suassuna - auto da compadecida

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5/22/2018 Suassuna-AutoDaCompadecida-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/suassuna-auto-da-compadecida 1/48 GETEB – Auto da Compadecida Ariano Suassuna. Auto da Compadecida  - Cópia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ – Abril/2011 Depto de Letras, Artes e Cultura Prof a  Claudia Braga AUTO DA COMPADECIDA Ariano Suassuna 1955 ********************************** A Hermilo Borba Filho, José Laurênio de Melo, Gastão de Holanda, Aloísio Magalhães, Orlando da Costa Ferreira e Flaminio Boilini Cerri, com toda a minha amizade. A.S.

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  • GETEB Auto da Compadecida

    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    Depto de Letras, Artes e Cultura Profa Claudia Braga

    AUTO DA COMPADECIDA

    Ariano Suassuna

    1955

    **********************************

    A Hermilo Borba Filho, Jos Laurnio de Melo, Gasto de Holanda, Alosio Magalhes, Orlando da Costa Ferreira e Flaminio Boilini Cerri, com toda a minha amizade.

    A.S.

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    O grande acontecimento do Primeiro Festival de Amadores Nacionais, realizado em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, por iniciativa da Fundao Brasileira de Teatro, foi a representao pelo Teatro Adolescente do Recife, sob a direo de Clnio Wanderlei, do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Se a interpretao era boa, considerado aquilo que se pode exigir de um grupo amador novo e constitudo de elementos jovens e, portanto, at certo ponto inexperientes, o que, por outro lado, tinha a vantagem de dar ao espetculo um tom de simplicidade, de despojamento, de espontaneidade, que correspondia ao esprito da pea e se enquadrava, no estilo de apresentao que mais lhe convinha, a verdade que foi o texto em si o causador do entusiasmo despertado.

    Suassuna diz que sua obra se baseia nos romances e histrias populares do Nordeste, os quais, devemos confessar, desconhecemos totalmente. Por nosso lado, encontramos em A Compadecida um parentesco com gneros mais antigos, de outras pocas e regies que, todavia, devem ter sido de algum modo a origem remota daqueles que a inspiraram. Enquadramo-la, inicialnente, na tradio das peas da Alta Idade Mdia, geralmente designadas como Milagres de Nossa Senhora (do sc. XIV), em que, numa histria mais ou menos - e s vezes muito - profana, o heri em dificuldades apela para Nossa Senhora que comparece e o salva tanto no plano espiritual como temporal.

    Quanto forma e ao tratamento, nossa tendncia para aproximar a obra dos autos de Gil e do teatro espanhol do sc.XVII. Tambm lhe encontramos algo em comum com a commedia dellarte, tanto no desenvolvimento da ao como na concepo das personagens, particularmente na figura de Joo Grilo, que lembra muito as caractersticas do arlequim, embora seja um tipo autenticamente brasileiro e no copiado da tradio ita liana, mesmo porque figura lendria da literatura popular nordestina, tanto que heri de dois romances intitulados As Proezas de Joo Grilo.

    Desta vez, porm, a aproximao de um texto brasileiro com formas e at temas dos grandes gneros da histria do teatro no apontada como defeito, pois no houve cpia, imitao servil ou mera transposio, mas autntica recriao em termos brasileiros, tanto pela ambientao como pela estruturao, sendo uma obra indita em suas caractersticas, nova e, portanto, absolutamente original.

    O seu encanto est nesse ar de ingenuidade que a caracteriza, na singeleza dos recursos empregados, no primarismo do argumento, tudo a nosso ver perfeitamente dentro do esprito popular em que a obra se inspira e que quer manter.

    A linguagem desabrida no deve chocar ningum. a das personagens e do ambiente retratados. Em Gil Vicente encontramos coisas muito piores. Com expresses por vezes rudes e outras pitorescas, o autor conseguiu um dilogo eminentemente teatral, vivo e saboroso, colorido e descritivo, popular sem ser vulgar e paradoxalmente literrio, nada tendo de precioso ou alentejouloso. E essa pseudogrosseria e o jeito direto de indicar situaes ou comenta-las no lhe tiram o sentido cristo que lhe encontramos. preciso no esquecer que se quis evocar uma representao de circo, uma farsa muito marcada, portanto, em que a caricatura tinha de ser forte. Quanto maneira como so apresentados o bispo e o padre, alm do que ficou dito acima, foroso reconhecer no ser absurdo admitir a existncia de maus sacerdotes. O prprio autor, ao agradecer as manifestaes que lhe foram feitas no fim da ltima representao de sua pea, no Teatro Dulcina, reafirmou o sentido catlico da mesma, lembrando, a propsito de sua personagem, o famoso bispo Cauchon, que se fez instrumento da poltica dos ingleses, queimando na fogueira sua compatriota Joana dArc, do que resultou venerar a igreja uma santa por ela prpria martirizada. E foi, at falando dessa figura, se no nos enganamos, que Georges Bernanos disse que a Igreja eram os seus santos e no os seus padres...

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    Alm do mais, no julgamento - verdadeira chave para a compreenso do sentido da pea - Nossa Senhora explica que a viso que dessas figuras nos dada a da lngua do mundo, portanto piorada, do mesmo modo que pela acusao do diabo. E um ponto importante, nesse particular, o fato de ao lado dos dois maus padres, ser colocado um bom, o frade, secretrio do bispo, cujo processo de santificao se anuncia. A apresentao da figura

    De modo um tanto caricatural no nos deve fazer incidir em equvoco. O tom o da pea e - note-se - dele so excludos o Cristo e Nossa Senhora. No mais, o frade sugere, um pouco maneira como Roberto Rosseilini concebeu So Francisco e seus companheiros no famoso filme Francisco, Arauto de Deus, a pureza angelical, a santidade, o desligamento das coisas do mundo, do modo como indicado no v. 8 do cap. 18 do Evangelho segundo So Mateus: tornar-se igual s crianas para poder entrar no reino do cu.

    O sentido moralizante, moralizantes do ponto de vista cristo, da obra, est, alis, presente tanto na linha geral, como em inmeros de seus pormenores, que no seria possvel evocar aqui. lgico, porm, que no contm profundas discusses teolgicas, nem faz propriamente apologtica, o que seria absurdo, O seu apostolado feito atravs da sugesto de um esprito cristo, de uma viso crist da vida, apresentada com a simplicidade do esprito popular, da f simples, sem complicaes, do povo, quase sempre a mais autntica.

    No queremos silenciar sobre uma fala que tem sido muito discutida. Quando Joo Grilo se espanta ao ver o Cristo negro, este responde que veio assim para mostrar que para ele tanto faz ser branco como preto, uma vez que no americano para ter preconceito de cor.

    Ora, em primeiro lugar, durante a guerra houve bases americanas no Nordeste, cujo ambiente e mentalidade a pea evoca. Possivelmente seus ocupantes, com a inabilidade caracterstica que manifestam no trato com outros povos, deram abundantes provas desse seu lamentvel sentimento. Portanto, a repulsa pode ali ser suficientemente forte, para que o autor se sentisse levado a traz-la para sua pea. Em segundo lugar, esse preconceito realmente revolto, como um dos sentimentos mais anticristos que possam existir; a sua presena - com a sabida intensidade - num povo que ou pelo menos pretende ser um paladino da liberdade e da democracia algo que clama ao cus.

    Noutro trecho da cena do julgamento, quando Joo Grilo procura recorrer a mais uma esperteza, para livrar-se da acusao do diabo, Cristo o adverte: Deixe de chicana, Joo. Voc pensa que isto aqui o Palcio da Justia?.

    Tanto pois dessa rplica, como da referente ao preconceito de cor - das trs vezes em que vimos a pea no Dulcina - o povo prorrompia em aplausos. Era a emoo irresistvel de sentir o Cristo do seu lado, pois a Justia, infelizmente como praticada, sufocada por formalismos e complicaes que possibilitam a deturpao de seus verdadeiros objetivos, antes uma ameaa que uma garantia aos olhos do povo.

    Acusa ainda o Cristo o diabo de ser meio esprita e consequentemente de ter a mania de ser mgico. Esses e outros trechos do Cristo e de Nossa Senhora do uma concepo da religio como algo simples, agradvel, doce e no como uma coisa formal, solene, difcil e mesmo penosa. Essa intimidade com Deus, e a idia da simplicidade nas relaes dele com os homens, essa compreenso da vida e f na misericrdia, nos parecem aspectos primordiais no sentido religioso da obra, sobre o qual muito haveria que dizer, no nos tivssemos j alongado demais. Por isso, limitemo-nos a lembrar a compreenso das faltas humanas, atribuda a Nossa Senhora, que, como mulher, simples e do povo, as explica e pede para elas a compaixo divina. Mesmo para aqueles que praticaram atos vergonhosos, pois preciso levar em conta a pobre e triste condio do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas. Levados pelo medo, os homens terminam por fazer o que no presta, quase sem querer. E como o diabo - por nunca ter sido homem - no entende o que o medo, as personagens explicam que o

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    medo da fome, do sofrimento, da morte e da solido. Por medo desta o padeiro tudo perdoava mulher. Essa solido que o prprio Cristo viveu em Getsmani e a sensaes de abandono que sentiu na Cruz.

    De tudo o que ficou dito, o leitor concluir que um programa da humanidade, com suas misrias, suas fraquezas, mas tambm suas razes de consolo e esperana, que A Compadecida evoca. esse, justamente, o grande mrito do autor e a evidncia da qualidade de sua obra: ter conseguido, a partir de uma situao local, regional, tpica mesmo, compor um quadro de significao universalmente vlida. HENRIQUE OSCAR.

    EPGRAFES

    O DIABO L vem a compadecida! Mulher em tudo se mete! MARIA Meu filho perdoe esta alma, tenha dela compaixo. No se perdoando esta alma, faz-se

    dar mais gosto ao co: Por isto absolva ela, lanai a vossa bno. JESUS Pois minha me leve a alma, leve em sua proteo, diga s outras que recebam, faam

    com ela unio. fica feito o seu pedido, dou a ela a salvao.

    O Castigo da Soberba, auto popular, annimo, do romanceiro nordestino. Mandou chamar o vigrio: Pronto! - o vigrio chegou. - s ordens, Sua Excelncia! O Bispo lhe perguntou: Ento, que cachorro foi que o reverendo enterrou? - Foi um cachorro importante, Animal de inteligncia: Ele, antes de morrer, Deixou a Vossa Excelncia Dois contos de ris em ouro. Se eu errei, tenha pacincia. - No errou no, meu vigrio, Voc um bom pastor. Desculpe eu incomod-lo, A culpa do portador! Um cachorro como esse, Se v que merecedor!

    O Enterro do Cachorro, romance popular annimo do Nordeste. Foi na venda e de l trouxe Trs moedas de cruzado Sem dizer nada a ningum Para no ser censurado: No fiof do cavalo Fez o dinheiro guardado. Disse o pobre: - Ele est magro, S tem o osso e o couro,

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    Porm, tratando-se dele, Meu cavalo um tesouro. Basta dizer que defeca Nquel, prata, cobre e ouro.

    Histria do Cavalo que Defecava Dinheiro, romance popular annimo do Nordeste.

    O Auto da Compadecida foi encenado pela primeira vez a 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, pelo Teatro Adolescente do Recife, sob direo de Clnio Wanderley, sendo os papis criados pelos seguintes atores: PALHAO ....................................... Jos Pinheiro JOO GRILO ................................... Ricardo Gomes CHIC .............................................. Clnio Wanderley PADRE JOO .................................. Sandoval Cavalcnti ANTNIO MORAIS ....................... Jos de Sonsa Pimentel SACRISTO .................................... Alberique Farias PADEIRO ........................................ Lus Mendona MULHER DO PADEIRO ............... Nina Elva BISPO ............................................... Eutrpio Gonalves FRADE ............................................. Mrio Boavista SEVERINO DO ARACAJU ........... Otvio Catanho CANGACEIRO ............................... Artur Rodrigues DEMNIO ....................................... Mrio Boavista O ENCOURADO (O DIABO) ........ Jos de Sonsa Pimentel MANUEL (Nosso SENHOR JESUS CRISTO).Jos Gonalves A COMPADECIDA (NOSSA SENHORA) . Maria do Socorro Raposo Meira.

    A 11 de maro de 1967, a pea foi encenada em So Paulo pelo Studio Teatral, sob direo de Hermilo Filho, no Teatro Natal, sendo os papis representados pelos seguintes atores: PALHAO ............................................ Jos Pinheiro JOO GRILO ....................................... Armando Bagos CHIC ................................................... Nlson Duarte PADRE JOO ....................................... Felipe Cafun ANTNIO MORAIS ............................ Teotnio Pereira SACRISTO ......................................... Samuel dos Santos PADEIRO .............................................. Taran Dach MULHER DO PADEIRO ..................... Cici Pinheiro BISPO .................................................... Thales Maia FRADE .................................................. ngelo Diaz SEVERINO DO ARACAJU ................ Renato Master CANGACEIRO .................................... Jorge Nader DEMNIO ............................................ Mlton Gonalves O ENCOURADO (O DIABO) ............ Dalmo Ferreira MANUEL (Nosso SENHOR JESUS CRISTO) .Mlton Ribeiro A COMPADECIDA (NOSSA SENHORA) . Crdula Reis

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histrias populares do Nordeste. Sua encenao deve, portanto, seguir a maior linha de simplicidade, dentro do esprito em que foi concebido e realizado. O cenrio (usado na encenao como um picadeiro de circo, numa idia excelente de Clnio Wanderley, que a pea sugeria) pode apresentar uma entrada de igreja direita, com uma pequena balaustrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses ptios comuns nas igrejas das vilas do interior.. A sada para a cidade esquerda e pode ser feita atravs de um arco. Nesse caso, seria conveniente que a igreja, na cena do julgamento, passasse a ser entrada do cu e do purgatrio. O trono de Manuel, ou seja, Nosso Senhor, Jesus Cristo, poderia ser colocado na balaustrada, erguida sobre um praticvel servido por escadarias. Mas tudo isso fica a critrio do ensaiador e do cengrafo, que podem montar a pea com dois cenrios, sendo um para o comeo e outro para a cena do julgamento, ou somente com cortinas, caso em que se imaginar a igreja fora do palco, direita, e a sada para a cidade esquerda, organizando-se a cena para o julgamento atravs de simples cadeiras de espaldar alto, com sada para o inferno esquerda e sada para o purgatrio e para o cu direita. Em todo caso, o autor gostaria de deixar claro que seu teatro mais aproximado dos espetculos de circo e da tradio popular do que do teatro moderno. Agradece ainda o autor a seus amigos Jean Louis Marfaing, Jos Paulo Moreira da Fonseca e Henrique Oscar as crticas que fizeram ao quadro final da pea e que resultaram em sua modificao para a forma em que vai finalmente escrita aqui.

    Ao abrir o pano, entram todos os atores, com exceo do que vai representar Manuel, como se tratasse de uma tropa de saltimbancos, correndo, com gestos largos, exibindo-se ao pblico. Se houver algum ator que saiba caminhar sobre as mos, dever entrar assim. Outro trar uma corneta, na qual dar um alegre toque, anunciando a entrada do grupo. H de ser uma entrada festiva, na qual as mulheres do grandes voltas e os atores agradecero os aplausos, erguendo os braos, como no circo. A atriz que for desempenhar o papel de Nossa Senhora deve vir sem caracterizao, para deixar bem claro que, no momento, somente atriz. Imediatamente aps o toque de clarim, o Palhao anuncia o espetculo.

    PALHAO (grande voz) Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristo, um padre e um bispo, para exerccio da moralidade.

    Toque de clarim. PALHAO A interveno de Nossa Senhora no momento propcio, para triunfo da misericrdia. Auto da Compadecida! Toque de clarim A COMPADECIDA A mulher que vai desempenhar o papel desta excelsa Senhora, declara-se

    indigna de to alto mister. Toque de clarim. PALHAO Ao escrever esta pea, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor

    quis ser representado por um palhao, para indicar que sabe, mais do que ningum, que sua alma um velho catre, cheio de insensatez e de solrcia. Ele no tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou faz-lo, baseado no esprito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, um povo salvo e tem direito a certas intimidades.

    Toque de clarim. PALHAO Auto da Compadecida! O ator que vai representar Manuel, isto , Nosso Senhor

    Jesus Cristo, declara-se tambm indigno de to alto papel, mas no vem agora, porque sua apario constituir um grande efeito teatral e o pblico seria privado desse elemento de surpresa.

    Toque de clarim.

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    PALHAO Auto da Compadecida! Uma histria altamente moral e um apelo misericrdia. JOO GRILO Ele diz misericrdia, porque sabe que, se fssemos julgados pela justia, toda

    a nao seria condenada. PALHAO Auto da Compadecida! (Cantando.) Tombei, tombei, mandei tombar! ATORES (respondendo ao canto) Perna fina no meio do mar. PALHAO Oi, eu vou ali e volto j. ATORES (saindo) Oi, cabea de bode no tem que chupar. PALHAO O distinto pblico imagine sua direita uma igreja, da qual o centro do palco ser o

    ptio. A sada para a rua sua esquerda. (Essa fala dar idia da cena, se adotar uma encenao mais simplificada e pode ser conservada mesmo que se monte um cenrio mais rico.) O resto com os atores.

    (Aqui pode -se tocar uma msica alegre e o Palhao sai danando. Uma pequena pausa e entram Chic e Joo Grilo.)

    JOO GRILO E ele vem eu Estou desconfiado, Chic. Voc to sem confiana! CHIC Eu, sem confiana? Que isso, Joo, est me desconhecendo? Juro como ele vem. Quer

    benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho no morre. A dificuldade no ele vir, o padre benzer. O bispo est a e tenho certeza de que o Padre Joo no vai querer benzer o cachorro.

    JOO GRILO No vai benzer ? Por qu? Que que um cachorro tem de mais? CHIC Bom, eu digo assim porque sei como esse povo cheio de coisas, mas no nada de

    mais. Eu mesmo j tive um cavalo bento. JOO GRILO Que isso, Chico? (Passa o dedo na garganta.) J estou ficando por aqui com

    suas histrias. sempre uma coisa toda esquisita. Quando se pede uma explicao, vem sempre com no sei, s sei que foi assim.

    CHIC Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que no tive?

    JOO GRILO Voc vem com uma histria dessas e depois se queixa porque o povo diz que voc sem confiana.

    CHIC Eu, sem confiana? Antnio Martinho est para dar as provas do que eu digo. JOO GRILO Antnio Martinho? Faz trs anos que ele morreu. CHIC Mas era vivo quando eu tive o bicho JOO GRILO Quando voc teve o bicho? E foi voc quem pariu o cavalo, Chico? CHIC Eu no. Mas do jeito que as coisas vo, no me admiro mais de nada. No ms passado

    uma mulher teve um, na serra do Araripe, para os lados do Cear. JOO GRILO Isso coisa de seca. Acaba nisso, essa fome: ningum pode ter menino e haja

    cavalo no mundo. A comida mais barata e coisa que se pode vender. Mas seu cavalo, como foi?

    CHIC Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo cuidado, porque o cavalo era bento. E s podia ser mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma vez corremos atrs de uma garrota, das seis da manh at as seis da tarde, sem parar nem um momento, eu a cavalo, ele a p. Fui derrubar a novilha j de noitinha, mas quando acabei o servio e enchocalhei ares, olhei ao redor, e no conhecia o lugar onde estvamos. Tomei uma vereda que havia assim e a tangendo o boi...

    JOO GRILO O boi? No era uma garrota? CHIC Uma garrota e um boi. JOO GRILO E voc corria atrs do dois de uma vez? CHIC (irritado) Corria, proibido? JOO GRILO No, mas eu me admiro eles correrem tanto tempo juntos, sem me apertarem.

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    Como foi isso? CHIC No sei, s sei que foi assim. Sa tangendo os bois e de repente avistei uma cidade.

    uma histria que eu no goste nem de contar. JOO GRILO Conte, conte sempre, voc est em casa. CHIC Voc sabe que eu comecei a correr da ribeira do Tapero, na Paraba. Pois bem, na

    entrada da rua perguntei a um homem onde estava e ele me disse que era Prpria, de Sergipe. JOO GRILO Sergipe, Chic? CHIC Sergipe, Joo. Eu tinha corrido at l no meu cavalo. S sendo bento mesmo. JOO GRILO Mas Chic, e o rio So Francisco? CHIC L vem voc com sua mania de pergunta, Joo. JOO GRILO Claro, tenho que saber. Como foi que voc passou? CHIC No sei, s sei que foi assim. S podia estar seco nesse tempo, porque no me lembro

    quando passei...E nesse tempo todo o cavalo ali comigo, sem reclamar nada! JOO GRILO Eu me admirava era se ele reclamasse. CHIC por causa dessas e de outras que eu no me admiro mais de nada, Joo. Cachorro

    bento, cavalo bento, tudo isso eu j vi. JOO GRILO Quer dizer que voc acha que o homem vem? CHIC S pode vir. o nico jeito que ele tem a dar. A mulher disse que o larga se o cachorro

    morrer. O doutor diz que no sabe o que que o bicho tem, o jeito agora apelar para o padre. Hora de se chamar padre a hora da morte, de modo que ele tem de vir. Padre Joo! Padre Joo!

    JOO GRILO (ajoelhando-se, em tom lamentoso) Lembra-te de Nosso Senhor Jesus Cristo. Chic. Chic, Jesus vai contigo e tu vais com Jesus. Lembra-te de Nosso Senhor Jesus Cristo, Chic.

    CHIC Que latomia essa para o meu lado? Voc quer me agourar? JOO GRILO (erguendo-se) Ah, e voc est vivo? CHIC Estou, que que voc est pensando? No besta no? JOO GRILO Voc disse que hora de chamar padre era a hora da morte, comeou a gritar por

    Padre Joo, eu s podia pensar que estava lhe dando a agonia. CHIC (depois de estender-lhe o punho fechado) Padre Joo! JOO GRILO Padre Joo! Padre Joo! PADRE (aparecendo na igreja) Que h? Que gritaria essa? (Fala afetadamente com aquela pronncia e aquele estilo que Leon Bloy chamava

    sacerdotais.) CHIC Mandaram avisar para o senhor no sair, porque vem uma pessoa aqui trazer um

    cachorro que est se ultimando para o senhor benzer. PADRE Para eu benzer? CHIC Sim. PADRE (com desprezo) Um cachorro? CHIC Sim. PADRE Que maluquice! Que besteira! JOO GRILO Cansei de dizer a ele que o senhor benzia. Benze porque benze, vim com ele. PADRE No benzo de jeito nenhum. CHIC Mas padre, no vejo nada de mal em se benzer o bicho. JOO GRILO No dia em que chegou o motor novo do major Antnio Morais o senhor no o

    benzeu? PADRE Motor diferente, uma coisa que todo mundo benze. Cachorro que eu nunca ouvi

    falar.

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    CHIC Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor. PADRE , mas quem vai ficar engraado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer motor fcil,

    todo mundo faz isso, mas benzer cachorro? JOO GRILO , Chic, o padre tem razo. Quem vai ficar engraado ele e uma coisa o

    motor do major Antnio Morais e outra benzer o cachorro do major Antnio Morais. PADRE (mo em concha no ouvido) Como? JOO GRILO Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antnio Morais. PADRE E o dono do cachorro de quem vocs esto falando Antnio Morais? JOO GRILO . Eu no queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o major rico e

    poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego, fui forado a obedecer, mas disse a Chic: o padre vai se zangar.

    PADRE (desfazendo-se em sorrisos) Zangar nada, Joo! Quem um ministro de Deus para ter direito de se zangar? Falei por falar, mas tambm vocs no tinham dito de quem era o cachorro!

    JOO GRILO (cortante) Quer dizer que benze, no ? PADRE (a Chic) Voc o que que acha? CHIC Eu no acho nada de mais. PADRE Nem eu. No vejo mal nenhum em abenoar as criaturas de Deus. JOO GRILO Ento fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo satisfeito. PADRE Digam ao major que venha. Eu estou esperando. (Entra na igreja.) CHIC Que inveno foi essa de dizer que o cachorro era do major Antnio Morais? JOO GRILO Era o nico jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major

    que se pla. No viu a diferena? Antes era Que maluquice, que besteira!, agora No vejo mal nenhum em se abenoar as criaturas de Deus!.

    CHIC Isso no vai dar certo. Voc j comea com suas coisas, Joo. E havia necessidade de inventar que era empregado de Antnio Morais?

    JOO GRILO Meu filho, empregado do major e empregado de um amigo do major quase a mesma coisa. O padeiro vive dizendo que amigo do homem, de modo que a diferena muito pouca. Alm disso, eu podia perfeitamente ter sido mandado pelo major, porque o filho dele est doente e pode at precisar do padre.

    CHIC Joo, deixe de agouro com o menino, que isso pode se virar por cima de voc. JOO GRILO E voc deixe de conversa. Nunca vi homem mais mole do que voc, Chic. O

    padeiro mandou voc arranjar o padre para benzer o cachorro e eu arranjei sem ter sido mandado. Que que voc quer mais?

    CHIC Ih, olha como isso est pegado com o patro! Faz gosto um empregado dessa qualidade. JOO GRILO Muito pelo contrrio, ainda hei de me vingar do que ele e a mulher me fizeram

    quando estive doente. Trs dias passei em cima de uma cama para morrer e nem um copo dgua me mandaram. Mas fiz esse trabalho somente porque se trata de enganar o padre. No vou com aquela cara.

    CHIC Com qual? Com a do padre? JOO GRILO Com as duas. Estou acertando as contas com o padre e a qualquer hora acerto com

    o patro. Eu conheo o ponto fraco do homem, Chic. CHIC Qual ? a besteira? JOO GRILO Nada disso, se o ponto fraco das pessoas daqui fosse somente a besteira, ningum

    estava livre de mim. Voc mesmo um leso de marca, Chic. S no boto voc no bolso por que sou seu amigo.

    CHIC E qual o ponto fraco do patro? (Estas duas ltimas falas so cortveis, a critrio do encenador.)

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    JOO GRILO Chic, deixe de ser hipcrita, que voc sabe. CHIC Juro que no sei, Joo. JOO GRILO a mulher, Chic, e voc sabe muito bem disso. Voc mesmo sabe que a mulher

    dele... CHIC Joo, fale baixo, que o padre pode ouvir. Essas coisas num instante se espalham. JOO GRILO Deixe de besteira, Chic, todo mundo j sabe que a mulher do padeiro engana o

    marido. CHIC Joo, danado, ou voc fala baixo ou eu o esgano j, j. JOO GRILO Mas todo mundo no sabe mesmo? CHIC Sabe, mas no sabe que foi comigo, entendeu? E mesmo ela j me deixou por outro.

    Uma vez, Joo, e no posso me esquecer dela. Mas no quer mais nada comigo. JOO GRILO Nem pode querer, Chic. Voc um miservel que no tem nada e. a fraqueza

    dela dinheiro e bicho. CHIC Dinheiro e bicho? JOO GRILO Sim. Tenho certeza de que ela no o teria deixado se voc fosse rico. Nasceu

    pobre, enriqueceu com o negcio da padaria e agora s pensa nisso. Mas eu hei de me vingar dela e do marido de uma vez.

    CHIC Por que essa raiva dela? JOO GRILO homem sem vergonha! Voc inda pergunta? Est esquecido de que ela o

    deixou? Est esquecido da explorao que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que so o co s porque enriqueceram, mas um dia ho de me pagar. E a raiva que eu tenho porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. At carne passada na manteiga tinha. Para mim, nada, Joo Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo.

    CHIC Joo, deixe de ser vingativo que voc se desgraa. Qualquer dia voc inda se mete numa embrulhada sria.

    JOO GRILO E o que que tem isso? Voc pensa que eu tenho medo? S assim que posso me divertir. Sou louco por uma embrulhada.

    CHIC Permita ento que eu lhe d meus parabns, Joo, porque voc acaba de se meter numa danada.

    JOO GRILO Eu? Que h? CHIC O major Antnio Morais vem subindo ladeira. Certamente vem procurar o padre. JOO GRILO Ave-Maria! Que que se faz, Chic? CHIC No sei, no tenho nada a ver com isso. Voc, que inventou a histria e que gosta de

    embrulhada, que resolva. JOO GRILO Cale a boca, besta. No diga uma palavra e deixe tudo por minha conta. (Vendo

    Antnio Morais no limiar, esquerda.) Ora viva, seu major Antnio Morais, como vai Vossa Senhoria? Veio procurar o padre? (Antnio Morais, silencioso e terrvel, encaminha-se para a igreja mas Joo toma-lhe a frente.) Se Vossa Senhoria quer, eu vou cham-lo. (Antnio Morais afasta Joo do caminho com a bengala, encaminhando-se de novo para a igreja. Joo, aflito, d a volta, tomando-lhe a frente e fala, como ltimo recurso.) que eu queria avisar para Vossa Senhoria no ficar espantado: o padre est meio doido.

    ANTNIO MORAIS (parando) Est doido? O padre? JOO GRILO (animando-se) Sim, o padre. Est dum jeito que no respeita mais ningum e com

    mania de benzer tudo. Vim dar um recado a ele, mandado por meu patro, e ele me recebeu muito mal, apesar de meu patro ser quem .

    ANTNIO MORAIS E quem seu patro? JOO GRILO O padeiro. Pois ele chamou o patro de cachorro e disse que apesar disso ia

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    benz-lo. ANTNIO MORAIS Que loucura essa? JOO GRILO No sei, a mania dele agora. Benze tudo e chama a gente de cachorro. ANTNIO MORAIS Isso foi porque era com seu patro. Comigo diferente. JOO GRILO Vossa Senhoria me desculpe, mas eu penso que no. ANTNIO MORAIS Voc pensa que no? JOO GRILO Penso, sim. E digo isso porque ouvi o padre dizer: Aquele cachorro, s porque

    amigo de Antnio Morais, pensa que alguma coisa. ANTNIO MORAIS Que histria essa? Voc tem certeza? JOO GRILO Certeza plena. Est doidinho, o pobre do padre. ANTNIO MORAIS Pois vamos esclarecer a histria, porque algum vai pagar essa brincadeira.

    Quanto mania de benzer, no faz mal, ele me ser at til. Meu filho mais moo est doente e vai para o Recife, tratar-se. Tem uma verdadeira mania de igreja e no quer ir sem a bno do padre. Mas fique certo de uma coisa: hei de esclarecer tudo e se voc est com brincadeiras para meu lado, h de se arrepender. Padre Joo! Padre Joo!

    (Sai pela direita. No mesmo instante, CHIC tenta fugir, mas Joo agarra-o pelo pescoo.) JOO GRILO No, voc fica comigo. Vim encomendar a bno do cachorro por sua causa e

    voc tem de ficar. E mesmo, Chic, voc j est acostumado com essas coisas, j teve at um cavalo bento!

    CHIC , mas acontece que o major Antnio Morais pode ter alguma coisa de cavalo, de bento que ele no tem nada.

    JOO GRILO Deixe de ser frouxo e fique aqui. ANTNIO MORAIS (voltando) Ah, padre, estava a? Procurei-o por toda parte. PADRE (da igreja.) Ora quanta honra! Uma pessoa como Antnio Morais na igreja! H quanto

    tempo esses ps no cruzam os umbrais da casa de Deus! ANTNIO MORAIS Seria melhor dizer logo que faz muito tempo que no venho missa. PADRE Qual o que, eu sei de suas ocupaes, de sua sade... ANTNIO MORAIS Ocupaes? O senhor sabe muito bem que no trabalho e que minha sade

    perfeita. PADRE (amarelo) Ah,? ANTNIO MORAIS Os donos de terras que perderam hoje em dia o senso de sua autoridade.

    Vem-se senhores trabalhando em suas terras como qualquer foreiro. Mas comigo as coisas so como antigamente, a velha ociosidade senhorial.

    PADRE o que eu vivo dizendo, do jeito que as coisas vo, o fim do mundo. Mas que coisa o trouxe aqui? J sei, no diga, o bichinho est doente, no ?

    ANTNIO MORAIS , j sabia? PADRE J, aqui tudo se espalha num instante. J est fedendo? ANTNIO MORAIS Fedendo? Quem? PADRE O bichinho ANTNIO MORAIS No. Que que o senhor quer dizer? PADRE Nada, desculpe, um modo de falar. ANTNIO MORAIS Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos. PADRE Peo que desculpe um pobre padre sem muita instruo. Qual a doena? Rabugem? ANTNIO MORAIS Rabugem? PADRE Sim, j vi um morrer disso em poucos dias. Comeou pelo rabo e espalhou-se pelo resto

    do corpo. ANTNIO MORAIS Pelo rabo?

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    PADRE Desculpe, desculpe, eu devia ter dito pela cauda. Deve-se respeito aos enfermos, mesmo que sejam os de mais baixa qualidade.

    ANTNIO MORAIS Baixa qualidade? Padre Joo, veja com quem est falando. A igreja uma coisa respeitvel, como garantia da sociedade, mas tudo tem um limite.

    PADRE Mas o que foi que eu disse? ANTNIO MORAIS Baixa qualidade! Meu nome todo Antnio Noronha de Brito Morais e

    esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos, ouviu? Gen te que veio nas caravelas, ouviu? PADRE Ah bem e na certa os antepassados do bichinho tambm vieram nas galeras, no isso? ANTNIO MORAIS Claro! Se meus antepassados vieram, claro que os dele vieram tambm.

    Que que o senhor quer insinuar? Quer dizer por acaso que a me dele... PADRE Mas, uma cachorra!... ANTNIO MORAIS O qu? PADRE Uma cachorra. ANTNIO MORAIS Repita. PADRE No vejo nada de mal em repetir, no uma cachorra mesmo? ANTNIO MORAIS Padre, no o mato agora mesmo porque o senhor um padre e est louco,

    mas vou me queixar ao bispo. (A Joo.) Voc tinha razo. Aparea nos Angicos, que no se arrepender. (Sai.)

    PADRE (aflitssimo) Mas me digam pelo amor de Deus o que foi que eu disse. JOO GRILO Nada, nada, padre. Esse homem s pode estar louco com essa mania de ser

    grande. At ao cachorro ele quer dar carta de nobreza! PADRE Fao tudo para agrad-lo e vai-se queixar ao bispo. Ah se fosse no tempo do outro!

    Aquele, sim, era um santo, a coisa mais fcil do mundo era satisfaz-lo. Esse dagora uma guia, um verdadeiro administrador. Ser que vai me suspender?

    JOO GRILO Que nada, padre, antes disso eu vou aos Angicos e arranjo tudo. PADRE Arranja mesmo, Joo? Como? JOO GRILO Deixe comigo. Antnio Morais comeou a ser meu amigo de repente. No viu

    como me convidou para ir aos Angicos? Agora assim, Joo Grilo pra l, Antnio Morais pra c... Est completamente perturbado.

    PADRE Pois arranje as coisas, Joo, que voc no se arrepende. JOO GRILO Chama-se j est arranjado. Agora, eu queria um favorzinho do senhor padre. PADRE Eu j estava esperando por uma dessas. Nessa minha profisso a gente se acostuma de

    tal modo com isso de dar e tomar... O prprio direito graa s se consegue cumprindo os mandamentos

    JOO GRILO O que eu vou pedir coisa muito mais fcil do que cumprir os mandamentos. PADRE Diga ento o que ! JOO GRILO O cachorro de meu patro est muito mal e eu queria que o senhor benzesse o

    bichinho. PADRE De novo? Mas possvel? JOO GRILO mais do que possvel. O senhor no ia benzer o do major Antnio Morais? PADRE E de quem que voc est falando? JOO GRILO De meu patro. PADRE E seu patro no Antnio Morais? JOO GRILO No. PADRE Mas voc ainda agora disse isso aqui, Joo. JOO GRILO Eu? Quem disse isso foi Chic. (Chic d um grande salto de surpresa.) PADRE E quem seu patro?

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    JOO GRILO O padeiro. PADRE E o cachorro dele tambm est doente? JOO GRILO Est. PADRE Tambm, oh terra para ter cachorro doente s essa! JOO GRILO E a mania agora benzer, benzer tudo quanto de bicho, (Ouvem-se, fora, grandes gritos de mulher.) JOO GRILO a velha, com o cachorro. Como , o senhor benze ou no benze? PADRE Pensando bem, acho melhor no benzer. O bispo est a e eu s benzo se ele der licena.

    ( esquerda aparece a mulher do padeiro e o padre corre para ele.) Pare, pare! (Aparece o padeiro.) Parem, parem! Um momento. Entre o senhor e entre a senhora: o cachorro fica l!

    MULHER Ai, padre, pelo amor de Deus, meu cachorro est morrendo. o filho que eu conheo neste mundo, padre. No deixe o cachorrinho morrer, padre.

    PADRE (comovido) Pobre mulher! Pobre cachorro! (Joo Grilo estende-lhe um leno e ele se assoa ruidosamente.) PADEIRO O senhor benze o cachorro, Padre Joo? JOO GRILO No pode ser, O bispo est a e o padre s benzia se fosse o cachorro do major

    Antnio Morais, gente mais importante, porque seno o homem pode reclamar. PADEIRO Que histria essa? Ento Vossa Senhoria pode benzer o cachorro do major Antnio

    Morais e o meu no? PADRE (apaziguador) Que isso, que isso? PADEIRO Eu que pergunto: que isso? Afinal de contas eu sou presidente da Irmandade das

    Almas, e isso alguma coisa. JOO GRILO , padre, o homem a coisa muita. Presidente da Irmandade das Almas! Para

    mim isso, um caso claro de cachorro bento. Benza logo o cachorro e tudo fica em paz. PADRE No benzo, no benzo e acabou-se! No estou pronto para fazer essas coisas assim de

    repente. Sem pensar, no. MULHER (furiosa) Quer dizer, quando era o cachorro do major, j estava tudo pensado, para

    benzer o meu essa complicao! Olhe que meu marido presidente e scio benfeitor da Irmandade Almas! Vou pedir a demisso dele!

    PADEIRO Vai pedir minha demisso! MULHER De hoje em diante no me sai l de casa nem um po para a Irmandade! PADEIRO Nem um po! MULHER E olhe que os pes que vm para aqui so de graa! PADEIRO So de graa! MULHER E olhe que as obras da igreja ele quem est custeando! PADEIRO Sou eu que estou custeando! PADRE (apaziguador) Que isso, que isso! MULHER O que isso? a voz da verdade, padre Joo. O senhor agora vai ver quem a mulher

    do padeiro! JOO GRILO Ai, ai, ai e a Senhora, o que que do padeiro? MULHER A vaca... CHIC A vaca?! MULHER A vaca que eu mandei para c, para fornecer leite ao vigrio tem que ser devolvida

    hoje mesmo. PADEIRO Hoje mesmo! PADRE Mas at a vaca? Sacristo, sacristo! JOO GRILO A vaca tambm demais. (Arremedando o padre.) Sacristo, sacristo! O

    Sacristo aparece porta. um sujeito magro, pedante, pernstico, de culos azuis que ele

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    ajeita com as duas mos de vez em quando, com todo cuidado. Para no limiar da cena, vindo da igreja, e examina todo o ptio.

    JOO GRILO Sacristo, a vaca da mulher do padeiro tem que sair! SACRISTO Um momento. Um momento. Em primeiro lugar, o cuidado da casa de Deus e de

    seus ar redores. Que isso? Que isso? (Ele domina toda a cena, inclusive o Padre que tem Uma confiana enorme na empfia

    segurana e hipocrisia do secretrio.) MULHER E PADEIRO (ao mesmo tempo, em resposta pergunta do Sacristo) o padre... SACRISTO (afastando os dois com a mo e olhando para a direita) Que aquilo? Que

    aquilo? (Sua afetao de espanto to grande, que todos se voltam para direo em que ele olha.) SACRISTO Mas um cachorro morto no ptio da casa de Deus? PADEIRO Morto? MULHER (mais alto) Morto? SACRISTO Morto, sim. Vou reclamar Prefeitura. PADEIRO (correndo e voltando-se do limiar verdade) Morreu. MULHER Ai, meu Deus, meu cachorrinho morreu. (Correm todos para a direita, menos Joo Grilo e Chic. Este vai para a esquerda, olha a cena

    que se desenrola l fora, e fala com grande gravidade na voz.) CHIC verdade, o cachorro morreu. Cumpriu sua sentena e encontrou-se com o nico mal

    irremedivel, aquilo que a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicao que iguala tudo o que vivo num s rebanho de condenados, porque tudo o que vivo morre.

    JOO GRILO (suspirando.) Tudo o que vivo morre. Est a uma coisa que eu no sabia! Bonito, Chic, onde foi que voc ouviu isso? De sua cabea que no saiu, que eu sei.

    CHIC Saiu mesmo no, Joo. Isso eu ouvi um padre dizer uma vez. (Esta cena, a partir daqui, cortvel, a critrio do encenador, at a frase Mas deixe de agonia, que o povo vem a.) Foi no dia em que meu pirarucu morreu.

    JOO GRILO Seu pirarucu? CHIC Meu, um modo de dizer, porque, para falar a verdade, acho que eu que era dele.

    Nunca lhe contei isso no? JOO GRILO No, j ouvi falar de homem que tem peixe, mas de peixe que tem homem, a

    primeira vez. CHIC Foi quando eu estive no Amazonas. Eu tinha amarrado a corda do arpo em redor do

    corpo, de modo que estava com os braos sem movimento. Quando ferrei o bicho, ele deu um puxavante maior e eu ca no rio.

    JOO GRILO O bicho pescou voc!... CHIC Exatamente, Joo, o bicho me pescou. Para encurtar a histria, o pirarucu me arrastou rio

    acima trs dias e trs noites. JOO GRILO Trs dias e trs noites? E voc no sentia fome no, Chic? CHIC Fome no, mas era uma vontade de fumar danada. E o engraado foi que ele deixou para

    morrer bem na entrada de uma vila, de modo que eu pudesse escapar. O enterro foi no outro dia e nunca mais esqueci o que o padre disse, na beira da cova.

    JOO GRILO E como o avistaram da vila? CHIC Ah, eu levantei um brao e acenei, acenei, at que uma lavadeira me avistou e vieram me

    soltar. JOO GRILO E voc no estava com os braos amarrados, Chic? CHIC Joo, na hora do aperto, d-se um jeito a tudo.

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    JOO GRILO Mas que jeito voc deu? CHIC No sei, s sei que foi assim. Mas deixe de agonia, que o povo vem a. MULHER (entrando.) Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai,ai,ai! JOO GRILO (mesmo tom) Ai, ai, ai, ai, ai! Ai, ai, ai, ai, ai! (D uma cotovelada em CHIC.) CHIC (obediente) Ai, ai, ai, ai, ai, Ai, ai, ai, ai, ai! (Essa lamentao deve ser um mal entendido a representada de propsito, ritmada como choro

    de palhao de circo.) SACRISTO (entrando com o padre e o padeiro) Que isso, que isso? Que barulho esse na

    porta da casa de Deus? PADRE Todos devem se resignar. MULHER Se o senhor tivesse benzido o bichinho, a essas horas ele ainda estava vivo. PADRE Qual, qual, quem sou eu! MULHER Mas tem uma coisa, agora o senhor enterra o cachorro. PADRE Enterro o cachorro? MULHER Enterra e tem que ser em latim. De outro jeito no serve, no ? PADEIRO , em latim no serve. MULHER Em latim que serve! PADEIRO , em latim que serve! PADRE Vocs esto loucos! No enterro de jeito nenhum. MULHER Est cortado o rendimento da irmandade. PADRE No enterro. PADEIRO Est cortado o rendimento da irmandade! PADRE No enterro. MULHER Meu marido considera-se demitido da presidncia. PADRE No enterro. PADEIRO Considero-me demitido da presidncia! PADRE No enterro. MULHER A vaquinha vai sair daqui imediatamente. PADRE Oh mulher sem corao! MULHER Sem corao, porque no quero ver meu cachorrinho comido pelos urubus? O senhor

    enterra! PADRE Ai meus dias de seminrio, minha juventude heroica e firme! MULHER Po para a casa do vigrio s vem agora dormido e com o dinheiro na frente. Enterra

    ou no enterra? PADRE Oh mulher cruel MULHER Decida-se, Padre Joo. PADRE No me decido coisa nenhuma, no tenho mais idade para isso. Vou me trancar na

    igreja e de l ningum me tira. (Entra na igreja, correndo.) JOO GRILO (chamando o patro parte.) Se me dessem carta branca, eu enterrava o

    cachorro. PADEIRO Tem a carta. JOO GRILO Posso gastar o que quiser? PADEIRO Pode. MULHER Que que vocs esto combinando a? JOO GRILO Estou aqui dizendo que, se desse jeito, vai ser difcil cumprir o testamento do

    cachorro, na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristo.

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    SACRISTO Que isso? Que isso? Cachorro com testamento? JOO GRILO Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja

    toda vez que o sino batia. Nesses ltimos tempos, j doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. At que meu patro entendeu, com a minha patroa, claro, que ele queria ser abenoado pelo padre e morrer como cristo. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patro prometesse que vinha encomendar a bno e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de ris para o padre e trs para o sacristo.

    SACRISTO (enxugando uma lgrima.) Que animal inteligente! Que sentimento nobre! (Calculista.) E o testamento? Onde est?

    JOO GRILO Foi passado em cartrio, coisa garantida. Isto , era coisa garantida, porque agora o padre vai deixar os urubus comerem o cachorrinho e, se o testamento for cumprido nessas condies, nem meu patro nem minha patroa esto livres de serem perseguidos pela alma.

    CHIC (escandalizado) Pela alma? JOO GRILO Alma no digo, porque acho que no existe alma de cachorro, mas assombrao

    de cachorro existe e uma das mais perigosas. E ningum quer se arriscar assim a desrespeitar a vontade do morto.

    MULHER (duas vezes.) Ai, ai, ai, ai, ai! JOO GRILO E CHIC (mesma cena.) SACRISTO (cortante) Que isso, que isso? No h motivo para essas lamentaes. Deixem

    tudo comigo. (Entra apressadamente na igreja.) PADEIRO Assombrao de cachorro? Que histria essa? JOO GRILO Que histria essa? Que histria essa que o cachorro vai se enterrar e em

    latim. PADEIRO Pode ser que se enterre, mas em assombrao de cachorro eu nunca ouvi falar. CHIC Mas existe. Eu mesmo j encontrei uma. PADEIRO (temeroso) Quando? Onde? CHIC Na passagem do riacho de Cosme Pinto. PADEIRO Tinham me dito que o lugar era assombrado, mas nunca pensei que se tratasse de

    assombrao de cachorro. CHIC Se o lugar assombrado, no sei. O que eu sei que eu ia atravessando o sangrador do

    aude e me caiu do bolso ngua uma prata de dez tostes. Eu ia com meu cachorro e j estava dando a prata por perdida, quando vi que ele estava assim como quem est cochichando com outro. De repente o cachorro mergulhou, e trouxe o dinheiro, mas quando fui verificar s encontrei dois cruzados.

    PADEIRO Oi! E essas almas de l tm dinheiro trocado? CHIC No sei, s sei que foi assim. (O Sacristo e o Padre saem da igreja.) SACRISTO Mas eu no j disse que fica tudo por minha conta? PADRE Por sua conta como, se o vigrio sou eu? SACRISTO O vigrio o senhor, mas quem sabe quanto o testamento sou eu. PADRE Hem? O testamento? SACRISTO Sim o testamento. PADRE Mas que testamento esse? SACRISTO O testamento do cachorro. PADRE E ele deixou testamento?

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    PADEIRO S para o vigrio deixou dez contos. PADRE Que cachorro inteligente! Que sentimento nobre! JOO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus! a maior das injustias. PADRE Comido, ele? De jeito nenhum. Um cachorro desse no pode ser comido pelos urubus. (Todos aplaudem, batendo palmas ritmadas e discretas e o Padre agradece, fazendo mesuras.

    Mas de repente lembra-se do Bispo.) PADRE (aflito.) Mas que jeito pode-se dar nisso? Estou com tanto medo do bispo! E tenho medo

    de cometer um sacrilgio! SACRISTO Que isso, que isso? No se trata de nenhum sacrilgio. Vamos enterrar uma

    pessoa altamente estimvel, nobre e generosa, satisfazendo, ao mesmo tempo, duas outras pessoas altamente estimveis (Aqui o padeiro e a mulher fazem uma curvatura a que o sacristo responde com outra igual), nobres (Nova curvatura.) e, sobretudo, generosas. (Novas curvaturas.) No vejo mal nenhum nisso.

    PADRE , voc no v mal nenhum, mas quem me garante que o bispo tambm no v? SACRISTO O bispo? PADRE Sim, o bispo. um grande administrador, uma guia a quem nada escapa. JOO GRILO Ah, um grande administrador? Ento pode deixar tudo por minha conta, que eu

    garanto. PADRE Voc garante? JOO GRILO Garanto. Eu teria medo se fosse o anterior, que era um santo homem. S o jeito

    que ele tinha de olhar para a gente me fazia tirar o chapu. Mas com esses grandes administradores eu me entendo que uma beleza.

    SACRISTO E mesmo no ser preciso que Vossa Reverendssima intervenha. Eu fao tudo. PADRE Voc faz tudo? SACRISTO Fao. MULHER Em latim? SACRISTO Em latim. PADEIRO E o acompanhamento? JOO GRILO Vamos eu e Chic. Com o senhor e sua mulher, acho que j d um bom enterro. PADEIRO Voc acha que est bem assim? MULHER Acho. PADEIRO Ento eu tambm acho. SACRISTO Se assim, vamos ao enterro. (Joo Grilo estende a mo a Chic, que a aperta

    calorosamente.) Como se chamava o cachorro? MULHER (chorosa) Xaru. SACRISTO (enquanto se encaminha para a direita em tom de canto gregoriano.) Absolve,

    Domine, animas omnium fidelium defunctorum ab omni vinculi delictorum. TODOS Amm. (Saem todos em procisso, atrs do sacristo, com exceo do padre, que fica um momento

    silencioso, levando depois a mo boca, em atitude angustiada, e sai correndo para a igreja. Aqui o espetculo pode ser interrompido, a critrio do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continu-Lo, com a entrada do Palhao.)

    PALHAO Muito bem, muito bem, muito bem. Assim se conseguem as coisas neste mundo. E agora, enquanto Xaru se enterra em latim, imaginemos o que se passa na cidade. Antnio Morais saiu furioso com o padre e acaba de ter uma longa conferncia com o bispo a esse respeito. Este, que est inspecionando sua diocese, tem que atender a inmeras convenincias. Em primeiro lugar, no pode desprestigiar a Igreja, que o padre, afinal de contas, representa na parquia. Mas tem tambm que pensar em certas conjunturas e transigncias, pois Antnio

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    Morais dono de todas as minas da regio e um homem poderoso, tendo enriquecido fortemente o patrimnio que herdou, e que j era grande, durante a guerra, em que o comrcio de minrios esteve no auge. De modo que l vem o bispo. Peo todo o silncio e respeito do auditrio, porque a grande figura que se aproxima , alm de bispo, um grande administrador e poltico. Sou o primeiro a me curvar diante deste grande prncipe da Igreja, prestando-lhe minhas mais carinhosas homenagens.

    (Curva-se profundamente e o Bispo entra pela direita, acompanhado pelo Frade. O Bispo um personagem medocre, profundamente enfatuado, enquanto o Frade, a quem todos tratam com desprezo mal disfarado, a alegria e bondade em pessoa. Ante a curvatura do Palhao, o Bispo faz um gesto soberano, mandando-o erguer-se. O Frade aponta o Palhao e dispara na risada, tapando a boca com a mo, mas o Bispo olha-o severamente e o Frade baixa a cabea, intimidado. Nova curvatura do Palhao, novo gesto do Bispo.)

    PALHAO (animado pelo acolhimento) Muito bem, ol, como est Vossa Reverendssima, como vai essa prospia, essa bizarria.

    (Enquanto fala, vai fazendo as graas ingnuas de palhao, pendurando o chapu e o palet, que caem ao cho, num cabide imaginrio. J em mangas de camisa, dirige-se ao Bispo com os braos largamente abertos, como quem vai abra-lo, mas o Bispo ergue a mo num gesto de desprezo e o Palhao ri amarelo, parando espera.)

    BISPO Retro. Onde est o padre? PALHAO Deve estar na igreja. (O Bispo volta-se para o Frade, fazendo-lhe um aceno majestoso e descuidado. O Frade corre

    para a igreja.) BISPO horrvel ter de viver com um dbil mental s costas, mas meu antecessor gostava dele e

    no quis desprestigi-lo, porque afinal de contas ele era meu colega, de modo que conservei essa lesma no lugar em que a encontrei.

    (O Palhao concorda, fazendo uma grande curvatura, e vem falar ao pblico.) PALHAO E agora afasto-me prudentemente, porque a vizinhana desses grandes

    administradores sempre uma coisa perigosa e a prpria Igreja ensina que o melhor evitar as ocasies. (Ao Bispo.) Peo licena a Vossa Excelncia Reverendssima, mas tenho que me retirar.

    (Curvaturas do Palhao e do Bispo. O Palhao sai e, no mesmo instante, o Frade volta com o Padre.)

    PADRE (nervoso) No esperava Vossa Reverendssima aqui agora, de modo que... BISPO Deixemos isso, passons, como dizem os franceses. Mas h coisas que no posso deixar

    de lado, com essa facilidade. PADRE No estou entendendo. BISPO (severo) Pois entender j. Quando eu lhe disser que Antnio Morais falou comigo... PADRE (sorridente) Antnio Morais falou com o senhor! BISPO Falou sim, e foi para reclamar de seu procedimento para com ele. PADRE No entendo o que Vossa Reverendssima quer dizer. BISPO No vejo dificuldade nenhuma em se entender isso, Padre Joo. Antnio Morais veio a

    mim se queixar de sua brutalidade para com ele. PADRE Como ? BISPO Vamos deixar de brincadeiras, O senhor sabe perfeitamente a que estou me referindo. Por

    que chamou a mulher dele de cachorra? PADRE Eu? BISPO Sim, o senhor. Quer me levar ao ridculo, , Padre Joo? PADRE No, nunca, Deus me livre. Mas juro que no chamei a mulher dele de cachorra.

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    BISPO Chamou, Padre Joo. PADRE No chamei, Senhor Bispo. BISPO Chamou, Padre Joo. PADRE No chamei, Senhor Bispo. BISPO (elevando a voz) Chamou, Padre Joo. PADRE (resignado) Chamei, Senhor Bispo. BISPO Afinal, chamou ou no chamou? PADRE No chamei, mas se Vossa Reverendssima diz que eu chamei porque sabe mais do

    que eu. BISPO Ento no verdade que ele veio pedir que o senhor lhe abenoasse o filho e que voc

    chamou a mulher dele de cachorra? PADRE O filho? BISPO Sim, o filho dele que est doente! PADRE E o filho dele que est doente? BISPO Claro que , no o que estou dizendo? PADRE O Grilo tinha me dito que era o cachorro! BISPO O grilo? Padre Joo, voc quer brincar comigo? Que histria de grilo e cachorro essa? PADRE Vossa Reverendssima perdoe, agora eu entendo tudo. BISPO Mas acontece que agora quem comea a no entender sou eu. PADRE A culpa do Grilo. BISPO Do grilo? PADRE De Joo Grilo. BISPO Quem Joo Grilo? PADRE Um canalhinha amarelo que mora aqui e trabalha na padaria. Chegou dizendo que o

    cachorro de Antnio Morais estava doente e que ele queria que eu o benzesse. Quando o homem chegou, a confuso foi a maior do mundo. Agora eu entendo tudo. Mas ele me paga.

    JOO GRILO (cantando fora:) Lampio e Maria Bonita. Pensava que nunca morria: Morreu boca da noite, Maria Bonita ao romper do dia.

    (Entram Joo Grilo e Chic.) JOO GRILO Padre Joo, querido Padre Joo, est tudo pronto e ns muito satisfeitos com o

    senhor. PADRE Joo Grilo, querido Joo Grilo, ns tambm estamos satisfeitssimos com o senhor. JOO GRILO Qual, quem sou eu, um pobre Grilo que no vale nada... bondade de Vossa

    Reverendssima. PADRE mesmo, bondade minha, porque voc no passa de um amarelo muito safado! JOO GRILO Est ouvindo, Chic? Eita, eu, se fosse voc, reagia. CHIC Eu? JOO GRILO Sim, eu, se fosse voc, reagia. No admito que ningum diga isso de um amigo

    meu na minha frente. CHIC Mas o amigo voc! JOO GRILO E ento? Reaja, Chic, seja homem! CHIC Eu, no. Reaja voc! JOO GRILO Voc no homem no, Chic? CHIC Eu sou homem mas sou frouxo. JOO GRILO Muito bem, se assim, eu falo. Por que Vossa Reverendssima me chamou de

    safado? PADRE Porque voc um amarelo muito safado. JOO GRILO Pois se esqueceram de botar isso na minha certido de idade!

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    (O Padre tenta agredir Joo mas o Frade o impede.) PADRE Como que voc veio me dizer que o cachorro de Antnio Morais estava doente,

    fazendo-me chamar a mulher dele de cachorra? JOO GRILO Ah, e a safadeza essa? Isso nada, Padre Joo! Muito pior enterrar o cachorro

    em latim, como se ele fosse cristo, e nem por isso eu vou cham-lo de safado. PADRE (enorme grito) Ai! BISPO Que isso? PADRE Uma dor que me deu de repente. Ai! JOO GRILO Coitado, no tem que ver o grito que minha patroa dava enquanto se fazia o

    enterro do cachorro. PADRE Ai, Joo Grilo, meu querido, me acuda que estou morrendo. JOO GRILO Eu ? Quem sou eu para socorrer padre, eu, um amarelo muito safado! PADRE Eu retiro o que disse, Joo. JOO GRILO Retirando ou no retirando, o fato que o cachorro enterrou-se em latim. BISPO Um cachorro? Enterrado em latim? PADRE Enterrado latindo, Senhor Bispo. Au, au, au, no sabe? BISPO No sei no senhor, nunca vi cachorro morto latir... Que histria essa? PADRE Ai! Ai! Ai SACRISTO (entrando) Que isso? Que isso? JOO GRILO o bispo que quer saber que histria essa. SACRISTO (fazendo mesuras) Senhor Bispo, excelente e reverendssimo Senhor Bispo... Qual

    histria? JOO GRILO Essa de padre e sacristo se juntarem para enterrar um cachorro em latim. SACRISTO Ai! JOO GRILO Que aperreio esse? A desgraa agora foi que comeou! BISPO Ento houve isso? Um cachorro enterrado em latim? JOO GRILO E ento? proibido? BISPO Se proibido? Deve ser, porque engraado demais para no ser. proibido! mais do

    que proibido! Cdigo Cannico, artigo 1627, pargrafo nico, letra k. Padre, o senhor vai ser suspenso.

    PADRE Ai! JOO GRILO Vossa Excelncia Reverendssima vai suspender o padre? BISPO Vou, por que no? Acha pouco o que ele fez? Uma vergonha! Uma desmoralizao! PADRE Ai! BISPO E o sacristo tambm vai pular fora de seu emprego! SACRISTO Ai! BISPO Quanto o senhor, Senhor Joo Grilo, vai ver agora o que administrar. O senhor vai-se

    arrepender de suas brincadeiras, jogando a Igreja contra Antnio Morais. Uma vergonha, uma desmoralizao!

    JOO GRILO mesmo, uma vergonha. Um cachorro safado daquele se atrever a deixar trs contos para o sacristo, quatro para o padre e seis para o bispo, demais.

    BISPO (mo em concha no ouvido) Como? JOO GRILO Ah! E o senhor no sabe da histria do testamento ainda no? BISPO Do testamento? Que testamento? CHIC O testamento do cachorro. BISPO Testamento do cachorro? PADRE (animando-se.) Sim, o cachorro tinha um testamento. Maluquice de sua dona. Deixou

    trs contos de ris para o sacristo; quatro para a parquia e seis para a diocese.

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    BISPO por isso que eu vivo dizendo que os animais tambm so criaturas de Deus. Que animal interessante! Que sentimento nobre!

    PADRE (arriscando) Para atender vontade da dona, deixei que o sacristo acompanhasse o... BISPO (sorridente) O enterro! PADRE (sorridente) Sim, o enterro. BISPO Em latim? SACRISTO Nada, eu disse a umas quatro ou cinco coisas que sabia, coisa pouca. JOO GRILO (gregoriano) No sei qu, no sei qu, defunctorum. CHIC (mesmo tom) Amm. BISPO preciso deliberar. assunto para se discutir com muito cuidado. Vamos reunir o

    conclio. (Encaminha-se para a igreja. O Sacristo quer ir logo depois dele, mas o Padre o impede e toma

    para si o lugar de honra. O Frade os segue.) SACRISTO (do limiar, antes de entrar na Igreja) Na verdade, v-se logo que um grande

    administrador. CHIC Voc ainda se desgraa numa embrulhada dessas. Eles viram a bexiga? JOO GRILO (exibindo-a) Que nada, est aqui. CHIC Se a mulher do padeiro descobrir que voc tirou a bexiga do cachorro antes do enterro.. JOO GRILO Que que tem isso? Eu estava precisando dela para um negcio que estou

    planejando e a necessidade desculpa tudo. O cachorro j estava morto, no precisava mais dela, eu tirei porque estava precisando! Ela no tem nada a reclamar.

    CHIC , o cachorro j estava morto, mas voc sabe como esse povo rico cheio de agonia com os mortos. Eu, s vezes, chego a pensar que s quem morre completamente pobre, porque com os ricos a agonia continua por tanto tempo depois da morte, que chega a parecer que ou eles no morrem direito ou a morte deles outra.

    JOO GRILO Voc ainda no viu nada! Eu ter tirado a bexiga do cachorro no quer dizer coisa nenhuma. Danado o gato que tomar o lugar do morto.

    CHIC Do morto? Que morto? JOO GRILO O cachorro, companheiro. Voc vai ver uma coisa. CHIC No estou entendendo nada. JOO GRILO Pois vai entender daqui a pouco. Vou entrar tambm no testamento do cachorro. CHIC Como, Joo? JOO GRILO Eu no lhe disse que a fraqueza da mulher do patro era bicho e dinheiro? CHIC Disse. JOO GRILO Pois vou vender a ela, para tomar o lugar do cachorro, um gato maravilhoso, que

    descome dinheiro. CHIC Descome, Joo? JOO GRILO Sim, descome, Chic. Come, ao contrrio. CHIC Est doido, Joo! No existe essa qualidade de gato. JOO GRILO Muito mais difcil de existir pirarucu que pesca gente e voc mesmo j foi

    pescado por um. CHIC mesmo, Joo, do jeito que as coisas vo eu no me admiro mais de nada. JOO GRILO Para uma pessoa cuja fraqueza dinheiro e bicho no vejo nada melhor do que

    um bicho que descome dinheiro. CHIC Joo, no duvidando no, mas como que esse gato descome dinheiro? JOO GRILO isso que preciso combinar com voc. A mulher vem j para c, cumprir o

    testamento. Eu deixei o gato amarrado ali fora. Voc v l e enfie essas pratas de dez tostes no desgraado do gato, entendeu?

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    CHIC Entendi. JOO GRILO Quando eu gritar por voc, venha, me entregue o gato e deixe o resto por minha

    conta. CHIC (vai sair mas volta) E o que que eu ganho nisso tudo? JOO GRILO Uma parte no testamento do cachorro. CHIC (idem) E se o negcio der errado? JOO GRILO L vem voc com suas latomias! Quer ou no quer? Se no quer diga logo, que eu

    arranjo outro scio. CHIC Quero. JOO GRILO Ento v. CHIC (idem) E a bexiga do cachorro? JOO GRILO Homem, v-se embora pelo amor de Deus que a mulher vem por a! Espere. A

    bexiga que vai nos garantir se o negcio der errado. Leve-a, encha-a de sangue e bote no peito dentro da camisa. V, v.

    (Chic faz uma saudao mulher, que vem entrando, com dois pacotinhos de dinheiro, e sai.) JOO GRILO Como vai a senhora? J est mais consolada? MULHER Consolada? Como, se alm de perder meu cachorro, ainda tive de gastar treze contos

    para ele se enterrar? JOO GRILO Est a, o dinheiro? MULHER Est. Entregue ao padre e ao sacristo. JOO GRILO Um momento. O que que tem escrito aqui? MULHER Sacristo. JOO GRILO E aqui? MULHER Padre. JOO GRILO Pois por favor, escreva aqui bispo e padre. MULHER Bispo e padre? Por qu? JOO GRILO Porque houve aqui um pequeno arranjo e o bispo tambm teve que entrar no

    testamento. MULHER (escrevendo) Que complicao! E se ao menos eu lucrasse alguma coisa... Mas perdi

    foi meu cachorro. JOO GRILO Quem no tem co caa com gato. MULHER Hem? JOO GRILO Quem no tem co caa com gato e eu arranjei um gato que uma beleza para a

    senhora. MULHER Um gato? JOO GRILO Um gato. MULHER E bonito? JOO GRILO Uma beleza. MULHER Ai, Joo, traga para eu ver! Chega a me dar uma agonia. Traga, Joo, j estou

    gostando do bichinho. Gente, no, povo que no tolero, mas bicho d gosto. JOO GRILO Pois ento vou busc-lo. MULHER Espere. Sabe do que mais, Joo? No v buscar o gato que isso s me traz

    aborrecimento e despesa. No viu o que aconteceu com o cachorro? Terminei tendo que fazer o testamento.

    JOO GRILO Ah, mas aquilo porque foi o cachorro. Com meu gato diferente... MULHER Diferente por qu? JOO GRILO Porque, em vez de dar despesa, esse gato d lucro. MULHER Fora vaca, cavalo e criao, bicho que d lucro no existe.

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    JOO GRILO No existe se no... Eu fico meio encabulado de dizer! MULHER Que isso, Joo, voc est em casa! Diga! JOO GRILO que o gato que eu lhe trouxe, descome dinheiro. MULHER Descome dinheiro? JOO GRILO Descome, sim. MULHER Essa eu s acredito vendo. JOO GRILO Pois vai ver. Chic! MULHER Ah, e histria de Chic? Logo vi. JOO GRILO Nada de histria de Chic, mas foi ele quem guardou o bicho. Chic! CHIC (entrando com o gato.) Tome seu gato. Eu no tenho nada com isso. (Joo d-lhe uma cotovelada e apresenta o gato mulher.) JOO GRILO Est a o gato. MULHER E da? JOO GRILO s tirar o dinheiro. MULHER Pois tire. JOO GRILO (virando o gato para Chic, com o rabo levantado.) Tire a, Chic. CHIC Eu no, tire voc. JOO GRILO Deixe de luxo, Chic, em cincia tudo natural. CHIC Pois se natural, tire. JOO GRILO Ento tiro. (Passa a mo no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostes.)

    Est a, cinco tostes que o gato lhe d de presente. MULHER Muito obrigada, mas se voc no se zanga quero ver de novo. JOO GRILO De novo? MULHER Vi voc passar a mo e sair com o dinheiro mas agora quero ver o parto. JOO GRILO O parto? MULHER Sim, quero ver o dinheiro sair do gato. JOO GRILO Pois ento veja MULHER (depois da nova retirada.) Nossa Senhora, mesmo. Joo, me arranje esse gato pelo

    amor de Deus. JOO GRILO Arranjar fcil, agora, pelo amor de Deus que no pode ser, porque sai muito

    barato. Amor de Deus coisa que eu tenho, d ou no lhe d o gato. MULHER Quer dizer que no tem jeito de eu arranjar esse gato? JOO GRILO De modo nenhum, h um jeito e at fcil. MULHER Pois diga qual , Joo. JOO GRILO Deixe eu entrar no testamento do cachorro. MULHER Pois voc entra. Por quanto vende o gato? JOO GRILO Um conto, est bom? MULHER Esta no, est caro. JOO GRILO Mas por um gato que descome dinheiro! MULHER J fiz a conta, vou levar dois mil dias s para tirar o preo. JOO GRILO Mas ele descome mais de uma vez por dia, a senhora no viu? MULHER Mas ele pode morrer. S dou quinhentos e se voc no aceitar ser demitido da

    padaria. JOO GRILO Est certo, fica pelos quinhentos. MULHER Tome l. Passe o gato, Chic. Meu Deus, que gatinho lindo! Agora a coisa outra,

    tenho um filho de novo e vou tirar o prejuzo. (Sai contentssima.) CHIC Joo,adeus. Eu vou-me embora.

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    JOO GRILO Nada disso, tome l a metade do dinheiro e deixe de ser mole. CHIC Homem, eu no tenho coragem de continuar sempre, melhor fugir logo, enquanto tudo

    est em paz. JOO GRILO No adianta, Chic, voc j entrou na histria e agora tarde porque a mulher

    descobre j. Quantas pratas voc conseguiu meter? CHIC Trs! JOO GRILO Ento o negcio estoura j. CHIC Meu Deus, se eu sair com vida dessa histria, subo a serra do Pico de joelhos. JOO GRILO Deixe de moleza, Chic; Voc encheu a bexiga de sangue? CHIC (apontando a barriga) Enchi, est aqui. JOO GRILO Ento est tudo garantido. (Entram o Bispo, o Padre, o Frade e o Sacristo.) BISPO No resta nenhuma dvida, foi tudo legal, certo e permitido. Cdigo Cannico, artigo

    368, pargrafo terceiro, letra b. SACRISTO Quer dizer que no agi mal? BISPO Muito pelo contrrio, voc agiu muito bem. JOO GRILO E aqui est a prova de que voc agiu muito bem. (Entregando os pacotes.) Bispo

    e padre e sacristo. SACRISTO (falsamente admirado) Que isso? Que isso? JOO GRILO O testamento do cachorro, a prova de que voc agiu bem, de acordo com o

    Cdigo Cannico, artigo no sei quanto, pargrafo sete, letra b. PADRE Ah, voc sabe ler, Joo? JOO GRILO No, conheci pelo peso. PADRE (dividindo o pacote) Senhor Bispo... BISPO No h pressa, no h pressa... (Mesmo assim, recebe o dinheiro, conta-o e embolsa-o, rapidamente.) JOO GRILO E fica mais uma vez tudo em paz, na santa paz do Senhor, com o cachorro

    enterrado em latim e todo mundo satisfeito. CHIC Isso o que voc diz, Joo, mas acho que a opinio do padeiro outra muito diferente. JOO GRILO E quem est pedindo a opinio do padeiro? CHIC Ningum, mas mesmo sem ningum pedir, ele vem ali doido para dar. PADEIRO Ah, voc est a? (Pega Joo pela camisa.) O gato no descome dinheiro coisa

    nenhuma, descome o que todo gato descome. Mas voc me paga! JOO GRILO Que isso? Que isso? O senhor no tem vergonha de dizer essas coisas diante

    do bispo? Descome, no descome! Que conversa mais imoral! Que chamego esse? PADEIRO (furioso) Imoral voc, vendendo aquele gato! JOO GRILO E eu tenho culpa de sua mulher s gostar de bicho? PADEIRO S gostar de bicho no, que ela casou comigo. JOO GRILO Sua diferena para bicho muito pouca, padeiro. PADEIRO O qu? assim que voc me trata agora? Olhe que eu boto voc para fora da padaria! JOO GRILO Voc no bota coisa nenhuma, porque eu j estou fora dela. Faz exatamente dez

    minutos que eu me considero demitido daquela porcaria. Um sujeito como eu no trabalha para uma mulher que compra gato.

    PADEIRO Ladro! Ladro! JOO GRILO Ladro Voc, presidente da irmandade. Trs dias passei em cima de uma cama,

    tremendo de febre. Mandava pedir socorro a ela e a voc e nada. At o padre que mandei pedir para me confessar no mandaram. E isso depois de passar seis anos trabalhando naquela desgraa!

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    PADEIRO Ingrato, eu que nunca o despedi, apesar de todas as suas trapaas! JOO GRILO Nunca me despediu porque eu trabalhava barato e bem. Est a o Padre Joo que o

    diga: qual era o melhor po da rua, Padre Joo? PADRE O po de Joo Grilo. JOO GRILO Est vendo? Ladro voc, ladro de farinha. Eu o que fao me defender como

    posso. BISPO Afinal que barulhada essa? PADEIRO Foi esse ladro que vendeu um gato minha mulher, dizendo que ele botava dinheiro,

    Senhor Bispo. FRADE Ra, ra! Essa foi boa! PADEIRO Boa? E um frade que vem me dizer isso? o fim do mundo. BISPO No se incomode, trata-se de um dbil mental. PADEIRO Fao minha queixa ao Senhor Bispo, na qualidade de presidente da Irmandade das

    Almas. BISPO Est recebida a queixa e vai ser apurado o fato, para denncia autoridade secular. JOO GRILO No vai ser apurada coisa nenhuma, por que agora eu vou-me embora daqui. E

    sabem do que mais? Vo-se danar todos, sacristo, padeiro, padre, bispo, porque eu j estou cheio, sabem?

    SACRISTO Joo Grilo! PADRE Joo Grilo! BISPO Senhor Joo Grilo! JOO GRILO isso mesmo e faam o favor de no me irritar se no eu dou um tiro na cabea

    de Chic! CHIC Na minha? D na da sua me, que pelo menos nasceu voc. (Fora, som de tiros e gritos de socorro.) PADRE Meu Deus, que ter sido isso? BISPO O barulho era de tiro. MULHER (entrando, assombrada.)Valha-me Deus! Ai, meu marido de minha alma, vai morrer

    todo mundo agora. Socorro, Senhor Bispo. BISPO Que h? Que isso? Que barulho! MULHER Severino do Aracaju, que entrou na cidade com um cabra e vem para c roubar a

    igreja. PADRE Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora! BISPO Quem Severino do Aracaju? SACRISTO Um cangaceiro, um homem horrvel. BISPO ( mulher.) Chame a polcia. MULHER A polcia correu. BISPO Correu? MULHER E ento? Informaram-se por onde ele vinha e saram exatamente pelo outro lado. BISPO Ave-Maria! Valha-me Nossa Senhora! MULHER Ai! meu Deus! PADEIRO Ai! meu Deus! PADRE E ser verdade mesmo? Onde est Severino? SEVERINO (aparecendo) Aqui. BISPO (desmaiando) Ai! JOO GRILO Que grande administrador! SEVERINO Um momento, ningum corra. O primeiro que tentar fugir, morre. O que isso que

    est a deitado, algum cnego?

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    BISPO (abrindo os olhos, cioso do posto) Bispo. SEVERINO timo. Nunca tinha matado um bispo, o senhor vai ser o primeiro. BISPO (desmaiando) Ai! SEVERINO (dando-lhe um pontap) Levante-se e deixe de chamego. Xilique comigo no pega.

    (O Bispo levanta-se vagarosamente.) Vossa Reverendssima vai-me desculpar, mas deixe ver os bolsos.

    BISPO No tenho nada, o capito compreende... SEVERINO (cortante) Mesmo assim eu quero ver. E deixe de me chamar de capito, que eu no

    gosto. BISPO E como hei de cham-lo ento? SEVERINO Severino, que meu nome de batismo. PADRE que ns no temos coragem de chamar uma pessoa to importante de Severino. SEVERINO Isso tudo porque quem est com o rifle sou eu. Se fosse qualquer um de vocs, eu

    era chamado era de Biu. Deixem de conversa, que isso comigo no vai. Mostre os bolsos. (Tirando o dinheiro.) Seis contos! Mas possvel? J vi que o negcio de reza est prosperando por aqui.

    JOO GRILO Depois que se comeou a enterrar cachorro ento, faz gosto! SEVERINO E tudo isto foi para se enterrar um cachorro? JOO GRILO Foi. SEVERINO Nesse caso o padre deve ter tambm alguma coisa para seu amigo Severino. PADRE Tenho, no vou negar. Aqui esto dois contos, Senhor Severino. o que posso lhe dar,

    no momento. SEVERINO (irnico) mesmo, padre? No possvel! Numa terra em que o bispo tem seis

    contos, o padre deve ter no mnimo uns trs. (Severo.) Deixe ver os bolsos. Olhe l, eu no disse? Fazendo jogo sujo, hem, padre? Quem diria, um ministro de Deus! Enfim, isso um fim de mundo. E o sacristo, que que me diz disso tudo?

    SACRISTO S tenho a lamentar minha pobreza, no me permite ajudar os amigos. SEVERINO Mais pobre do que Vossa Senhoria Severino do Aracaju, que no tem ningum por

    ele, a no ser seu velho e pobre papo-amarelo. Mas mesmo assim eu quero ajud-lo, porque Vossa Senhoria meu amigo. (Tirando o dinheiro.) Trs contos! Estou quase pensando em deixar o cangao. Eu deixava vocs viverem, o bispo demitia o sacristo e me nomeava no lugar dele. Com mais uns cinquenta cachorros que se enterrassem, eu me aposentava. (Sonhador.) Podia comprar uma terrinha e ia criar meus bodes. Umas quatro ou cinco cabeas de gado e podia-se viver em paz e morrer em paz, sem nunca mais ouvir falar no velho papo-amarelo.

    BISPO Mas uma grande ideia, Severino. SEVERINO uma grande ideia agora, porque a polcia fugiu. Mas ela volta com mais gente e eu

    no dava trs dias para o senhor bispo fazer o enterro do novo sacristo. MULHER (sedutora) Ento venha trabalhar comigo na padaria. Garanto que no se arrepende SEVERINO (severo) Mostre a mo esquerda. MULHER (cariciosa) Pois no, com muito gosto. SEVERINO uma aliana? MULHER , sou casada com essa desgraa a, mas estou to arrependida! S gosto de homens

    valentes e esse uma vergonha. SEVERINO Vergonha uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Alis, j tinha

    ouvido falar que a senhora enganava seu marido com todo mundo. PADEIRO O qu? possvel? JOO GRILO Est a Chic que o diga.

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    CHIC Eu? SEVERINO A coisa de que eu tenho mais raiva no mundo de mulher assim. Sabe o que que

    eu fao com as que encontro com esse costume? MULHER No. SEVERINO Ferro na tbua do queixo. MULHER Ai! PADEIRO No ligue ao que ela diz, mas o senhor podia vir mesmo trabalhar comigo na padaria.

    No se ganha muito, mas d para viver. SEVERINO Ento ganha-se pouco na padaria? PADEIRO Muito pouco, eu mesmo no tenho aqui, veja. SEVERINO No preciso, eu acredito. O que voc tinha deixou no cofre e eu tirei tudo, de

    passagem por l. PADEIRO Ai! SEVERINO No vejo motivo para essas agonias. Estou no meu direito, porque a polcia fugiu e

    eu tomei a cidade. JOO GRILO Dou toda a razo a voc, Severino, mas est ficando tarde e eu tenho o que fazer.

    Vamos embora, Chic. Vocs, at logo e muito boa viagem para todos. SEVERINO Um momento, amarelinho, quero falar com o senhor voc (A Chic.) Voc tambm

    no se apresse. JOO GRILO Homem, eu j sei qual a conversa que voc quer ter comigo. Tome logo meus

    duzentos e cinqenta mil-ris e deixe eu ir-me embora. D os seus tambm, Chic, e vamos sair daqui que o calor est aumentando.

    SEVERINO Nada disso. Voc agora fica e vai morrer com os outros. Est-me chamando de ladro? Severino do Aracaju pode ser assassino, mas no mata ningum sem motivo. At hoje s matei para roubar. assim que garanto meu sustento. Mas voc me chamou de ladro e vai se arrepender.

    BISPO Quer dizer que o senhor vai nos matar a todos? SEVERINO Vou, por que no? BISPO Mas voc no disse que s mata para garantir seu sustento? SEVERINO E no o que estou fazendo? BISPO um louco. Socorro! Socorro! SEVERINO Pode gritar vontade, garanto que no vem ningum. Mas somente por causa desse

    grito, Vossa Excelncia vai ser o primeiro. Tenha a bondade de passar para ali, porque Severino do Aracaju no mata ningum de fronte da igreja.

    FRADE Severino! SEVERINO Senhor! FRADE Deixe eu confessar esse povo. SEVERINO O senhor frade vai me perdoar, mas no tenho tempo. A polcia pode voltar e tenho

    que matar vocs de um por um. FRADE Ento vou absolver todos condicionalmente, e peo ao padre que faa o mesmo comigo. BISPO Dbil mental! (A Severino.) Cavalheiro... SEVERINO (fazendo uma vnia.) Senhor Bispo... No adianta olhar para os lados, porque, se

    no sair, morre aqui mesmo. Seja homem, d um exemplo a seus dois secretrios que esto em tempo de se acabar de medo.

    (O Padre e o Sacristo comeam a rezar. O Bispo ergue a cabea e quer sair com dignidade, mas as pernas lhe tremem de tal modo que ele vai tropeando.)

    SEVERINO Sustente as pernas, Senhor Bispo! Que vergonha, chega d desgosto se matar um homem desse! V, v logo!!

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    (O Bispo sai pela esquerda. Severino faz um aceno para o Cangaceiro. Este sai, atrs do Bispo. Um tiro. Severino baixa a cabea afirmativamente, sorrindo com a eficincia da execuo. O Cangaceiro reaparece, fazendo um gesto horizontal e cortante com a mo.)

    SEVERINO Senhor Padre, pela ordem, a sua vez. PADRE (descobrindo o rosto.) Pode cuidar logo do sacristo. SACRISTO Nada disso, a vez do Senhor. SEVERINO Para no haver discusso, vo os dois de uma vez. PADRE (a Joo Grilo.) Tudo isso por sua culpa, com suas histrias de cachorro bento e cachorro

    enterrado! JOO GRILO Cachorro bento voc. Eu no digo que sou sem sorte mesmo? Aqui desgraado,

    aperreado, me preparando para morrer, ainda aparece Padre Joo para me chamar de cachorro! Cachorro voc!

    (Com a raiva, Padre Joo se esquece do medo e sai rapidamente, mas o Sacristo fica.) SEVERINO Que isso, quer deixar o padre sem poder rezar o ofcio? SACRISTO O ofcio? Que ofcio, o dos mortos? SEVERINO Nada, o do casamento. Vou casar vocs dois com a morte. Ra, ra, essa foi boa! SACRISTO (sem gosto.) Foi tima! SEVERINO V atrs de seu patro e nunca mais se esquea aqui do padre que os casou. CANGACEIRO E nem do sacristo. (O Sacristo sai. Dois tiros, mesma cena entre Severino e o Cangaceiro.) FRADE Agora, eu? SEVERINO No, no gosto de matar frade que d azar. V embora. (O Frade sai.) E chega agora

    a vez do excelentssimo senhor padeiro desta cidade de Tapero, que ter a subida satisfao de morrer ao lado de sua excelentssima mulher safada.

    PADEIRO Antes de morrer, tenho um pedido a fazer. SEVERINO Ai, ai, ai! O que ? PADEIRO Quero que ela morra primeiro, para eu ver. SEVERINO Concedido. Mate a mulher primeiro. MULHER Ah desgraado! PADEIRO Desgraada voc que me desgraava a testa sem eu saber. E se ao menos fosse com

    uma pessoa de respeito! Mas at Chic. CHIC At Chic o qu? Eu fui que corri o perigo de ficar falado, andando com essa mulher pra

    cima e pra baixo. PADEIRO Eu no digo! Voc me desgraou. Caminhe na frente! Fao questo de ver essa

    desgraa morrer! MULHER E ento? Pensa que vou fazer cara feia? Est muito enganado, tenho mais coragem do

    que muito homem safado. Voc, sim, est a em tempo de se acabar. Pensa que no vi as pernas de sua cala tremendo, desde que ele entrou? Frouxo safado, no lhe dou o gosto de me queixar de jeito nenhum. (Ao Cangaceiro.) Est pronto?

    CANGACEIRO Estou. MULHER Pois vamos. (Sai firmemente, acompanhada pelo marido, que cambaleia.) Eu no

    disse? Segure aqui, que eu ajudo. (O padeiro se apia na mulher e saem os dois abraados.) JOO GRILO E assim que sero dois numa s carne. CHIC No mangue no, Joo. Mulher valente! Safada mas valente. JOO GRILO Voc que diz isso porque sabe. (Um s tiro. Ficam todos em expectativa e o Cangaceiro volta.) SEVERINO Que foi isso? S matou um?

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    CANGACEIRO No, os dois. SEVERINO S ouvi um tiro. CANGACEIRO Ia matar a mulher primeiro, como o senhor mandou, mas no momento em que ia

    puxar o gatilho, o homem correu, abraou-se com a mulher e morreram juntos. SEVERINO Muito bem. Como o nome de Vossa Senhoria? JOO GRILO Minha Senhoria no tem nome nenhum, porque no existe. Pobre tem l senhoria,

    s tem desgraa. SEVERINO Diga ento o nome de Vossa Desgracncia. JOO GRILO Joo Grilo. SEVERINO Chega ento agora a vez de Sua Desgracncia, o Senhor Joo Grilo, o amarelo mais

    amarelo que j tive a honra de matar. Pode ir, a casa sua. JOO GRILO Um momento. Antes de morrer, quero lhe fazer um grande favor. SEVERINO Qual ? JOO GRILO Dar-lhe esta gaita de presente. SEVERINO Uma gaita? Para que eu quero uma gaita? JOO GRILO Para nunca mais morrer dos ferimentos que a polcia lhe fizer. SEVERINO Que conversa essa? J ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de cobra,

    mas de gaita que cura ferimento de rifle, a primeira vez. JOO GRILO Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Ccero, pouco antes de morrer. SEVERINO Eu s acredito vendo. JOO GRILO Pois no. Queira Vossa Excelncia me ceder seu punhal. SEVERINO Olhe l! JOO GRILO No tenha cuidado. Pode apontar o rifle e se eu tentar alguma coisa para seu lado,

    queime. SEVERINO (ao Cangaceiro.) Aponte o rifle para esse amarelo, que desse povo que eu tenho

    medo. (Entrega o punhal a Joo sob a mira do Cangaceiro.) E agora? JOO GRILO Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chic. CHIC Na minha, no. JOO GRILO Deixe de moleza, Chic. Depois eu toco na gaita e voc fica vivo de novo!

    (Murmurando, a Chic.) A bexiga, a bexiga! (Acena para Chic, mostrando a barriga e lembrando a bexiga, mas Chic no entende.) CHIC Muito obrigado, mas eu no quero no, Joo. JOO GRILO (novos acenos) Mas eu no j disse que toco na gaita? CHIC Ento vamos fazer o seguinte: voc leva a punhalada e quem toca na gaita sou eu. JOO GRILO Homem sabe do que mais? Vamos deixar de conversa. Tome l! Morra,

    desgraado! (D uma punhalada na bexiga. Com a sugesto, Chic cai ao solo, apalpa-se, v a bexiga e s

    ento entende. Ele fecha os olhos e finge que morreu.) JOO GRILO Est vendo o sangue? SEVERINO Estou. Vi voc dar a facada, disso nunca duvidei. Agora, quero ver voc curar o

    homem. JOO GRILO j. (Comea a tocar na gaita e Chic comea a se mover no ritmo da msica, primeiro uma mo,

    depois as duas, os braos, at que se levanta como se estivesse com dana de So Guido.) SEVERINO Nossa Senhora! S tendo sido abenoada por Meu Padrinho Padre Ccero. Voc no

    est sentindo nada? CHIC Nadinha. SEVERINO E antes?

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    CHIC Antes como? SEVERINO Antes de Joo tocar na gaita. CHIC Ah, eu estava morto. SEVERINO Morto? CHIC Completamente morto. Vi Nossa Senhora e Padre Ccero no cu. SEVERINO Mas em to pouco tempo? Como foi isso? CHIC No sei, s sei que foi assim. SEVERINO E que foi que Padre Ccero lhe disse? CHIC Disse: Essa a gaitinha que eu abenoei antes de morrer. Vocs devem d-la a

    Severino, que precisa dela mais do que vocs. SEVERINO Ah meu Deus, s podia ser Meu Padrinho Padre Ccero mesmo. Joo me d essa

    gaitinha! JOO GRILO Ento me solte e solte Chic. SEVERINO No pode ser, Joo. Eu matei o bispo, o padre, o sacristo, o padeiro e a mulher e

    eles morreram esperando por voc. Se eu no o matar, vm-me perseguir de noite, porque ser uma injustia com eles.

    JOO GRILO Mas mesmo eu lhe dando essa gaita? Voc repare que eu podia ter morrido sem nada lhe dizer e voc nunca saberia de nada, porque ningum ia dar importncia a uma gaita.

    SEVERINO verdade. JOO GRILO Eu lhe dei uma oportunidade de conhecer Meu Padrinho Padre Ccero e voc me

    paga desse modo! SEVERINO De conhecer Meu Padrinho? Nunca tive essa sorte. Fui uma vez ao Juazeiro s para

    conhec-lo, mas pensaram que eu ia atacar a cidade e fui recebido a bala. JOO GRILO Mas pode conhec-lo agora. SEVERINO Como? JOO GRILO Seu cabra lhe d um tiro de rifle, voc vai visit-lo. Ento eu toco na gaita e voc

    volta. SEVERINO E se voc no tocar? JOO GRILO No est vendo que eu no fao uma misria dessa? Garanto que toco. SEVERIN Sua ideia boa, mas por segurana entregue logo a gaita a meu cabra. (Joo entrega a

    gaita.) Agora eu levo um tiro e vejo Meu Padrinho? JOO GRILO V, no v, Chic? CHIC V demais. Est l, vestido de azul, com uma poro de anjinhos em redor. Ele at

    estava dizendo: Diga a Severino que eu quero v-lo. SEVERINO Ai, eu vou. Atire, atire! CANGACEIRO Capito! SEVERINO Atira, cabra frouxo, eu no estou mandando? CANGACEIRO Capito! SEVERINO Atire! JOO GRILO Homem atire logo pelo amor de Deus! (O Cangaceiro ergue o rifle.) SEVERINO Espere. (Joo, extremamente nervoso, ergue os braos para o cu.) No se esquea

    de tocar na gaita. CANGACEIRO No tenha cuidado, Capito. SEVERINO Ento atire. (O Cangaceiro ergue o rifle de novo e atira. Severino cai e o Cangaceiro pega a gaita.) JOO GRILO (impedindo-o) No, deixe para tocar depois! Deixe pobre Severino conversar mais

    um pedao com Padre Ccero! Essas ocasies so poucas, preciso aproveitar.

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    Ariano Suassuna. Auto da Compadecida - Cpia digitalizada pelo GETEB - Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro / UFSJ Abril/2011

    CANGACEIRO No, j deu tempo de ele ver o padre. (Toca na gaita e nada.) Capito! (Toca na gaita.) Capito! Capito! (Empurra Severino com o p.) Est morto!

    JOO GRILO Toque na gaita. CANGACEIRO (depois de tocar) Capito! Ah Grilo amaldioado, voc matou o capito. JOO GRILO Em cima dele, Chic. (Atacam o Cangaceiro. Sem que ningum veja a facada, Joo Grilo d uns meneios e saltos de

    gato na frente do Cangaceiro, que puxa um revlver. Chic imobiliza os braos do Cangaceiro, segurando-o por trs. Com uma das mos fora-o a apontar o revlver para o cho.)

    JOO GRILO Solte o homem, Chic! CHIC Mas, Joo, soltar o homem com um revlver na mo? JOO GRILO Solte o homem, Chic! CHIC Joo, se eu soltar o homem, ele mete-lhe revlver na cara! JOO GRILO Solte o homem, Chic! CHIC Joo, voc est doido? No est vendo que o homem passa-lhe fogo?! JOO GRILO Solte o homem, Chic CHIC Pois ento tome! (Solta o Cangaceiro, que cai ao cho.) JOO GRILO Eu no lhe disse que soltasse, homem? Na primeira visagem que eu fiz na frente

    dele, meti-lhe a faca na barriga. CHIC Joo, meu filho, voc grande! Vamos embora! JOO GRILO Nada disso, s saio daqui com o testamento do cachorro. (Vai ao lugar onde est o corpo de Severino e tira o dinheiro.) CHIC Joo, de tudo isso eu s no entendo uma coisa. JOO GRILO O que ? CHIC Como foi que voc adivinhou que Severino vinha e preparou a histria da bexiga? JOO GRILO Eu no adivinhei coisa nenhuma, a bexiga estava preparada para a mulher do

    padeiro, quando ela viesse reclamar o preo do gato. Eu ia ver se convencia o marido dela a dar-lhe uma facada, para experimentar a gaita e me vingar do que ela me fez. Severino meteu-se no meio porque quis e de enxerido que era.

    CHIC Vamos embora, Joo. JOO GRILO Mas Chic, tenha vergonha, voc ainda est com medo? CHIC Estou, Joo, com um pressentimento ruim danado! JOO GRILO Ento vamos embora, mas deixe de agouro. (Chic sai para cidade, mas Joo pra no limiar, erguendo teatralmente os braos.) JOO GRILO E agora a vida boa e a independncia para Joo Grilo e