Antes do amanhecer — continuei —, asenhora A Ethelflaed será levada a um navio!Quando o sol tocar a borda do céu, o navio iratrazê-la para fora! Mas no caminho há um naviofazendo bloqueio, um navio acorrentado para

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ficar de margem a margem, atravessando a fozdo riacho. Nosso trabalho é tirar esse navio docaminho! Só

isso! Só temos de mover esse navio e a senhoraA Ethelflaed estará livre, e vamos levá-la devolta a Lundene e seremos celebrados comoheróis! O rei vai agradecer!

Eles gostaram disso. Gostaram da idéia de queseriam recompensados pelo rei, e senti umapontada porque sabia que só iríamos provocar araiva de Alfredo, mas também iríamos lhepoupar a necessidade de conseguir o preço doresgate.

— Não contei isso antes a vocês — continuei—nem contei a Alfredo porque, se tivessecontado, um de vocês ou um dos homens do reificaria bêbado e abriria o bico numa taverna, eos espiões de Sigefrid teriam conta-

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do a Sigefrid, e quando chegássemos aBamfleot iríamos encontrar um exército nosesperando! Em vez disso, eles estão dormindo!E vamos resgatar A Ethelflaed!

Eles comemoraram. Só Ralla ficou em silêncioe, quando o clamor terminou, fez uma perguntaem voz baixa:

— E como vamos mover aquele navio? É maiordo que nós, as laterais foram levantadas, levauma tripulação de guerreiros e eles não estarãodormindo.

— Nós não faremos isso — respondi. — Eufarei isso. Clapa? Rypere? Vocês dois vão meajudar. Nós três vamos mover o navio.

E A Ethelflaed estaria livre, e o amor venceria,e o vento sempre sopraria quente, e haveriacomida durante todo o inverno, e nenhum denós jamais ficaria velho, e a prata cresceria nas

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árvores, e o ouro apareceria como orvalho nagrama, e as estrelas luminosas dos amantes bri-lhariam para sempre.

Era tudo tão simples!

Enquanto remávamos para o leste.

Antes de partirmos de Lundene tínhamosbaixado o mastro do Águia do Mar, que agoraestava sobre cavaletes ao longo da linha centraldo navio. Eu não havia posto as cabeças de ferana proa ou na popa porque queria que o navioficasse baixo na água. Queria que fosse umaforma negra contra o negrume e sem cabeça deáguia erguida ou sem um mastro alto paraaparecer acima do horizonte.

Íamos furtivamente antes do amanhecer.Éramos os Caminhantes das Sombras do mar.

Toquei o punho de Bafo de Serpente e não

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senti comichão, nem canto nem fome desangue, e me recon-fortei com isso. Achavaque iríamos abrir o riacho e olhar A Ethelflaedviajar para a liberdade, e que Bafo de Serpentedormiria em silêncio em sua bainha forrada depele.

Então, finalmente, vi o clarão alto no céu, oclarão opaco e vermelho que marcava o lugaronde ardiam fogueiras no acampamento deSigefrid no topo do morro. O

clarão ficou mais forte à medida queremávamos pela água parada da maré alta. Epara além dela, nos morros que caíamlentamente a leste, havia mais reflexos de fogonas nuvens. Aqueles clarões vermelhosmarcavam os locais dos novos acampamentosque se estendiam da alta Beamfleot até a baixaSceobyrig.

— Mesmo sem o resgate — observou Ralla —

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eles podem sentir-se tentados a atacar.

— Podem — concordei, mas duvidava de queSigefrid tivesse homens suficientes para sentir-se seguro do sucesso. Wessex, com seus buhrsrecém-construídos, era um lugar difícil deatacar, e eu achava que Sigefrid iria querer pelomenos três mil homens a mais antes de jogaros dados da guerra, e para conseguir esseshomens precisava do resgate. — Você sabe oque fazer? — perguntei a Ralla.

— Sei — disse ele com paciência, tambémsabendo que minha pergunta fora provocadamais pelo nervosismo do que pela necessidade.— Vou para a parte de Caninga voltada para omar, e pego vocês na parte leste.

— E se o canal não estiver aberto? Senti queele ria na escuridão.

— Então pego vocês e o senhor toma essa

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decisão.

Porque se eu não conseguisse mover o navioque bloqueava o canal, A Ethelflaed ficariapresa no riacho e eu teria de decidir secolocaria o Águia do Mar numa luta contra umnavio com laterais mais altas e uma tripulaçãofuriosa. Não era uma luta que eu queria, eduvidava de que pudéssemos vencer, o quesignificava que teria de abrir o canal antes queessa luta se tornasse necessária.

— Devagar! — gritou Ralla aos remadores. Elehavia virado o navio para o norte e agoraremávamos lentos e cautelosos em direção àcosta negra de Caninga. — O

senhor vai se molhar — disse ele.

— Quanto tempo falta para o amanhecer?

— Cinco horas? Seis?

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— O bastante — disse eu, e nesse momento aproa do Águia do Mar tocou a lama e o cascolongo estremeceu.

— Remos para trás! — gritou Ralla, e asfileiras de remos agitaram a água rasa paraafastar a proa da costa traiçoeira. — Vãodepressa — disse ele. — A maré cai rápidaaqui. Não quero ficar encalhado.

Levei Clapa e Rypere até a proa. Eu haviadebatido se usaria malha, esperando não ter delutar no amanhecer de verão que se aproximava,mas no fim a cautela prevale-ceu e usei umacota de malha, duas espadas, mas não tinhaelmo. Temia que meu elmo, com seu brilhantesímbolo do lobo, refletisse a luz parca da noite,por isso usei um escuro forro de elmo, decouro. Também usei a capa preta que Giselahavia tecido para mim, aquela capa escura comseu raio selvagem correndo pelas costas, do

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pescoço à bainha.

Rypere e Clapa também usavam capas pretasque cobriam a malha e cada um deles tinhaespadas, enquanto Clapa levava um enormemachado de guerra com lâmina curva, preso àscostas.

— Você deveria me deixar ir — disse Finan.

— Você está no comando — respondi. — E, setivermos encrenca, vocês podem ter de nosabandonar. Essa decisão será sua.

— Remos atrás! — gritou Ralla de novo, e oÁguia do Mar recuou mais alguns metros daameaça de encalhar na maré vazante.

— Não vamos abandoná-los — disse Finan, eestendeu a mão. Apertei-a, depois o deixei mebaixar pela lateral do navio, onde chapinheinuma gosma de lama e água.

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— Vejo vocês ao amanhecer — gritei para aforma escura de Finan, depois fui com Clapa eRypere através da larga planície de lama. Ouviaos estalos e o chapinhar dos remos do Águia doMar enquanto Ralla o levava para longe dacosta, mas, quando me virei, ele já haviadesaparecido.

Havíamos desembarcado na ponta leste deCaninga, a ilha que ficava perto do riacho deBeamfleot, mas muito longe de onde os naviosde Sigefrid estavam atracados ou encalhados.Estávamos tão longe que as sentinelas nas altasmuralhas da fortaleza não veriam nosso navioescuro e sem mastro chegar à terra escura, oupelo menos eu rezava por isso, e agoratínhamos uma longa caminhada.

Atravessamos o amplo trecho de lama brilhantee ondula-da com a luz da lua, e em algunslugares não podíamos andar, apenas lutar.

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Vadeávamos e tropeçávamos, lutávamos contraa lama que sugava, xingávamos e chapinháva-mos. Aquele litoral não era terra nem água, esim um ato-leiro pegajoso, e assim continueiem frente até que, por fim, havia mais terra doque água e os guinchos de pássaros acordadosnos rodeavam. O ar da noite estava cheio comas batidas de suas asas e com seus protestosagudos.

Esse barulho, pensei, certamente alertaria oinimigo, mas eu só podia continuar terraadentro, rezando por um terreno mais elevado,e por fim o caminho ficou mais fácil, ainda quea terra continuasse cheirando a sal. Nas marésmais altas, Ralla havia me contado, Caningapodia desaparecer completamente sob asondas, e pensei nos dinamarqueses que eu haviaafogado nos pântanos do oeste quando os atraípara uma maré montante. Isso havia sido antesde Ethandun, quando Wessex parecia

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condenada, mas Wessex ainda vivia e osdinamarqueses haviam morrido.

Encontramos um caminho. Ovelhas dormiamentre as moitas e aquela era uma trilha deovelhas, mas era um caminho rústico etraiçoeiro, constantemente interrompido porvalas pelas quais gorgolejavam os fios da marévazante. Imaginei se haveria algum pastor aliperto. Talvez aquelas ovelhas, estando numailha, não precisassem ser guardadas contra oslobos, o que significaria que nenhum pastor e,melhor, nenhum cão acordaria para latir. Masse havia cachorros, eles dormiam enquantoseguíamos para o leste. Procurei o Águia doMar, mas apesar do luar brilhando amplo noestuário, não pude vê-lo.

Depois de um tempo descansamos, primeiroacordando três ovelhas com chutes parapodermos ocupar seus lugares de terra quente e

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seca. Clapa logo estava dormindo e roncando,enquanto eu olhava para o Temes tentando veroutra vez o Águia do Mar, mas ele era umasombra entre sombras. Estava pensando emRagnar, meu amigo, e em como ele reagiriaquando Erik e a filha de Alfredo aparecessemem Dunholm. Acharia divertido, eu sabia, masquanto tempo essa diversão duraria? Alfredoiria mandar enviados a Guthred, rei daNortúmbria, exigindo o retorno da filha, e cadanórdico com uma espada estaria olhandofaminto para o penhasco de Dunholm.

Loucura, pensei, enquanto o vento farfalhava norígido capim do pântano.

— O que está acontecendo lá, senhor? —perguntou Rypere, me assustando. Ele pareceraalarmado e me virei de costas para a água e vium incêndio gigantesco brotando do topo deBeamfleot. Chamas saltavam para o céu escuro,

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delineando as muralhas da fortaleza, e acimadaquelas chamas torturadas, fagulhas luminosasredemoinhavam na grande coluna de fumaçailuminada pelo fogo, borbulhando acima docastelo de Sigefrid.

Xinguei, chutei Clapa para acordá-lo e melevantei.

O castelo de Sigefrid estava pegando fogo, eisso significava que todo o acampamento haviaacordado, mas eu não sabia se o incêndio eraum acidente ou deliberado.

Talvez aquela fosse a distração que Erik haviaplanejado para tirar A Ethelflaed de seualojamento, mas de algum modo eu não achavaque Erik se arriscaria a matar o irmãoqueimado.

— O que quer que tenha causado aqueleincêndio

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— falei carrancudo — é má notícia.

O fogo havia pegado recentemente, mas a palhadevia estar seca, porque as chamas seespalhavam com rapidez extraordinária. Oincêndio aumentou, iluminando o topo dacolina e lançando sombras assustadoras na terrabaixa e pantanosa de Caninga.

— Eles vão nos ver, senhor — disse Clapanervoso.

— Teremos de correr esse risco — respondi, eesperava que os homens no navio que bloqueavao canal estivessem olhando o incêndio, em vezde procurando inimigos em Caninga.

Eu planejava chegar à margem sul do riacho,onde a grande corrente que mantinha o naviocontra a correnteza estava enrolada no posteenorme. Bastaria cortar ou soltar aquelacorrente e o navio devia deslizar com a maré

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vazante, e assim se abrir como um grandeportão enquanto a corrente de proa o mantinhapreso ao poste na margem norte.

— Vamos — disse eu, e seguimos a trilha deovelhas, com a jornada agora facilitada pela luzdo grande incêndio. Eu ficava olhando para oleste, onde o céu estava empalidecendo. Oamanhecer se aproximava, mas o sol demorariamuito a aparecer. Pensei ter visto o Águia doMar uma vez, sua forma baixa nítida contra otremeluzir de cinza e preto, mas não podia tercerteza.

À medida que chegávamos mais perto do naviode guarda atracado, saímos da trilha de ovelhaspara abrir caminho entre juncos que cresciamsuficientemente altos para nos esconder.Pássaros gritavam de novo. Parávamos aintervalos de alguns passos e eu olhava porcima dos juncos e via a tripulação do navio

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bloqueador olhando para o alto morro emchamas. Agora o incêndio era vasto, um infernono céu, manchando de vermelho as nuvensaltas. Chegamos à borda dos juncos e nosagachamos ali, a cem passos do poste enormeque prendia a popa do navio.

— Talvez não precisemos de seu machado —falei a Clapa. Tínhamos trazido o machado paratentar cortar os grossos elos de ferro.

— O senhor vai morder a corrente? —perguntou Rypere, achando divertido.

Dei-lhe um cascudo amigável na cabeça.

— Se você subir nos ombros de Clapa, deve sercapaz de levantar aquela corrente para fora doposte. Vai ser mais rápido.

— Deveríamos fazer isso antes de clarear —disse Clapa.

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— Não devemos dar tempo para elesamarrarem o navio de novo — disse eu, eimaginei se deveria ter trazido mais homens. Eentão soube que deveria.

Porque não estávamos sozinhos em Caninga.

Vi os outros homens e pus a mão no ombro deClapa para silenciá-lo. E tudo o que parecerafácil ficou difícil.

Vi homens correndo pela margem sul doriacho.

Eram seis homens armados com espadas emachados, seis homens que corriam para oposte que era nosso objetivo.

E então entendi o que aconteceu, ou esperavater entendido, mas foi um momento em quetodo o futuro pendeu na balança. Eu tinha uminstante para tomar uma decisão, pensei nas

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três Norns sentadas nas raízes da Yggdrasil esoube que, se fizesse a escolha errada, a queelas já sabiam que eu iria fazer, eu poderiaarruinar tudo o que queria naquela manhã.

Talvez, pensei, Erik tivesse decidido abrir elemesmo o canal.

Talvez acreditasse que eu não viria. Ou talveztivesse percebido que poderia abrir o canal sematacar os homens de seu irmão. Talvez os seishomens fossem guerreiros de Erik.

Ou talvez não fossem.

— Matem-nos — falei, praticamente semperceber que falava, sem perceber a decisãoque havia tomado.

— Senhor? — perguntou Clapa.

— Agora! — Eu já estava em movimento. —

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Depressa, vamos!

A tripulação do navio de guarda estava atirandolanças contra os seis homens, mas nenhumaacertou, enquanto nós três corríamos emdireção ao poste. Rypere, ágil e rápido, correuà minha frente e eu o puxei de volta com a mãoesquerda antes de desembainhar Bafo deSerpente.

E assim a morte chegou à luz cinza de antes doamanhecer. A morte na margem lamacenta. Osseis homens chegaram ao poste antes de nós eum deles, alto, brandiu um machado de guerracontra a corrente enrolada, mas uma lançaatirada do navio bateu em sua coxa e elecambaleou para trás, xingando, enquanto oscinco companheiros se viravam atônitos paranos encarar. Nós os tínhamos surpreendido.

Gritei um desafio imenso, um desafioincoerente, e saltei para os cinco homens. Era

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um ataque louco. Uma espada poderia terrasgado minha barriga e me deixadoretorcendo-me em sangue, mas os deusesestavam comigo.

Bafo de Serpente acertou o centro de umescudo na verti-cal e o homem recuou,derrubado, e eu fui atrás, confian-do em queRypere e Clapa manteriam ocupados os quatrocolegas dele. Clapa estava girando seu machadoenorme, enquanto Rypere fazia a dança daespada que Finan havia lhe ensinado. MandeiBafo de Serpente contra o homem caído e alâmina se chocou contra o elmo fazendo-otombar de novo, então girei para dar umaestocada contra o homem alto que estiveratentando cortar a corrente.

Ele se virou, girando o machado, e havia luzsuficiente no céu para deixar que eu visse ocabelo ruivo luminoso sob a borda do elmo e a

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barba ruiva luminosa se projetando por baixodas placas faciais. Era Eilaf, o Vermelho,jurado a Haesten, e então eu soube o que deviater acontecido naquela manhã traiçoeira.

Haesten havia provocado o incêndio.

E Haesten devia ter tomado A Ethelflaed.

E agora queria que o canal fosse aberto paraque seus navios pudessem escapar.

Agora, portanto, precisávamos manter o canalfechado. Tínhamos vindo para abri-lo, e agoralutaríamos do lado de Sigefrid para mantê-lofechado, por isso mandei a espada contra Eilaf,que, de algum modo, se desviou da lâmina e seumachado me acertou na cintura, mas não haviaforça no golpe e mal senti o impacto através dacapa e da malha. Uma lança passou sibilandopor mim, atirada do navio, depois outra acertouno poste fazendo barulho e ficou ali, tremendo.

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Eu havia cambaleado passando por Eilaf, com apisada insegura no terreno pantanoso.

Ele era rápido e eu não tinha escudo. Omachado girou e eu me abaixei enquanto mevirava de novo para ele, depois golpeei Bafo deSerpente com as mãos contra sua barriga, maso escudo recebeu a estocada. Ouvi algochapinhando atrás de mim e achei que atripulação do navio de guarda vinha nos ajudar.Um homem gritou onde Clapa e Ryperelutavam, mas eu não tinha tempo de descobrir oque estava acontecendo ali. Golpeei de novo, euma espada é uma arma mais rápida do que ummachado.

Eilaf, o Vermelho, ainda estava recuando obraço direito e teve de mover o escudo paradesviar minha lâmina. Virei-a para cimarapidamente, passei-a raspando pela borda deferro do escudo e bati com a ponta no crânio

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dele, por baixo da borda do elmo.

Senti osso quebrando. O machado estava vindo,mas lentamente, e peguei o cabo com a mãoesquerda e puxei-o enquanto Eilaf cambaleava,os olhos vítreos em conseqüência doferimento que eu havia causado. Chutei suaperna ferida pela lança, liberei Bafo deSerpente com um puxão, depois golpeei-a parabaixo Ela furou a cota de malha, fazendo-o sesacudir como uma enguia numa lança, então elebateu na lama e tentou soltar seu machado deminha mão. Estava rosnando para mim, suatesta uma massa de sangue. Xinguei-o, chuteisua mão para longe do cabo do machado,acertei Bafo de Serpente em seu pesco-

ço e o olhei se sacudir. Homens da tripulaçãodo navio-guarda passaram correndo por mimpara matar os homens de Eilaf, e eu arranquei oelmo de sua cabeça ensangüentada. Ele pingava

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sangue e gosma, mas enfiei-o sobre meu gorrode couro e esperei que as placas faciaisescondessem meu rosto.

Os homens que tinham vindo do navio podiammuito bem ter me visto no festim de Sigefrid, ese me re-conhecessem iriam voltar as espadascontra mim. Eram dez ou 11 tripulantes ehaviam matado os cinco companheiros de Eilaf,o Vermelho, mas não antes de Clapa terrecebido seu último ferimento. Pobre Clapa,tão lento ao pensar, tão gentil nos modos, tãoforte na guerra, e agora estava deitado, de bocaaberta, com sangue escorrendo pela barba. Vium tremor em seu corpo, saltei para ele eencontrei uma espada caída, que pus em suamão direita e fechei os dedos ao redor dopunho. Seu peito fora aberto por um golpe demachado de modo que as costelas, os pulmõese a cota de malha estavam emaranhados numaconfusão sangrenta e borbulhante.

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— Quem é você? — gritou um homem.

— Ragnar Olafson — inventei um nome.

— Por que está aqui?

— Nosso navio encalhou no litoral, vínhamosprocurar ajuda. Rypere estava chorando.Segurava a mão esquerda de Clapa, repetindosem parar o nome do amigo.

Fazemos amigos na batalha. Provocamos unsaos outros, zombamos uns dos outros einsultamos uns aos outros, no entanto amamosuns aos outros. Na batalha ficamos maispróximos do que irmãos, e Clapa e Rypereeram amigos que haviam conhecido essaproximidade, e agora Clapa, que eradinamarquês, estava morrendo, e Rypere, queera saxão, estava chorando. Mas suas lágrimasnão eram de fraqueza, e sim de fúria, eenquanto eu apertava a mão agonizante de Clapa

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no punho da espada, vi Rypere se virar elevantar sua espada.

— Senhor — disse ele, e eu girei para ver maishomens ainda vindo pela margem.

Haesten havia mandado uma tripulação inteirapara abrir o canal. Seu navio ficara encalhado acinqüenta passos dali, e mais além dava para veruma massa de outros navios esperando pararemar em direção ao oceano quando o canalfosse liberado. Haesten e todos os seushomens estavam fugindo de Beamfleot, elevavam A Ethelflaed, e para além do riacho, nomorro íngreme sob o castelo em chamas, pudever os homens de Sigefrid e Erik correndodesabaladamente pela encosta íngreme paraatacar o trai-

çoeiro Haesten.

Cujos homens agora vinham para nós em

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quantidade avassaladora.

— Parede de escudos! — rugiu uma voz. Nãotenho idéia de quem gritou e só lembro quepensei que deveríamos morrer naquela margemlamacenta. Dei um tapinha na bochechasangrenta de Clapa, vi seu machado caído nalama e senti a mesma fúria de Rypere.Embainhei Bafo de Serpente e peguei ogigantesco machado de guerra com lâminalarga.

A tripulação de Haesten veio gritando,impulsionada por uma urgência de escapar doriacho antes que os homens de Sigefridviessem trucidá-los. Haesten estava seesforçando ao máximo para retardar essaperseguição, queimando os navios de Sigefridencalhados do outro lado do riacho. Eu tinhaapenas uma leve percepção daqueles novosincêndios, chamas ondulando rápidas pelo

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cordame alcatroado, fumaça soprando sobre amaré que subia, mas não tinha tempo paraolhar, só para me preparar enquanto os homensse aproximavam gritando.

E então eles correram os últimos passos edeveríamos ter morrido ali, mas quem quer quetivesse gritado para formarmos uma parede deescudos havia escolhido bem o lugar, porqueuma das muitas valas de Caninga serpenteava ànossa frente. Não era uma vala grande, apenasuma canaleta enlameada, mas nossos atacantestropeçaram nas laterais lamacentas e nósavançamos, foi nossa vez de gritar, e a raivadentro de mim se tornou a fúria rubra dabatalha. Girei o machado contra um homem queestava se recuperando do tropeção e meu bradode guerra cresceu até um grito de triunfoquando minha lâmina atravessou um elmo,cravou-se num crânio e partiu um cérebro aomeio. Sangue espirou negro no ar enquanto eu

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ainda gritava, soltava o machado e girava-o denovo. Não sabia de nada além da loucura, daraiva e do desespero. Júbilo da batalha. Loucurado sangue. Guerreiros na matança, e toda anossa parede de escudos havia se movido para abeira da vala onde o inimigo afundava e tivemosum momento de chacina furiosa, lâminas aoluar, sangue preto como piche, e gritos dehomens loucos como os gritos das avesselvagens na escuridão.

Éramos, no entanto, em menor número efomos flanqueados. Deveríamos ter morridoali, perto do poste que prendia a corrente donavio de guarda, porém mais homens saltaramdaquele navio atracado e vieram correndo pelosbaixios para golpear o flanco esquerdo denossos atacantes. Mas os homens de Haestenainda eram em maior número, e os homens nasfileiras de trás passavam pelos companheirosagonizantes para nos atacar. Éramos forçados

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lentamente para trás, tanto por seu peso quantopor suas armas. Eu não tinha escudo. Estavagirando o machado com ambas as mãos,rosnando, mantendo os homens a distância coma lâmina pesada, mas um lanceiro, fora doalcance da lâmina do machado, tentavarepetidamente me acertar. Rypere, ao meulado, havia encontrado um escudo caído e faziao máximo para me cobrir, mas o lanceiroconseguiu se desviar do escudo e golpeoubaixo, cortando meu tornozelo esquerdo. Atireio machado e a lâmina se chocou contra seurosto enquanto eu tirava Bafo de Serpente dabainha e deixava que ela gritasse seu canto deguerra. Meu ferimento era trivial, osferimentos dados por Bafo de Serpente nãoeram. Um homem en-louquecido, com a bocaescancarada para revelar gengivas sem dentes,balançou um machado para mim e Bafo deSerpente tirou sua alma com facilidadeelegante, tão elegante que eu ri em triunfo

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enquanto arrancava a lâmina da parte superiorde sua barriga.

— Estamos segurando-os! — berrei, e ninguémnotou que eu havia gritado em inglês, mas aindaque nossa pequena parede de escudos estivessede fato se mantendo firme logo à frente dogrande poste, nossos atacantes haviamflanqueado a esquerda de nossa linha e oshomens ali, atacados por dois lados, partiram afileira e correram.

Cambaleamos para trás, para acompanhá-los.Lâminas se chocavam contra nossos escudos,machados lascavam tábuas, espadas retiniamem espadas, e recuávamos, incapazes de mantero terreno contra tantos, e éramos empurradospara trás, para além do grande poste deatracação, e agora havia luz suficiente no céupara que eu visse o limo verde grudado à basedo poste, onde a corrente enorme estava presa,

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enferrujada.

Os homens de Haesten soltaram um grandeuivo de vitória. Suas bocas estavam distendidas,os olhos brilhantes com luz refletida do leste, esabiam que tinham vencido, e nóssimplesmente corremos para longe. Não há

outro modo de descrever aquele momento logoantes do alvorecer completo. Sessenta ousetenta homens tentavam nos matar, já haviammatado alguns tripulantes do navio de guardaatracado, e o restante de nós correu de voltapara a beira da água, onde a lama era grossa eeu pensei de novo que deveria morrer ali, ondeo mar corria em maro-las deslizantes sobre aplanície escorregadia, mas nossos atacantes,contentes por terem nos expulsado, se viraramde novo para o poste e a corrente. Alguns nosvigiavam, desafiando-nos a voltar para o terrenomais firme e enfrentá-los, enquanto os outros

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golpeavam a corrente com machados. Paraalém deles, escuros contra a parte mais escurado céu, onde as últimas estrelas se desbotavam,pude ver os navios de Haesten esperando parasair ao mar.

Os machados ressoavam e cortavam, e entãosoa-ram gritos de comemoração e vi a pesadacorrente deslizar como uma cobra pela lama. Amaré havia mudado e a nova montante corriaforte. O navio bloqueador estava sendo giradopara o oeste, levado para dentro do rio por a-

quele jorro de água, e eu não podia fazer nadaalém de olhar enquanto a fuga de Haesten setornava possível.

Nossos atacantes iam correndo de volta paraseu próprio navio. A corrente haviadesaparecido na água baixa enquanto o naviobloqueador a arrastava lentamente.

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Lembro-me de ter cambaleado pela lama, umadas mãos no ombro de Rypere e o pé esquerdojorrando sangue na bota. Levantei Bafo deSerpente e soube que era impotente paraimpedir que A Ethelflaed fosse levada para umcativeiro pior.

Agora o resgate seria duplicado, pensei, eHaesten se tornaria um senhor de guerreiros,um homem com riqueza além até mesmo desua ganância incomum. Ele jun-taria umexército. Viria destruir Wessex. Seria rei, etudo porque aquela corrente fora cortada e oHothlege finalmente estava sendodesbloqueado.

Então vi Haesten. Estava de pé na proa de seunavio, que eu sabia que se chamava Viajante-Dragão, e era o primeiro navio esperando que afoz do riacho se abrisse totalmente. Haestenusava capa e armadura, orgulhoso sob a cabeça

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de águia que coroava a proa do navio, e seuelmo brilhava com o novo amanhecer, suaespada desem-bainhada reluzia e ele estavasorrindo. Havia ganhado.

A Ethelflaed, eu tinha certeza, estava naquelenavio, e atrás dele vinham mais vinte navios;sua frota, seus homens.

Os homens de Sigefrid e Erik haviam chegadoao riacho e lançado alguns barcos poupados dofogo. Tinham começado a lutar contra osnavios da retaguarda de Haesten, e na claridadedos navios incendiados vi o brilho de armas esoube que mais homens estavam morrendo,mas tudo era tarde demais. O riacho estava seabrindo.

O navio bloqueador, agora sustentado apenaspela corrente de proa, girava cada vez maisrápido. Dentro de alguns instantes, eu sabia, ocanal estreito estaria escanca-rado. Vi os

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remos de Haesten baixando para manter oViajante-Dragão firme contra a maré montantee soube que a qualquer momento os remospuxariam com força e eu veria a embarcaçãoesguia passar pelo navio de guarda encalhado.Ele remaria para o leste, para um novoacampamento, para um futuro que lhe traria umreino que já fora chamado de Wessex.

Nenhum de nós falou. Eu não conhecia oshomens ao lado de quem havia lutado, e elesnão me conheciam, e simplesmente ficamosali, estranhos desconsolados, olhando o canalse alargar e o céu clarear. O sol havia quasetocado a borda do mundo e o leste estavachamejando em luz vermelha, dourada eprateada. E essa luz do sol se refletiu nas pásmolhadas dos remos de Haesten enquanto seushomens os traziam à frente. Por um momento,o sol golpeou meus olhos afastando todosesses reflexos, então Haesten gritou uma

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ordem e as pás desapareceram na água, e seunavio longo avançou.

E foi então que percebi o pânico na voz deHaesten.

— Remem! — gritava ele. — Puxem!

Não entendi seu pânico. Nenhum dos navios deSigefrid, lançados às pressas, estava perto dele,e o mar aberto se encontrava à frente, noentanto sua voz parecia desesperada.

— Remem! — gritava ele. — Remem! — E oViajante-Dragão deslizou ainda mais rápido emdireção ao leste dourado. Sua cabeça dedragão, com o focinho erguido e os dentes àmostra, desafiava o sol nascente.

E então vi por que Haesten estava em pânico. O

Águia do Mar vinha chegando.

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Finan havia tomado a decisão. Mais tarde meexplicou, mas mesmo dias depois ele achavadifícil justificar a escolha que havia feito. Seriainstinto, tanto quanto qualquer outra coisa. Elesabia que eu desejava o canal aberto, mas aotrazer o Águia do Mar para o Hothlege elefecharia a passagem de novo, no entantomesmo assim decidiu vir.

— Eu vi sua capa — explicou ele.

— Minha capa?

— O raio, senhor. E o senhor estavadefendendo o poste da corrente, e nãoatacando.

— E se eu tivesse sido morto? — sugeri. — Ese um inimigo tivesse tomado minha capa?

— E reconheci Rypere, também. A gente nãopode deixar de reconhecer aquele sujeitinho

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feio, não é? — E

assim Finan havia dito para Ralla trazer o Águiado Mar para o canal. Eles haviam espreitado naextremidade leste da ilha das Duas Árvores, otrecho de pântano e lama que formava amargem norte da entrada do canal, e Ralla ca-valgou a maré montante entrando no Hothlege.Logo antes de entrarem no canal ele ordenouque os remos fossem puxados para dentro dobarco, depois guiou o Águia do Mar atéabalroar uma das fileiras de remos do Viajante-Dragão.

Fiquei olhando. O Águia do Mar estava nocentro do canal enquanto o navio de Haesten seencontrava mais perto de mim, por isso não vios remos longos se despedaçando. Ouvi o somà medida que um depois do outro se quebrava, eouvi os gritos dos homens de Haesten enquantoos cabos dos remos eram impelidos para trás

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es-magando seus peitos, e esse é um ferimentohorrível. Os gritos ainda soavam quando oViajante-Dragão parou subitamente com umtremor. Ralla havia se apoiado no remo-lemepara empurrar o navio de Haesten contra amargem lamacenta de Caninga, e então o Águiado Mar também parou abrupta-mente, presoentre o navio bloqueador, encalhado, e orecém-encalhado Viajante-Dragão. O

canal estava fechado de novo, agora tampadopor três navios.

E o sol se ergueu totalmente sobre o mar,brilhante como ouro, inundando a terra comuma luz nova e ofus-cante.

E o riacho de Beamfleot se tornou um local dematança.

Haesten ordenou que seus homens abordassemo Águia do Mar e matassem a tripulação.

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Duvido de que ele soubesse de quem era aquelenavio, só sabia que o havia atrapalhado. Seushomens gritaram enquanto saltavam a bordo eencontraram Finan liderando minhas tropasdomésticas para recebê-los, e as duas paredesde escudos se encontraram nos bancos dosremadores de proa. Machado e lança, espada eescudo. Por um momento só pude olhar.

Ouvi o estalo dos escudos se chocando, viaquela luz nova se refletir nas espadas erguidase vi mais homens de Haesten se apinhando parasubir à proa do Águia do Mar.

A luta encheu a entrada do riacho. Atrásdaqueles três navios a maré montante impelia orestante da frota de Haesten de volta na direçãodos barcos incendiados na margem, mas nemtodos os barcos de Sigefrid estavamqueimando, e mais e mais eram ocupados eremados em direção à retaguarda de Haesten. A

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luta havia começado lá, também. Acima demim, no morro verde de Beamfleot, o casteloainda queimava, e na margem do Hothlege osna-

vios também queimavam, e assim a nova luz corde ouro era velada por mortalhas de fumaça soba qual homens morriam enquanto fiapos decinza preta, adejando como mariposas, desciamdo céu.

Os homens de Haesten em terra, os que haviamnos impelido para a lama e liberado a correntedo navio de guarda, foram chapinhando pelaágua rasa para subir no Viajante-Dragão, juntar-e à luta a bordo do Águia do Mar.

— Sigam-nos! — gritei.

Não havia motivo para os homens de Sigefridme obedecerem. Não sabiam quem eu era, sóque havia lutado ao lado deles, mas entenderam

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o que eu queria e estavam infundidos de umafúria de guerreiros. Haesten havia traído oacordo com Sigefrid, e aqueles eram homensde Sigefrid, assim os homens de Haestendeviam morrer.

Aqueles homens, os que haviam nos levado auma fuga vergonhosa, tinham nos esquecido.Estavam agora a bordo do Viajante-Dragão etentavam ir para o Águia do Mar, decididos amatar a tripulação que havia frustrado a fuga deHaesten, e não tivemos oposição enquantosubíamos a bordo do navio. Os homens que euliderava eram meus inimigos, mas não sabiamdisso e me seguiram de boa vontade, ansiosospara salvar seu senhor. Atacamos os homens deHaesten por trás e, por um instante, éramos ossenhores da matança. Nossas espadasacertavam a es-pinha dos homens, elesmorriam sem saber que estavam sendoatacados, e então os sobreviventes se viraram e

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éramos apenas um punhado de homensenfrentando uma centena.

Havia muito mais homens a bordo do navio deHaesten, e não existia espaço suficiente naproa do Águia do Mar para todos se juntarem àluta. Mas agora os homens no Viajante-Dragãotinham seus próprios inimigos: nós.

Mas os navios são estreitos. Nossa parede deescudos, que fora facilmente flanqueada emterra, aqui se estendia de um lado ao outro doViajante-Dragão, e os bancos dos remadoresformavam obstáculos que impediam o ataque.Eles tinham de vir lentamente para não searrisca-rem a tropeçar nos bancos da altura dosjoelhos, mas mesmo assim vinham ansiosos.Tinham A Ethelflaed, e cada homem lutava porum sonho de riqueza, e tudo de que precisavampara ficar ricos era nos matar. Eu havia pegadoum escudo com um dos homens que tinha

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derrubado em nosso primeiro ataque súbito, eagora estava de pé, com Rypere à direita e umestranho à esquerda, e deixei que eles viessem.

Usei Bafo de Serpente. Minha espada curta,Ferrão de Vespa, geralmente era melhor numaparede de escudos, mas aqui o inimigo nãopodia se grudar em nós porque estávamos atrásde um banco de remador. Na linha central donavio, onde eu estava, não havia banco, mas umsuporte de mastro servia como obstáculo, e euprecisava ficar olhando à esquerda e à direita,para além do suporte alto, para ver onde o piorperigo ameaçava. Um homem de barba revoltasubiu no banco à frente de Rypere, preten-dendo acertar um machado na cabeça dele, maso sujeito segurou o escudo alto demais e Bafode Serpente rasgou sua barriga por baixo e euvirei-a, puxei-a de lado e o machado dele caiuatrás de Rypere enquanto o nórdico gritava e seretorcia em minha espada. Alguma coisa,

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machado ou espada, estava batendo em meuescudo, então o homem com a barriga rasgadacaiu de lado sobre aquela ar-

ma, e o sangue correu pela lâmina de Bafo deSerpente esquentando minha mão.

Uma lança golpeou a meu lado, mas a estocadafoi repelida por meu escudo. A lâmina da lançadesapareceu, puxada para trás, e eu sobrepusmeu escudo ao de Rypere logo antes de a lançagolpear de novo. Deixe-a, lembro-me de terpensado. Para passar por nós eles teriam deatravessar o banco que obstruía e lutar cara acara, e eu olhei por cima da borda do escudopara ver os rostos barbudos. Estavam gritando,não faço idéia de que insultos lançavam contranós, só soube que viriam de novo, e vieram, emandei o escudo contra um homem no banco à

esquerda e golpeei sua perna com Bafo deSerpente, um golpe ridículo, mas a bossa de

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meu escudo acertou sua barriga e o lançou paratrás, e uma lâmina acertou a parte inferior deminha barriga, mas a malha não se rompeu.

Agora eles estavam apinhando o navio, oshomens de trás forçando os da frente contranossas lâminas, mas o simples peso do ataquenos impelia para trás, e eu tinha uma leveconsciência de que alguns de nossos homensdefendi-am nossas costas de um contra-ataquedos homens de Haesten que haviam abordado oÁguia do Mar e agora tentavam retornar aoViajante-Dragão. Dois homens con-seguirampassar pelo suporte de mastro e me atacaramcom os escudos, o impacto me lançando delado e para trás. Tropecei em alguma coisa ecaí sentado na beira de um banco e, num pânicocego, estoquei com Bafo de Serpente pelaborda de meu escudo e senti-a furando malha,couro, pele, músculo e carne. Coisas sechocaram contra meu escudo e eu fiz força

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para a frente, a espada ainda presa na carne doinimigo, e milagrosamente não havia inimigopara me manter embaixo. Toquei os escudos daesquerda e da direita enquanto puxava e torciaBafo de Serpente, liberando-a. Um machado seenganchou na borda superior de meu escudo etentou puxá-lo para baixo, mas eu baixei oescudo, fiz o machado se soltar, levantei oescudo e minha espada estava livre de novo, epude cravá-la no homem do machado. Tudoinstinto, tudo fúria, tudo ódio e berros, tudo umborrão em minha mente agora.

Quanto tempo aquela luta durou?

Pode ter sido um instante ou uma hora. Atéhoje não sei. Ouço meus poetas cantando sobrelutas de eras passadas e acho que não, não eraassim, e certamente aquela luta a bordo donavio de Haesten não se pareceu nem umpouco com a versão que meus poetas gorjeiam.

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Não foi heróica nem grandiosa, e não foi umsenhor da guerra distribuindo a morte comhabilidade implacável com a espada. Foipânico. Foi medo abjeto. Foram homens secagando de medo, homens mijando, homenssangrando, homens fazendo careta e homensgritando pateticamente como crianças sendochicoteadas. Era um caos de espadas voando,escudos se quebrando, vislumbres meiopercebidos, defesas desesperadas e estocadascegas.

Pés escorregavam no sangue e os mortosficavam com as mãos enroladas, os feridosseguravam machucados medonhos que iriammatá-los, choravam chamando as mães e asgaivotas gritavam, e tudo isso os poetascelebram, porque esse é o trabalho deles.Fazem com que pareça mara-vilhoso. E o ventosoprava fraco sobre a maré montante queenchia o riacho de Beamfleot com água em

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redemoinhos, onde o sangue recém-derramadose retorcia e desbotava, desbotava e se retorcia,até ser diluído pelo mar verde e frio.

A princípio havia duas batalhas. Minhatripulação a bordo do Águia do Mar, lideradapor Finan e ajudada pelos restos dos guerreirosde Sigefrid que haviam tripulado o naviobloqueador, lutavam numa defesa desesperadacontra as tropas domésticas de Haesten. Nós osajudamos abordando o Viajante-Dragãoenquanto, na outra extremidade do riacho, ondeos navios queimavam, os homens de Sigefrid eErik atacavam os barcos da retaguarda da frotade Haesten.

Mas agora tudo mudou. Erik tinha visto o queacontecera na foz do rio e, em vez de abordarum barco, guiou seus homens pela margem sul,chapinhou atravessando o pequeno canal quelevava à ilha das Duas Árvores e então entraram

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como um enxame no navio bloqueador, queestava encalhado. Dali pularam no Águia doMar, a-crescentando sua força à parede deescudos de Finan. E

eles eram necessários, porque os navios davanguarda de Haesten haviam finalmenteremado ao resgate de seu senhor e maishomens ainda tentavam abordar o Águia doMar. Era o caos. E quando os homens deSigefrid viram o que Erik havia feito, muitosforam atrás, e o próprio Sigefrid, a bordo deum navio menor, encontrou água suficientepara remar contra a maré e estava trazendo essenavio para a luta na foz do canal, onde os trêsbarcos estavam presos uns contra os outros, eos homens lutavam ignorando com quemlutavam. Parecia que todo mundo estava contratodo mundo. Isso, lembro-me de ter pensado,era como as batalhas que nos esperam nocastelo de cadáveres de Odin, aquela eternidade

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de júbilo em que guerreiros lutam o dia todo esão ressuscitados para beber, comer e amarsuas mulheres a noite toda.

Os homens de Erik, inundando o Águia do Mar,ajudaram Finan a empurrar os de Haesten paratrás. Alguns pularam no riacho, que tinhaapenas profundidade suficiente para afogar umhomem, outros escaparam para os naviosrecém-chegados da frota de Haesten, enquantouma retaguarda teimosa formava uma parede deescudos desafiadora na proa do Águia do Mar.Finan, ajudado por Erik, havia vencido suabatalha, e isso significava que muitos de seushomens podiam vir a bordo do Viajante-Dragãopara reforçar nossa sofrida parede de escudos,e a luta no navio de Haesten diminuiu deintensidade enquanto seus homens viam apenasa morte. Eles recuaram, passando por cima debancos e deixando seus mortos, e rosnarampara nós a uma distância segura. Agora

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esperavam nosso ataque.

E foi então, naquela pequena pausa enquantohomens dos dois lados equilibravam asprobabilidades da vida e da morte, que vi AEthelflaed.

Estava agachada sob a plataforma do leme doViajante-Dragão, de onde olhava o emaranhadode morte e lâminas à frente, mas não haviamedo em seu rosto. Estava com os braços aoredor de duas aias e olhava, arregalada, massem medo aparente. Deveria estar apavorada,porque as últimas horas tinham sido apenasfogo, morte e pânico. Haesten, pelo quesoubemos mais tarde, havia ordenado queateassem fogo ao teto de palha de Sigefrid e,no caos que se seguiu, seus homens haviamatacado os guardas postos por Erik naconstrução onde estava A Ethelflaed. Aquelesguardas haviam morrido, A Ethelflaed fora

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arrancada de seu aposento e arrastadaprecipitada-mente morro abaixo até o Viajante-Dragão, que esperava.

Tinha sido bem feito; um plano inteligente,simples e bru-

tal, e poderia ter dado certo, só que o Águia doMar estivera esperando fora da foz do riacho, eagora centenas de homens golpeavam eestocavam uns aos outros numa luta selvagemna qual ninguém sabia exatamente quem era oinimigo, e homens simplesmente lutavamporque lutar era seu júbilo.

— Matem! Matem! — Era Haesten instigandoseus homens de volta à matança. Ele sóprecisava matar nossos homens e os de Erik, eestaria livre do riacho, mas atrás dele, vindodepressa, o navio de Sigefrid passou pelasoutras embarcações de Haesten. O pilotoapontou-o contra os três navios que

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bloqueavam o canal, e havia espaço suficientepara os remos darem três remadas fortes, demodo que o navio menor se chocou forte naluta. Abalroou a proa do Águia do Mar, bemonde os últimos homens de Haesten haviamfeito sua parede de escudos, e vi aquelesguerreiros cambalear de lado sob o choque doimpacto, e também vi as tábuas do Águia doMar serem impelidas para dentro enquanto oposte de proa de Sigefrid se chocava fortecontra meu navio. Sigefrid quase foi derrubadode sua cadeira pelo impacto, mas lutou paraficar empertigado de novo, com a capa de urso,espada na mão, e gritando aos inimigos paravirem e serem mortos por sua espada, Espalha-Medo.

Os homens de Sigefrid saltaram para a batalha,enquanto Erik, com cabelos desgrenhados eespada na mão, já havia atravessado a proa doÁguia do Mar para abordar o Viajante-Dragão,

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e estava abrindo caminho loucamente nadireção de A Ethelflaed. A luta estava mudando.A chegada de Erik e seus homens e o impactodo navio de Sigefrid havia posto os guerreirosde Haesten na defensiva. Os que restavam abordo do Águia do Mar desistiram primei-

ro. Vi-os lutando para entrar no Viajante-Dragão e pensei que os homens de Sigefriddeviam ter atacado com uma intensidadeuivante para fazê-los fugir tão depressa, masentão vi que meu navio estava afundando. O deSigefrid havia partido seu costado e o mar iajorrando pelas tábuas quebradas.

— Matem! — gritava Erik. — Matem! — E sobsua liderança avançamos e os homens à nossafrente cederam, recuando por alguns bancos.Fomos atrás, passando pelo obstáculo parareceber uma chuva de golpes nos escudos.Estoquei com Bafo de Serpente e não acertei

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nada além de madeira de escudo. Um machadosibilou sobre minha cabeça, o golpe só errandoporque o Viajante-Dragão se sacudiu naquelemomento e percebi que a maré

montante o havia levantado da lama. Estávamosflutuando.

— Remos! — ouvi um grito enorme.

Um machado se cravou em meu escudo,lascando a madeira, e vi um homem de olhosloucos me encarando enquanto tentavarecuperar sua arma. Empurrei o escudo de ladoe estoquei com Bafo de Serpente contra seupeito, usando toda a força, de modo que o açoatravessou a malha e ele continuou meencarando enquanto a espada encontrava seucoração.

— Remos! — era Ralla, gritando para meushomens que não precisavam mais se defender

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contra os atacantes de Haesten. — Remos, seusdesgraçados — gritava ele, e pensei que Ralladevia estar louco para tentar remar um navioque afundava.

Mas Ralla não estava louco. Estava pensandocom sensatez. O Águia do Mar estavaafundando, mas o Viajante-Dragão flutuava, e aproa do Viajante-Dragão apontava para oestuário aberto. Mas Ralla havia despedaçadouma de suas fileiras de remos e agora forçavaalguns de meus homens a levar os remos doÁguia do Mar para o outro navio. Estavaplanejando tomar o barco de Haesten.

Só que agora o Viajante-Dragão era umtorvelinho de homens desesperados. Atripulação de Sigefrid havia passado pela proado Águia do Mar, que ia afundando, para sealojar na plataforma do leme acima de AEthelflaed, e dali estavam golpeando os

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homens de Haesten, que eram empurrados paratrás por meus companheiros e pela tripulaçãode Erik, lutando com fúria maníaca. Erik nãotinha escudo, apenas sua espada longa, e penseique ele poderia morrer uma dúzia de vezesenquanto se lançava contra os inimigos, mas osdeuses o amavam naquele momento e Erikviveu enquanto os inimigos morriam. E

mais homens de Sigefrid vinham da popa,fazendo com que Haesten e sua tripulaçãoficassem espremidos entre nós.

— Haesten! — gritei. — Venha morrer!

Ele me viu e pareceu atônito, mas não sei seescutou, porque queria viver para lutar de novo.O Viajante-Dragão estava flutuando, mas emágua tão rasa que eu podia sentir a quilhabatendo na lama, e atrás dele havia mais naviosde Haesten. Ele pulou por cima da amurada,caindo na água da altura dos joelhos, e sua

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tripulação foi atrás, correndo pela margem daCaninga para a segurança de seu próximo navio.A luta, que fora tão furiosa, cessou num piscarde olhos.

— Estou com a cadela! — gritou Sigefrid. Dealgum modo ele havia abordado o navio deHaesten. Seus homens não o haviam carregado,porque a cadeira com as traves para serlevantada ainda estava no navio que afun-dara oÁguia do Mar, mas a força enorme dos braçosde Sigefrid o havia puxado por cima do barcoque afundava, até entrar no Viajante-Dragão, eagora ele estava sobre as pernas inúteis, comuma espada numa das mãos e o cabelo solto deA Ethelflaed na outra.

Seus homens riram. Tinham vencido. Haviamrecuperado o prêmio. Sigefrid sorriu para o ir-mão.

— Estou com a cadela — repetiu.

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— Entregue-a a mim — disse Erik.

— Vamos levá-la de volta — disse Sigefrid,ainda sem entender. A Ethelflaed estavaolhando para Erik. Ela fora arrastada para oconvés, seus cabelos dourados na mão enormede Sigefrid.

— Entregue-a a mim — repetiu Erik.

Não vou dizer que houve silêncio. Não poderiahaver porque a batalha ainda prosseguia furiosana fileira de navios de Haesten, os incêndiosrugiam e os feridos gemiam, mas pareceu haversilêncio, e os olhos de Sigefrid es-piaram aolongo da fileira de homens de Erik e pousaramem mim. Eu era mais alto do que os outros, eainda que estivesse de costas para o solnascente, ele deve ter visto alguma coisa quereconheceu, porque levantou a espada eapontou a lâmina para mim.

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— Tire o elmo — ordenou em sua vozcuriosamente aguda.

— Não sou seu homem para receber suasordens.

Eu ainda estava com alguns homens de Sigefrid,os mesmos que tinham vindo do naviobloqueador para atrapalhar a primeira tentativade Haesten abrir o canal, e agora esses homensse viraram para mim com as armas selevantando, mas Finan também estava ali, e comele minhas tropas domésticas.

— Não os matem — falei —, apenas joguemna água. Eles lutaram ao meu lado.

Sigefrid soltou o cabelo de A Ethelflaed,empurrando-a de volta para seus homens, eimpulsionou seu enorme corpo de aleijado,coberto de preto.

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— Você e o saxão, hein? — disse a Erik. —Você e aquele saxão traiçoeiro? Você me trai,irmão?

— Eu pago sua parte no resgate — respondeuErik.

— Você? Paga? Com quê? Mijo?

— Eu pagarei o resgate — insistiu Erik.

— Você não poderia pagar um bode paralamber o suor do seu saco! — berrou Sigefrid.— Levem-na para a terra! — Esta última ordemfoi para seus homens.

E Erik atacou. Não precisava. De modo nenhumos homens de Sigefrid poderiam levar AEthelflaed para terra porque o Viajante-Dragãofora carregado pela maré montante passandopelo Águia do Mar semi-afundado. Agoraíamos em direção aos próximos barcos de

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Haesten e eu temia que fôssemos abordados aqualquer minuto. Ralla tinha o mesmo temor eestava arrastando alguns de meus homens paraos bancos dos remadores na proa.

— Puxem! — gritou ele. — Puxem!

E Erik atacou, querendo matar os homens queagora seguravam A Ethelflaed, e tinha de passarpelo irmão agachado, escuro e furioso, noconvés escorregadio de sangue. Vi Sigefridlevantar a espada e o olhar de perplexidade deErik ao perceber que seu próprio irmãolevantava a espada contra ele, e ouvi o grito deA Ethelflaed enquanto seu amante corria paraEspalha-Medo. O rosto de Sigefrid nãodemonstrava nada, nem raiva nem lamento.Segurou a espada enquanto seu irmão sedobrava sobre a lâmina, e então, sem umaordem, o restante de nós ata-

cou. Os homens de Erik e os meus, ombro a

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ombro, foram recomeçar a matança e eu pareiapenas pelo tempo suficiente para pegar um demeus guerreiros pelo ombro.

— Mantenham Sigefrid vivo — ordenei, e nãovi quem era, depois levei Bafo de Serpente paraa última chacina daquela manhã sangrenta.

Os homens de Sigefrid morreram depressa.Eram poucos, e nós éramos muitos. Elespermaneceram de pé

por um momento, recebendo nosso ímpetocom uma parede de escudos travada, maschegamos com uma fúria nascida da raivaamarga, e Bafo de Serpente cantava como umagaivota gritando. Eu havia largado meu escudo,só

querendo acertar aqueles homens. Meuprimeiro golpe derrubou um escudo e cortoufora o maxilar de um homem que tentou gritar

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e apenas cuspiu sangue enquanto Sihtric cravavauma lâmina em sua bocarra aberta. A parede deescudos se rompeu sob nossa fúria. Os homensde Erik lutavam para vingar seu senhor, e meushomens lutavam por A Ethelflaed, que estavaagachada, com os braços sobre a cabeça,enquanto os homens de Sigefrid morriam aoredor. Ela estava berrando, gritandoinconsolavelmente como uma mulher umenterro, e talvez isso a tenha mantido vivaporque, naquela matança na popa do Viajante-Dragão, os homens temiam aqueles berrosmedonhos. O

ruído era aterrorizante, avassalador, umatristeza capaz de encher o mundo, e continuoumesmo depois que o último homem deSigefrid havia saltado na água para escapar denossas espadas e nossos machados.

E só restava Sigefrid, e o Viajante-Dragão

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estava a caminho, indo contra a maré para seesgueirar para fora do canal sob o impulso deseus poucos remos.

Pus minha capa ensangüentada nos ombros deA Ethelflaed. O navio estava se movendo maisrápido enquanto os homens de Rallaencontravam seu ritmo e mais homens,largando escudos e armas, pegavam os remoslongos e os passavam pelos buracos nosflancos do Viajante-Dragão.

— Remem! — gritava Ralla enquanto vinhapelo convés escorregadio de sangue para pegaro remo-leme.

— Remem!

Sigefrid permaneceu, e Sigefrid vivia. Estava noconvés, a perna inútil enrolada sob ele, a mãoda espada vazia, e com uma lâmina encostada nagarganta. Osferth, o filho de Alfredo, segurava

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essa espada, e me olhava nervoso. Sigefridestava xingando e cuspindo. O corpo de seuirmão, com Espalha-Medo ainda cravada nabarriga, estava deitado ao lado dele. Pequenasondas se quebravam na ponta da Caningaenquanto a nova maré corria pela grandeplanície de lama.

Fui para perto de Sigefrid. Olhei-o, sem ouvirseus insultos. Olhei o cadáver de Erik e penseique aquele era um homem que eu poderia teramado, ao lado de quem poderia ter lutado, quepoderia ter conhecido como um irmão, entãoolhei o rosto de Osferth, tão parecido com odo pai.

— Uma vez eu lhe disse que não se ganhavareputação matando um aleijado.

— Sim, senhor — respondeu ele.

— Eu estava errado. Mate-o.

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— Me dê minha espada! — exigiu Sigefrid.

Osferth hesitou enquanto eu olhava de novopara o norueguês.

— Vou passar minha vida além da morte nocastelo de Odin — falei. — E lá vou festejarcom seu irmão, e nem ele nem eu queremossua companhia.

— Me dê minha espada! — Agora Sigefridestava implorando. Ele estendeu a mão para opunho de Espalha-Medo, mas chutei sua mãopara longe do cadáver de Erik.

— Mate-o — falei a Osferth.

Jogamos Sigefrid Thurgilson em algum lugarno mar que dançava além da Caninga, depoisviramos para o oeste, de modo que a marémontante nos levasse rio acima. Haesten haviaconseguido abordar outro de seus navios e, por

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um tempo, nos perseguiu, mas tínhamos obarco mais longo e mais rápido. Afastamo-nosdele e, depois de um tempo, seus naviosabandonaram a perseguição e a fumaça deBeamfleot recuou até parecer uma nuvem longae baixa. E A Ethelflaed continuava chorando.

— O que vamos fazer? — perguntou umhomem.

Era um dos homens de Erik, agora o líder dos22 sobreviventes que haviam escapadoconosco.

— O que quiserem — respondi.

— Ouvimos dizer que seu rei enforca todos osnórdicos — disse o homem.

— Então vai me enforcar primeiro. Vocêsviverão

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— prometi. — E em Lundene vou lhes dar umnavio e vocês podem ir para onde quiserem. —Sorri. — Podem até ficar e me servir.

Aqueles homens haviam posto o corpo de Erik,com reverência, numa capa. Arrancaram aespada de Sigefrid do corpo de seu senhor e meentregaram, e por minha vez entreguei-a aOsferth.

— Você mereceu — disse, e era verdade,porque naquele tumulto de morte o filho deAlfredo havia lutado como um homem. Eriksegurava sua própria espada na mão morta, epensei que ele já estaria no salão em festa, meesperando.

Levei A Ethelflaed para longe do cadáver deseu amante e guiei-a até a popa, onde abracei-aenquanto ela chorava. Seu cabelo douradoroçava minha barba. Ela se agarrou em mim echorou até não ter mais lágrimas, então gemeu

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e escondeu o rosto de encontro à minhasangrenta cota de malha.

— O rei ficará satisfeito conosco — disseFinan.

— É — respondi —, ficará.

Nenhum resgate seria pago. Wessex estava emsegurança. Os nórdicos haviam lutado entre si ese matado, seus navios estavam queimado eseus sonhos eram cinzas.

Deixei o corpo de A Ethelflaed tremendo deencontro ao meu e olhei para o leste, onde osol ofuscava acima da fumaça da incendiadaBeamfleot.

— Você vai me levar de volta para A Ethelred,não é? — perguntou ela, acusando.

— Estou levando-a para seu pai. Para onde mais

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poderia levá-la? — Ela não respondeu, porquesabia que não havia escolha. Wyrd bid fulãraed. — E ninguém deve jamais saber sobrevocê e Erik — continuei em voz baixa.

De novo ela não respondeu, mas agora nãopoderia.

Estava soluçando demais e eu a apertei com osbraços como se pudesse escondê-la doshomens que olhavam, do mundo e do maridoque a esperava.

Os remos longos mergulhavam, as margens dorio se fechavam sobre nós, e no oeste a fumaçade Lundene manchava o céu de verão.

Enquanto eu levava A Ethelflaed para casa.

NOTA HISTÓRICA

Há mais ficção em A CANÇÃO DA ESPADA

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do que nos romances anteriores sobre Uhtredde Bebbanburg. Se A Ethelflaed foi algum diacapturada pelos vikings, os cro-nistascuriosamente ficaram em silêncio sobre oincidente, de modo que esse fio da história éinvenção minha. O

verdadeiro é que a filha mais velha de Alfredose casou com A Ethelred da Mércia, e há umbocado de evidências de que o casamento nãoera feliz. Suspeito de que fui ex-tremamenteinjusto para com o verdadeiro A Ethelred, masa justiça não é o primeiro dever do romancistahistó-rico.

Os registros do reinado de Alfredo sãocomparati-vamente ricos, em parte porque o reiera um erudito e queria que seus feitos fossemimortalizados, mas mesmo assim há mistérios.Sabemos que suas forças capturaram Londres,mas há controvérsias quanto ao ano exato em

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que a cidade foi incorporada a Wessex.Legalmente ela continuou na Mércia, masAlfredo era um homem ambicioso, e decertoestava decidido a manter a Mércia, sem um rei,subserviente a Wessex. Com a captura deLundene, teve início a inexorável expansãopara o norte que por fim, depois da morte deAlfredo, transmutará o reino saxão de Wessexna terra que conhecemos como Inglaterra.

Boa parte do restante da história é baseada naverdade. Houve um determinado ataque vikingcontra Rochester (Hrofeceastre) em Kent, queterminou em fracasso completo. Esse fracassojustificou a política defensiva de Alfredo, decercar Wessex com burhs, que eram cidadesfortificadas, permanentemente guarnecidaspelo fyrd.

Um chefe tribal viking ainda podia invadirWessex, mas poucos exércitos vikings

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viajavam com equipamento de cerco, e assimuma invasão dessas se arriscava a deixar uminimigo forte em sua retaguarda. O sistema deburhs foi organizado imaculadamente, umreflexo, suspeito, da ob-sessão de Alfredo pelaordem, e temos a felicidade de possuir umacópia, feita no século XVI, de um documentooriginal do século XI descrevendo aorganização dos burhs. O Burghal Hildage,como é conhecido o documento, prescrevequantos homens serão necessários em cadaburh, e como esses homens deveriam serconvocados, e re-flete um extraordinárioesforço defensivo. Antigas cidades em ruínasforam revividas e fortificações foramreconstru-

ídas. Alfredo até planejou algumas dessascidades e, até

hoje, se você caminhar pelas ruas de Wareham,

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em Dorset, ou de Wallingford, em Oxford,estará seguindo as ruas que os supervisoresdele desenharam e passando por fronteiras depropriedades que duraram 12 séculos.

Se o esquema defensivo de Alfredo foi umsucesso brilhante, seus primeiros esforços naguerra ofensiva foram menos notáveis. Nãopossuo evidências de que A Ethelred da Mérciatenha liderado a frota que atacou osdinamarqueses no rio Stour; na verdade, duvidode que essa investida tenha tido a ver com AEthelred, mas afora isso a narrativa éessencialmente verdadeira e a expedição,depois do sucesso inicial, foi derrotada pelosvikings. Também não tenho qualquer evidênciade que A Ethelred tenha sujeitado sua jovemesposa à tortura da água amarga, mas qualquerpessoa fascinada por essa feitiçaria antiga emaldosa pode encontrar as instruções de Deuspara a cerimônia no Antigo Testamento

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(Números, 5).

Alfredo, o Grande, no fim de A canção daespada, ainda tem alguns anos para reinar, AEthelflaed da Mércia tem glória a encontrar, eUhtred de Bebbanburg, personagem fictício,ainda que baseado num homem real que poracaso é um de meus ancestrais paternos, temuma longa estrada a percorrer. A Inglaterra, nofim do século IX, ainda é um sonho na mentede uns poucos visionários. Mas os sonhos,como descobrem alguns de meus personagensmais felizardos, podem se realizar, assimUhtred e sua história continuarão.

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Digitalização/Revisão: YUNA

TOCA DIGITAL

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